• Nenhum resultado encontrado

Seguindo nesta linha de pensamento, ou seja, frente a uma ação e/ou discursos públicos que incitam re-ações não esperadas socialmente, identificamos algo ligado a uma atividade que parte do feminino e produz movimentação na mulher. Foi, historicamente, a fala dos sujeitos femininos, principalmente na política, que abriu espaços para o deslocamento de significado na feminilidade.

O discurso político/coletivo, para o sujeito feminino do MST, pode lhe possibilitar a alternância entre atividade e passividade, justamente pelo lugar onde se coloca a feminilidade enquanto pública, até hoje: “à ‘mulher pública’, o horror, ao ‘homem público’ a honra” (PERROT, 2005, p. 343-344). Novamente nos referimos a Falkembach e ao conceito de discurso-ação, o ato levando ao discurso. Esta expressão nos fala de um movimento produzido por um “jogo”: ato que produz discurso/discurso que produz ato no MST:

O encontro/construção destes sujeitos a partir do discurso-ação-MST possibilitou o resgate/construção de uma estrutura identitária. Isso propiciou o “centramento” do sujeito, mas desde uma “estrutura em aberto”, em movimento, cujas iniciativas de fechamento têm gerado crises, exigindo novas aberturas. Vem constituindo sujeitos [...] (FALKEMBACH, 2006, p.260).

Esse movimento está associado à ocupação do espaço público, ou seja, acontecimento que permite à mulher (no MST) o acesso ao exercício do gozo fálico, ativo. Este exercício, como a própria autora afirma, define identidades, as quais podem determinar ou, na experimentação da estrutura em aberto (adequada ao Movimento), dar maior espaço aos desejos pelo questionamento.

No caso da EUr, os mesmos questionamentos sociais em relação ao que é ser mulher aconteceram e ainda vemos acontecer, porém sem a constituição de uma diferente identidade, parece haver uma busca desta.

Mas como poderia ocorrer essa postura de reação da mulher frente a discursos dados? Freud afirmou que o superego feminino é pessoal demais, o que provoca uma imperfeição moral na feminilidade. Mais tarde, com os lacanianos, surge o entendimento de que essa especificidade feminina nada mais é do que uma relação diferenciada com a lei. Ou seja, aconstituição do superego feminino se dá articulada ao fato de que a menina, diferente do menino, durante a castração, não tem medo de perder o falo.10 A menina não tem medo porque ela já não o tem, não tem “nada a perder”. Dessa forma a lei paterna que constitui o sujeito, a da castração, que se presentifica para os pequenos na fala “se não obedeceres, vou cortar teu pingulim” é relativizada pelo sujeito feminino:

Em todo o caso, a passagem para a feminilidade constitui, na mulher, um superego mais complacente em relação à lei paterna e bem mais exigente em relação às demandas do narcisismo materno. Uma bissexualidade muito menos recalcada que a do homem, já que para este toda a identificação é sentida como ameaça de perda, enquanto para a mulher toda a possível identificação paterna é lucro (KEHL, 1996, p.45).

A feminilidade relativiza a lei com o amor - é o que diz Kehl (1996) ao afirmar que a mulher é bem mais exigente em relação às demandas do narcisismo materno.

Podemos pensar no feminino como uma possibilidade de subjetivação mediante a relativização das leis, mas também por meio de leis, já que elas podem movimentar o

10 O falo é colocado aqui como a significação dada para aquilo que se busca para tamponar o que nos falta, o

que, nesse momento da constituição da criança, no imaginário infantil, está colocado como igual ao pênis em Freud e nos lacanianos, similar ao amor da mãe.

discurso-ação / ação-discurso: um sujeito que tem um compromisso ético com o novo nas sociedades. Freud (1994c) afirma que a relativização das leis é a saída para as neuroses (recalques de desejos) causadas pelas leis dadas pela sociedade, as quais provocam repressão dos desejos inconscientes e uma fortificação da censura a estes: “A subjugação dos poderes individuais da força bruta pelo poder coletivo, simbolizado na forma da lei, é um passo importante na construção da civilização”11 (KEHL, 1996, p.32).

Constatamos, neste sentido, que a mulher/feminina, no coletivo do MST e também no coletivo da sala de aula, pode permitir uma inovação contínua através da constante criação de espaços ao individual e subjetivo nesses coletivos, uma ética que permita um bem-estar do sujeito frente às leis da civilização ou do grupo, relativizando esta lei. Ao mesmo tempo, permite que o grupo e seus ideais se mantenham e as mudanças buscadas por eles sejam alcançadas, através da constante emergência desta subjetividade individual nas leis dos coletivos.

[...] Toda a lei está sujeita não somente a ser desobedecida como até mesmo a cair, se não cumprir minimamente seu compromisso com o princípio do prazer. Onde a lei do pai é imposta pela força bruta, os filhos não são sujeitos – são submetidos. Neste caso, não existiria ética ou pacto, e sim submissão ao mais forte (KEHL, 2005, p.34).

Nesse sentido, para pensar a feminilidade no coletivo, trazemos as ideias de Freud referentes ao modo como os coletivos e as leis destes se constituem; isso a partir de sua construção sobre o que é um coletivo, ideia fortemente presente na psicanálise, ainda hoje.

A peculiaridade mais notável apresentada por um grupo psicológico é a seguinte: sejam quem forem os indivíduos que o compõem, por semelhantes ou dessemelhantes que sejam seu modo de vida, suas ocupações, seu caráter ou sua inteligência, o fato de haverem sido transformados em um grupo, coloca-os na posse de uma espécie de mente coletiva que os faz sentir, pensar e agir de maneira muito diferente daquela pela qual cada membro dele, tomado individualmente, sentiria, pensaria e agiria, caso se encontrasse em estado de isolamento. Há certas idéias e sentimentos que não surgem e não se transformam em atos, exceto no caso de indivíduos que formam um grupo. O grupo psicológico é um ser provisório, formado por elementos heterogêneos que por um momento se combinam, exatamente como as células que constituem um corpo vivo, formam, por sua reunião, um novo ser que apresenta características diferentes daquelas possuídas por cada uma das células isoladamente (FREUD, 1921, p.96).

11 A civilização surge para limitar a realização de desejos do id, ou seja, somente pelo princípio do prazer, o qual

é instintivo (pulsional) e puramente sexual (libidinal) e agressivo. Essa liberação de energia não permite o gozo da construção e fantasia do desejo. “A civilização surge da necessidade de impor restrições à sofreguidão do princípio do prazer, no mínimo para que ele não destrua ou danifique seus próprios objetos e alguma felicidade seja possível ao longo de uma vida” (KEHL,1996, p.32). Porém, se não há prazer na lei, isso significa que o superego não deixa espaço para o id, também causando sofrimento ao sujeito.

Em sua obra, Freud observa que a organização grupal leva a personalidade individual do sujeito a esconder-se, limitar-se, minimizar-se. Pode-se pensar que exatamente esse tipo de organização produz mudanças e vitórias políticas, pois, segundo este mesmo autor, a união em grupo propicia que os indivíduos sintam-se mais capazes e fortes, com um grande sentimento de poder e ação. Porém, ele nos diz que o grupo psicológico é um ser provisório, deseja apaixonadamente e não por muito tempo. Talvez pela estrutura que afirma ter este grupo, a qual inclui um apagamento das individualidades.

Afirma que o sentimento de poder absoluto se deve a instintos que, se estivesse o indivíduo sozinho, teria mantido sob coerção, o que caracteriza o grupo como mantenedor de relações primitivas, pulsionais: “todas as suas inibições individuais caem e todos os instintos cruéis, brutais e destrutivos, que neles jaziam adormecidos, como relíquias de uma época primitiva, são despertados para encontrar gratificação livre” (1921, p.102). Para Freud, isso tem consequências ainda mais profundas: “vemos então o desaparecimento da personalidade consciente, a predominância da personalidade inconsciente, a modificação por meio da sugestão e do contágio de sentimentos e idéias numa direção idêntica” (1921, p.99). Esse autor nos fala de uma redução da capacidade intelectual que um indivíduo experimenta quando se funde em um grupo, não conseguindo distinguir realidade e irrealidade; ao citar McDougall, argumenta que as mentes de nível inferior fazem com que as de nível mais elevado desçam ao nível das primeiras. Além disso, a intensificação da emoção criaria condições desfavoráveis para o trabalho intelectual, ao mesmo tempo em que os indivíduos são intimidados por fundirem-se em um grupo. Por isso, sua atividade mental não se acha livre e, também, ocorre uma diminuição em cada indivíduo de seu senso de responsabilidade, já que as ações são realizadas de formagrupal.

Dessa forma, encontramos em Freud uma concepção de grupo próxima à de um delírio coletivo:

As investigações mais cuidadosas parecem demonstrar um indivíduo imerso por um certo lapso de tempo em um grupo em ação, cedo se descobre – seja em conseqüência da influência magnética emanada do grupo, seja devido a alguma outra causa por nós ignorada – num estado espacial, que se assemelha muito ao estado de “fascinação” em que o indivíduo hipnotizado se encontra na mão do hipnotizador [...]. A personalidade consciente desvaneceu-se inteiramente; a vontade e o discernimento se perderam (1921, p.99).

Freud, assim, enfatiza que o grupo é um ser provisório, que dura certo lapso de tempo e cita os grupos revolucionários como exemplo de grupos efêmeros. Entende-se que essa durabilidade está condicionada à individualidade perdida ao participar de um grupo que se

guia, então, pela sugestão coletiva. Perda esta que caracteriza pessoas que, segundo o próprio autor, mais se aproximam de animais selvagens que de seres humanos.

O problema consiste em saber como conseguir para o grupo exatamente aqueles aspectos que eram característicos do indivíduo e nele se extinguiram pela formação do grupo, pois o indivíduo [...] possuía sua própria continuidade, sua autoconsciência, [...] devido à sua entrada num grupo “inorganizado”, perdeu essa distintividade por certo tempo. Se assim reconhecemos que o objetivo é aparelhar o grupo com os atributos do indivíduo [...] (FREUD, 1921, p.112).

Em meio a isso, entendemos que a constituição diferenciada da feminilidade, sua indefinição própria, pode equipar o grupo com a constante novidade, ou seja, dar a ele mobilidade naquilo que Freud pontuava como problemático: a massividade de pensamento do grupo e, portanto, a carência de individualidade. Ao mesmo tempo, essa feminilidade pode apreender neste grupo suplementos de atividade para seu desejo fálico, ele lhe dá uma identidade ativa, a qual pode, também, em vez de permitir a inovação, determinar radicalmente papéis para a feminilidade e para os sujeitos em geral.

Essa possibilidade dada pela a para a feminilidade ocorre porque nos parece que os coletivos, desde Freud, ao permitirem o desaparecimento da personalidade consciente e a predominância da personalidade inconsciente, possibilitam a emergência de desejos escondidos (ou recalcados). Como deixar de perceber que isto é muito positivo para a feminilidade, frente às posturas naturalizadas para ela? O que parece ocorrer é que o inconsciente se manifesta em ação e, o coletivo é tão forte, que sustenta a vinda do inconsciente para a ação. Então, desde Freud, se vê no grupo espaço para a manifestação do inconsciente, manifestação positiva para a libertação da mulher frente ao que lhe é dado culturalmente. Talvez isso aconteça pelas capacidades que este autor afirma que os sujeitos apreendem do grupo: tornam-se mais capazes e fortes, com grande sentimento de poder e ação.

O conjunto de afirmações de Freud relatadas acima, exceto a questão da necessidade de atributos da individualidade, não é algo novo; o próprio autor nos afirma que antes dele muitos autores já haviam pensado o grupo justamente nesse viés. Essas, inclusive as de Freud, são concepções que apontam certos comportamentos, e os aceitam, não vislumbram nem consideram possível o advento de mudanças.

Esse entendimento de grupo fechado, fixo, fadado a acabar e relatado como objetivo na construção grupal, juntamente com uma perda da individualidade e da intelectualidade, não

parece ser o que se entende por coletivos nem por busca destes coletivos no âmbito dos Movimentos Sociais. A partir de Paludo (2001), estudiosa dos movimentos sociais no Brasil, percebe-se que esses Movimentos foram mudando sua constituição mediante a assunção de novas necessidades e ideais em relação ao próprio grupo e à sociedade, mudanças que contemplam ganhos objetivos e subjetivos: as lutas feministas, homossexuais, etc.Ou seja, os Novos Movimentos Sociais conseguem se manter se em movimento de concepções, ou se há a instalação de um processo reflexivo “para valer” – apelo à capacidade intelectual –, o que vai empalidecendo a emoção e dando cor à razão, diferencia-se do grupo em Freud, o qual não pensa, só age. O Movimento permite que o coletivo se utilize do que Freud chama de “delírio coletivo, fascinação que dá capacidade de força de poder e ação” para se sustentar em certos momentos – principalmente nos momentos de ação-, mas depois ele se modifica (e até se institucionaliza). É de um desses momentos, em que são necessários atributos do coletivo para sustentar os sujeitos, que nos fala Ottonelli:

Acampar é essencial, participar das marchas impressiona a sociedade, mas o que dá têmpera aos acampados é o momento da ocupação. Neste momento ou nesta situação, o capital do latifúndio e o capital dos acampados - que é a coragem, a convicção e a ousadia - precisam assumir particularidades precisas e são abaladas de forma brutal e extrema (2008, p.26).

É nesse sentido que pensamos na possibilidade para as mudanças que os coletivos, e os movimentos sociais especialmente, podem permitir à feminilidade. Sua indefinição constituinte, a qual permite que tudo lhe seja imputado como identidade, pode ser sustentada pelo coletivo em sua indefinição no momento da busca pela construção de algo novo, do mesmo modo como todos os sujeitos são sustentados por esse coletivo na ação para a mudança.

Enquanto isso, a contribuição da feminilidade para os coletivos se daria no que Freud chama de necessidade de atributos da individualidade do sujeito dentro dos coletivos e que Tomaz Tadeu da Silva chama de retorno ao sujeito ou retorno do sujeito12 que, segundo ele, está em extinção, mas que entendemos ressurgir nos questionamentos do Campo Democrático Popular pela crise de 9013 e também pelas novas dinâmicas dos Movimentos Sociais. Ou seja, desde Freud até a atualidade, podemos perceber a importância da busca por espaços para a

12 Para Silva, os inúmeros aparatos sociais encolhem o sujeito. Entendemos que há uma massificação que

esconde aquilo que lhe é próprio.

13 Em Paludo (2001), entendemos a crise de 1990 como um momento de perplexidade, compreensão, busca de

alternativas ao campo democrático popular. Baseia-se em um novo projeto de sociedade, agora consciente do que não deu certo, ou seja, o fim das utopias construídas em 70/80. Define-se como um momento de recolhimento, redefinições de identidade, projetos e estratégias, ressituamento, autocrítica. Há, também, a perda da capacidade de pertencimento e identidade do grupo. Caracteriza-se por um momento de conflito.

subjetividade dos sujeitos dentro dos coletivos, necessidade que entendemos que a feminilidade, no seu exercício de dualidade, pode constantemente trazer, reconstruindo espaços que vêm a ser, também, para seu próprio sujeito.

[...] O sujeito é - por meio de uma série de restrições - encolhido: pelos arranjos maquínicos que o constroem e o animam; pelos discursos que circulam através dele; pelas linguagens que o ocupam; pelos desejos que o movem; pelos poderes que o saturam; e pelo tecido material que o amarra. [...] Há uma insistência no fato de que o sujeito é limitado, de que ele é fixado por uma infinidade de aparatos sociais (SILVA, 2001, p.82).

Nesse sentido, tomamos o que Tomaz Tadeu nos fala sobre a noção de modo de endereçamento,14 que, segundo ele, foi criada para lidar com a relação entre o lado de “fora” - da sociedade - e o lado de “dentro” - da psique humana. Fala da importância do resgate do sujeito no que se refere à identificação que há entre o lado de dentro deste sujeito e o que se apresenta para ele do lado de fora, ou seja, pensando a sociedade e o Movimento Social como o lado de fora, estes deveriam estar sintonizados para as posições que ocupam os sujeitos-alvo desta relação. Esta posição de sujeito, segundo Silva, não é uma postura construída apenas pelos aparatos sociais, os quais podem encolher o sujeito. Nesse sentido, o autor nos instiga a pensar que há pressupostos construídos sobre quem serão os sujeitos a aderir ao movimento social, e estes pressupostos têm de estar sintonizados para a posição do sujeito-alvo. Ou melhor, os pressupostos dos coletivos devem estar abertos ao que vem da subjetividade dos sujeitos, e esta diferencia-se constantemente. Um Movimento social será tão mais interessante ao sujeito tanto quanto for amplo em espaços de alteridade para que este sujeito encontre afinidade ali, uma afinidade individual, subjetiva, de cada um, que encontra espaço no erro, na “brecha” que se mantém mesmo frente aos pressupostos dados para o coletivo. Assim, não há um esforço, mas um deslizamento do Movimento para a mudança. Os sujeitos se sentem bem nele, o reconstroem e se reconstroem nele.

É nessa perspectiva que pensamos a individualidade, a subjetividade da mulher/feminina dentro dos coletivos e dos Movimentos Sociais. Estes últimos, se deixarem espaços para a subjetividade, para a alteridade, erram o alvo, para que os sujeitos consigam se manter e manter o coletivo. Entendemos que esse errar que deixa espaço para a construção,

14 Assim, esta noção é exemplificada através do modo de endereçamento dos filmes. O autor se questiona sobre

o porquê de alguns filmes conseguirem alcançar ampla aceitação ou até mesmo encantamento do grande público e entende que, para que isso aconteça, o filme tem de estar sintonizado para as posições que ocupam os sujeitos- alvo do filme.

nesse “intervalo” da alteridade, é o que nos faz pensar Silva (2001). Não existe de antemão uma identificação, ela se constrói no embate.

Nos movimentos sociais, esse embate é a ação, pois que brigam com o lado de fora, ou seja, com aquilo que pode “encolher o sujeito”. Assim, deixam espaço para a criação e o endereçamento torna-se fraco, não dirige tanto. Mas eles podem, sim, encolher o sujeito que já aderiu e está dentro do movimento, por isso tem-se de constantemente se encontrar espaços para a construção do sujeito, inclusive para os mais “encolhidos” desejos inconscientes.

Mas como esse embate constante ocorreria sem uma sustentação pelo coletivo? Uma ocupação ou acampamento é vivência de uma história de cada um: se está ali, se vive a situação e seus inúmeros percalços no real, os quais, sem a sustentação pelo coletivo, poderiam ser vivenciados como uma experiência que encolhe ainda mais o sujeito, fazendo com que este se esconda ainda mais devido a vivência de muitos desconfortos e necessidades apontados pela cultura como difíceis de serem suportados. Nesse sentido, uma identificação com um filme ou até mesmo o divã do analista são instrumentos de reflexão sim, mas que lidam com significados e os deslocam (sustentados pela transferência no caso da análise e pelo não pertencimento real à história no caso do filme). Diferentemente, no movimento social, falamos de ação que constrói ação e, mesmo assim, falamos de construção de espaços para a expressão de subjetividades. É nestes termos que entendemos que os sujeitos do MST conseguem encontrar espaços para seus desejos no grupo, podendo formar um coletivo construído pelas subjetividades.

No caso da feminilidade, além dessa liberdade que pode ser encontrada para os desejos do inconsciente, dada pela ação, como já falamos, entendemos que o Movimento possui uma estrutura que facilita a dialética da feminilidade: nesta ocorre o mesmo “jogo” ativo/passivo vivenciado nos movimentos sociais, ou seja, a presença no espaço público que desacomoda os sujeitos e uma sustentação da subjetividade desses sujeitos pelo coletivo, o que nos remete ao movimento que vai da atividade da feminilidade (ligada ao trabalho no espaço público), à sua passividade (ligada à indeterminação) que é efetivamente “feminilidade”, a qual, ao ser sustentada pelo coletivo, encontra respaldo para construir o novo. Isso não quer dizer que essa construção do novo está dada de antemão, como já falamos, a sustentação dada pelo coletivo pode determinar exercícios de atividade e de passividade se estes não forem novamente requestionados.

Nesta direção é que entendemos que a noção de amizade, vista no contexto da estética da existência, em Foucault, pode nos ajudar a pensar essas questões. Ortega (1999, p. 166) nos diz que essa noção nos fala da necessidade de se construir entre as pessoas teias de relações flexíveis onde os sentidos podem sempre fugir das normas que mantêm de forma fixa