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A feminilidade “sossegada” na política

O “sossego” que pensamos anteriormente, pode muitas vezes ser confundido com uma passividade tradicional, ou seja, baseada em modelos naturalizados para a feminilidade. No caso da professora de EDA, como não há engajamento no Movimento sem a manifestação de uma vontade, de um ideal, nos momentos de ação (ocupações, protestos), também sabemos que não basta estar envolvida neste discurso sem se tomar por ele, ou seja, é preciso ter um entendimento e um desejo simbolizado em relação ao exercício do gozo ativo, o qual é o primeiro passo (e que pode ser visualizado nesses momentos de ação). De forma análoga e ao mesmo tempo, há uma superação, por parte dessa mulher, na forma de se relacionar com a passividade. Porém, em meio a essa dialética, em muitos momentos ela aparenta estar mantendo a mesma experiência passiva e submissa de feminilidade.

Fabrício realizou uma pesquisa no mesmo assentamento do município em questão neste trabalho e afirma: “Falam porque, diferentemente dos homens, não esquecem o

individual dentro dos coletivos. Lembram da sua história sempre” (1999, p.37). Nesse sentido, percebemos o exercício do gozo ativo – através da fala e da participação - e também do passivo, o gozo específico da feminilidade (o superego “malformado” realizando seu compromisso ético) – a partir da presença da subjetividade nos coletivos. Porém, ao mesmo tempo, segue falando Fabrício que existem aqueles sujeitos femininos que, para nós pesquisadores, parecem mostrar uma dificuldade no exercício do gozo ativo, pois, ao serem perguntados sobre o Movimento e o assentamento, respondem “pergunte para o meu marido” (p. 37), como se o masculino pudesse falar deste espaço público e a feminilidade não. Essas mulheres revelam em outro momento da entrevista que sentiam ter sido passadas “do pai para o marido” (p. 62).

Fabrício nos diz como isso aparece no assentamento. Afirma que a feminilidade tem um cotidiano igual ao do lugar de antes e sua participação social continua dependente das tarefas impostas e definidas desde sempre para o feminino, o que lembra muito a postura doméstica tradicional. Além disso, afirma ainda que as tarefas femininas também ali são consideradas sem importância, apesar de serem imprescindíveis. A autora afirma que raramente se discute gênero nesses grupos de trabalho, parecendo reproduzirem a mesma opressão que encontramos na sociedade.

Segundo Fabrício, a masculinidade é colocada hierarquicamente como a autoridade que conduz, juntamente com os filhos homens, o trabalho na lavoura e que estes não lembram de relacionar as mulheres entre aquelas que preparam a terra, e mais, apenas quando questionados afirmam que a mulher ajuda, ou seja, aparece apenas como coadjuvante. Fabrício aponta que a dominação masculina extrapola o espaço doméstico e da propriedade e impõe-se negando a participação dos sujeitos femininos nas decisões nas cooperativas, nos bancos, nas associações de produtores e sindicatos.

Se pensarmos a partir das relações de gênero, tudo isso nos fala da “falta de presença” e da “falta de lugar” para a mulher. Mas, apesar de, inevitavelmente, esta questão perpassar o trabalho, não é do gênero mulher que falamos aqui, e sim da subjetividade na feminilidade. Portanto, entendemos que parte do que Fabrício refere no seu texto fala de um momento de “sossego” na ação, o qual não significa que haja “sossego” subjetivo. Porém, é necessário observar que há, nos momentos que nomeamos sossegados, um “sossego” na busca dos desejos da feminilidade na ação, mas esta busca pode estar em continuidade em sua forma subjetiva – a exemplo do que se viveu na ação. Por isso, no entanto, o que pode parecer uma falta de colocação do desejo da mulher é tal, mas só se entendermos que esse desejo é igual ao

do homem, ou seja, decidir nas cooperativas, nos sindicatos... Afinal, teria que se perguntar o que poderia nos mostrar o desejo destes sujeitos femininos; será que a única forma de eles exercerem seu gozo ativo seria tendo este lugar nas cooperativas, bancos, associação de produtores e sindicatos? Será que eles sentem necessidade de serem reconhecidos como os que fazem um trabalho imprescindível na lavoura? Talvez eles nem queiram “brigar” com os lugares do masculino, justamente porque isto não faz questão para esses sujeitos femininos..., seus desejos provavelmente sejam outros, não exatamente idênticos aos do masculino.

Com base nesse questionamento, propomos pensar não só o que a sociedade produz para a feminilidade, mas também como o feminino toma isso que chega até ele, como significa. Dessa forma, pode este sujeito feminino, à imagem daquele que é reprimido em seu discurso político, tomar essa opressão justamente como alimento para seu “movimento”, produzindo rupturas, e mais, construindo muito além disso, ao passo de não ser um problema o que muitos veem como opressão à feminilidade? Afinal, é isso que parece nos passar esse sujeito feminino no MST, que ele não está se importando com “a falta de lugar que lhe é colocada”, seu desejo, neste momento, está direcionado para outra coisa.

E na professora de EUr, seu momento de “sossego” na ação, o qual entendemos assim pelo que visualizamos neste trabalho, pode ser entendido como uma experimentação dos mesmos modelos de passividade tradicional? Podíamos entender assim pela semelhança com a professora descrita por muitos autores e pela forte identificação com a maneira de ser feminina presente em suas mães, como mostramos nos capítulos anteriores. Mas podemos pensar que para ela os modelos de passividade tradicional continuam sendo experimentados com a mesma realização de outrora? Certamente que não. A construção que estas professoras realizam no decorrer da entrevista, implicando-se, aos poucos, com seus conflitos e questões, demonstra que o que lhe é oferecido como modelo tradicional de ser não lhe basta mais. Ao mesmo tempo, por enquanto, não foi ou não se está construindo outro mais adequado as atuais demandas desta professora, demandas as quais estão de acordo com a dos sujeitos femininos modernos, das quais já falamos, porém com menos espaços de expressão devido ao discurso educacional. Para esta professora não bastam as novas demandas modernas que implicam seus novos desejos, é necessário construir, personalizar lugares frente às diversas demandas que surgem. Estas professoras estão desejantes da dialética da feminilidade.

Para a professora de EUr este momento de questionamento “sossegado” é importantíssimo, significa implicação inconsciente (a qual vai demandar e pressionar expressão), necessidade de mudança, início de mudança.

De igual modo, cabe perguntar se o momento de “sossego” da professora da EDA seria tão importante quanto o momento de luta política pelo espaço público.

Na fala que segue, advinda de uma professora de EDA, podemos visualizar o que entendemos por dialética da feminilidade, conflituosa, mas “sossegada”, ou seja, mais subjetiva pois o embate é mais introspectivo, mas possível por se haver passado pelos momentos de ação. Esses momentos de ação, como antes inferimos a partir de Freud, são ocasiões em que os sujeitos podem estar movidos por desejos inconscientes – os quais geralmente são escondidos ou recalcados- e que são sustentados pelo coletivo durante a ação. Já que os momentos de sossego se relacionam com os momentos de ação, poderiam, nos primeiros, os desejos inconscientes ainda se apresentarem de forma mais livre?

De todos os problemas que eu vivenciei e tive na vida, eu sempre conversava comigo, com meu interior, eu sempre achei que eu era meio psicóloga de mim mesma. Eu tenho uma sobrinha que é psicóloga e, quando eu tinha a oportunidade, eu falava com ela e ela me dizia que eu estava certa, que é isso mesmo e tal, que eu achava assim, que eu conversando e pensando, refletindo, eu chorava sozinha ou pensava e tentava, falava comigo e com Deus, pensava: a psicóloga vai me escutar, bom, eu vou me escutar também. Eu mesma refletia e conversava com meus botões porque daí, bom, eu acho que eu sou um pouco insegura em certas coisas, tomar uma decisão precipitada, eu não tenho isso “vamos fazer”, eu sou muito de pensar antes de fazer as coisas. Então eu pensava, refletia, via, bom, estou sendo covarde, ou não..., daí eu pensava, bom, adiantava eu tomar uma atitude? (P.EDA)

Esta professora é um sujeito feminino que foi acampar e conseguiu um lote de terra que, inclusive, está em seu nome e não no do seu cônjuge. Mas, se em algum momento ela poderia estar direcionada para uma posição que se resumia na atividade e não na dualidade ativo/passivo, demonstra que, agora, usufrui da dialética; afinal, em sua entrevista, afirma que hoje ela não viaja mais tanto pelo Movimento (mas continua dedicando esta energia à escola). Nesse sentido, afirma que em certo momento não quis mais viajar porque julga também a família uma coisa importante e também a escola algo importante para ela. Interessante que um sujeito que já esteve na ação (a qual colocamos como inconsciente) no movimento social, hoje continue agindo, alternando sua dualidade da feminilidade e, ao mesmo tempo, vivendo conflitos mais subjetivos e introspectivos. Logo, parece haver uma ação diferenciada da que nomeamos ocorrer no momento das ocupações, protestos e acampamentos, ou seja, uma ação pensada, mas a exemplo da ação permeada pelo inconsciente e pelo vazio.

Esta professora que trazemos como exemplo apresenta uma história de vida diferente de algumas outras mulheres professoras do assentamento, as quais trabalham há muitos anos na escola do MST mas não participaram das ocupações, não acamparam. Parece que essa

dialética da feminilidade que se mantém no “sossego” se mantém por conta do que foi vivido anteriormente na ação, mas não só. Ao mesmo tempo, vai contaminando as outras professoras da escola que, mesmo não tendo vivido a mesma história, construíram posturas que vão na mesma lógica do que explicitamos aqui: uma dialética da feminilidade “sossegada”. Parece- nos que a vivência da ação permite uma relação com a passividade que só é como é pela vivência de atividade na ação no Movimento. Algo muito semelhante com o movimento descrito para a feminilidade desde Freud - que nos afirma que, para se chegar a um fim passivo, pode ser necessária muita atividade - e retomado por Pommier quando este descreve a passividade do “retornar-se mulher” como um movimento só possível depois que se passa por uma etapa de atividade.

As professoras que aqui descrevemos como “sossegadas” passaram a ser desejantes da dialética e operam com ela de forma mais planejada, porque subjetivamente significaram a ação primordial: se acostumaram a viver experiências de mundo como constante novidade (isso quando há a concomitantemente uma constante emergência de uma subjetividade própria). E afirmam que, após esta experiência, se sentem “mais mulher”:

[...] Mas eu dou muito valor à família, dou muito valor ao que eu já passei, aos meus filhos. Não é por eu não estar gostando de um jeito ou por o marido não me entender totalmente que eu vou terminar meu casamento. Eu acho que a gente pode ir conseguindo fazer com que a gente mude isso... e eu acho assim que foi mudando. E mais, assim de ser mulher e tal, eu acho que eu me realizei mais como mulher depois que eu realmente encontrei um sentido mais na vida, por exemplo assim, quando eu consegui fazer o que eu queria: entrar no Movimento, depois que eu tive meus filhos e tal, que eu consegui assim “não, agora a vida é minha eu que estou comandando”, eu me senti mais mulher, acho que daí que mudou... porque antes, sei lá, até meio difícil de dizer assim que ... mas que são fases, eu acho, da vida da gente. Mas eu acho que eu me tornei assim mais completa, que eu consegui mais uma felicidade, eu senti até prazer, quando eu consegui resolver esses outros problemas da minha vida... eu me senti assim. Essa questão lá de que eu não me sentia útil onde eu estava, não era o que eu estava querendo fazer, então depois que eu me realizei assim ó, bah professora, era o que eu aprendi a fazer, eu estava no acampamento, eu estava estudando, aí eu consegui, eu acho, melhorar muito (P. EDA).

Esta mulher feminina nos mostra que para ela é possível, em diferentes situações ou condições diversas, exercícios de atividade e passividade e que esses exercícios de feminilidade vão se construindo e reconstruindo porque tudo vai sempre mudando. Além disso, nos fala da mudança em que “se realizou mais como mulher”, se sentiu “mais completa”, “melhorou muito”, “conseguiu mais felicidade” e “sentiu prazer” com a mudança que o Movimento lhe proporcionou, a qual lhe facilitou uma postura dual frente à vida: a postura feminina.