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A professora e um conflito feminino: num movimento de ser professora

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Academic year: 2021

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RIO GRANDE DO SUL

MESTRADO EM EDUCAÇÃO NAS CIÊNCIAS

LAIZA FRANCIELLI BORTOLINI DOS SANTOS

A PROFESSORA E UM CONFLITO FEMININO

Num movimento de ser professora

IJUÍ

2009

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LAIZA FRANCIELLI BORTOLINI DOS SANTOS

A PROFESSORA E UM CONFLITO FEMININO

Num movimento de ser professora

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Educação nas Ciências da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio grande do Sul – UNIJUÍ, como requisito parcial para a obtenção de grau de Mestre em Educação.

Orientadora : Elza Maria Fonseca Falkembach

IJUÍ

2009

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AGRADECIMENTOS

A minha mãe Neiva, pelo apoio, incentivo e confiança. Por lutar junto comigo. E também por me mostrar, com sua história de vida, que é possível construir realizações de uma maneira feminina, sendo excelente profissional e mulher: dualidade. A ela toda a minha admiração e gratidão. Sem ela, sem o que ela me ensinou a ser, nada disso teria se concretizado.

A meu irmão Iron, companheiro de alegrias diárias, que com seu coração bondoso torna a vida muito mais bonita.

A meu pai Iran, pelo incentivo e pela capacidade que teve de mudar suas concepções e tudo o que aprendeu, a fim de incentivar seus filhos a buscarem uma vida diferente daquela que lhe ensinaram a buscar.

Ao Marcelo, pela paciência, pelo extremo carinho, pelo amparo nas horas de aflição e pelo apoio incondicional ao meu envolvimento, exclusivo aos estudos, durante este período. Por aceitar sempre com admiração as minhas escolhas.

A minha orientadora Elza Falkembach pela constante demonstração de envolvimento, dedicação, pela grandeza em afirmar que aprendemos mutuamente, pelo saber que não minimiza quem com ela vem aprender, mas sim, potencializa. A seu esposo Jorge Falkembach, por participar e se tomar por nossos questionamentos.

Aos membros das bancas de qualificação e defesa, pelas sugestões e questões.

Pela convivência inesquecível com os professores e colegas deste Programa de Mestrado, os quais proporcionaram momentos em que nos permitimos, e temos como prioridade, pensar sobre as questões que nos são pertinentes. Mesmo sabendo que o percurso não termina, já existe muita saudade desta etapa.

E finalmente, aos professores e professoras das escolas pesquisadas, a eles agradeço de forma muito especial. Pessoas que falaram de sua vida, seus sofrimentos e alegrias a mim, independente de serem conhecidas desde a infância ou há apenas um dia. Àqueles que, além de abrirem sua vida para a pesquisa, também abriram, para mim, a porta das suas casas e reservaram um lugar em sua mesa. Pelo envolvimento, demonstrado pelas panelas de feijão que queimaram enquanto conversávamos...

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RESUMO

Esta dissertação tem como intenção pensar a subjetividade da professora, ou seja, a feminilidade e sua associação com a docência levando em conta, também, o sofrimento docente. Entendemos que a postura da mulher frente à docência é condizente com o modo com que esta exerce a feminilidade nos diversos espaços que ocupa. Para compreender o que pontuamos, nos utilizamos de teorias que versam sobre a constituição psicológica e cultural da feminilidade e da professora, principalmente a partir de referenciais ligados à psicanálise e à história e cultura da feminilidade. O ser feminino é um exercício que conjuga atividade e passividade. O lado ativo do feminino se refere ao ser sujeito, estar implicado subjetivamente, desejar; já o passivo pode ser caracterizado como ser objeto de desejo do outro e, com isso, ter um gozo. Podemos supor que a feminilidade é a estrutura sexual mais freqüente na escola, afinal há uma tendência aos sujeitos desta instituição a acolher e “retratar” uma demanda dada pelo discurso social, o que vemos nos trabalhos de diversos estudiosos desta questão. Entendemos que a feminilidade está em maior número presente em mulheres, mas também em homens. Diante das demandas atuais direcionadas a educação, ou seja, as demandas educacionais e também as relativas à formação da personalidade (Tedesco, 2001), constatamos que, na medida em que a escola sente suas responsabilidades aumentadas e seus integrantes se vêm limitados para compreendê-las e assumi-las, manifestam-se repercussões sobre a saúde psíquica especialmente da professora. Entre os anos de 2005/2006, durante um trabalho na área da psicologia realizado no município de Jóia - RS/Brasil, entramos em contato com as escolas do município e nos surpreendemos com os problemas apontados e as demandas das suas professoras a partir desses. Entre vinte e três escolas acabamos fazendo de duas delas objeto de pesquisa, uma situada em área urbana (EUr) e outra em um assentamento do MST (EDA). As falas originadas das entrevistas individuais e encontros coletivos, feitos com professoras e professores, revelam diferenças entre as duas escolas quanto a posturas, sexualidade, sofrimentos, construção de identidades, prática docente das professoras... Constatamos, em ambas as escolas, maneiras diferentes que as professoras encontraram - ou foram possibilitadas de encontrar - para lidar com problemas da nossa época, para questionar e enfrentar o que é dado culturalmente em nossa época. O que diferencia as escolas é que, em EDA, mesmo frente à queda de representações coletivas, as professoras, sob a ascendência do Movimento Social, seguem um caminho que mantém fortes a representação coletiva e as subjetividades das professoras que integram o coletivo escolar. Isso acontece porque suas decisões que vêm da confrontação de opiniões encontram, ao mesmo tempo, uma instância terceira para se inscreverem. O Movimento Social é reconhecido como essa instância terceira, a qual pode, por sua vez, determinar os sujeitos, relativizando sua autonomia. Coletividade assemelhada aparece como demanda em EUr; suas professoras não reconhecem uma instância terceira, e cobram da escola, do governo, por não oferecer um coletivo que lhes sustente com referências. Dessa forma, a vida coletiva fica prejudicada. Por outro lado, encontramos as professoras de EUr em momento de busca de “lugar” para suas subjetividades e para questionamento do discurso quanto ao ser professora. Manter a vida coletiva em sintonia com a subjetividade é estar em um discurso de feminilidade dual (ativa e passiva), ou seja, portar a linguagem / discurso social, mas também a singularidade que questiona, mas se integra a esse discurso. Em EUr, essa dualidade na feminilidade é buscada tanto quanto em EDA, porém aparece de forma inconsciente, conflitando, contudo, com a submissão que se explicita no comportamento da professora. Então estas professoras falam de um sofrimento por uma posição de objeto frente ao discurso, de instrumento do discurso, ou seja, objeto das demandas do outro. Em meio a isso o corpo paga com sintomas, mas também há um gozo; não há implicação consciente do sujeito no conflito, que é individual, mas também próprio ao

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atual laço social. Vivenciamos um novo laço social em que nele se abre a via da singularidade, pois o sujeito não se satisfaz apenas com o que foi instituído. Dessa forma, a postura feminina - quando dual - é paradigmática ao caminho frente ao novo laço social, pois comporta o discurso e a exceção. Isso aparece nas duas escolas embora, em uma delas, de forma mais evidente.

Palavras-chave: Exercício dual de feminilidade, subjetividade, mulher/professora, política/movimento social, sofrimento.

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ABSTRACT

This thesis is intended to think the subjectivity of the teacher, that is, femininity and its association with teaching taking into account also the suffering teacher. We believe that the position of women facing the teaching is consistent with the way he carries on femininity in different areas it occupies. To understand that we recognized in the use of theories that deal with the psychological and cultural constitution of femininity and teacher, mainly of references related to psychoanalysis and the history and culture of femininity. Being female is an exercise that combines activity and passivity. The active female referred to be subject, be involved subjectively want, the person may already be characterized as the object of desire of the other and, therefore, have a joy. We can assume that femininity is the most common sexual structure in school, after all there is a tendency to subject the institution to welcome and "portray" a demand by the social discourse, what we see in the work of many scholars of this issue. We believe that femininity is more present in women but also men. In the face of current demands directed to education, that is, the educational demands and also those relating to the formation of personality (Tedesco, 2001), we find that, as the school feels its increased responsibilities and its members are forced to understand them and take them, manifest effect on the mental health especially the teacher. Between the years 2005/2006, for a job in the field of psychology developed in the city's Jewelry - RS / Brazil, we contacted the schools in the town and were surprised by the problems mentioned and the demands of their teachers from these. Among twenty-three schools end up doing two of them the object of research, one located in an urban area (EUR) and the other in a settlement of the MST (EDA). The reports originated from individual interviews and group meetings, made with teachers, show differences between the two schools and the attitudes, sexuality, suffering, identity construction, teaching practice of teachers We find, at both schools, different ways that the teachers found - or were possible to find - to deal with problems of our time, to question and confront what is culturally given in our time. What sets the schools is that in EDA, even before the fall of collective representations, the teachers in the ascendancy of the Social Movement, following a path that has strong representation and collective subjectivities of teachers in the school community. This is because their decisions that come from the confrontation of opinions are at the same time, a third instance to enroll. The Social Movement is recognized as the third instance, which can, in turn, determine the subjects, relativizing its autonomy. Collective resembled appears as demand EUr, their teachers do not recognize a third instance, and charge the school, the government did not offer a collective that sustains them with references. Thus, the collective life is impaired. Moreover, we find the teachers EUr time in search of "place" for their subjectivity and to question the speech about being a teacher. Keep life in line with collective subjectivity is to be in a discourse of femininity dual (active and passive), or possess the language / social discourse, but also the singular question, but if this integrates speech. In EUR, this duality in femininity is sought as much in EDA, but appears unconscious, conflicting, however, with the submission that explains the behavior of the teacher. Then these teachers talk about suffering for a forward position object to the speech, a tool of speech, or object of the demands of another. Through it, the body pays with symptoms, but there are also a joy, there is no conscious subject's involvement in the conflict, which is individual, but also own the current social bond. We experience a new social bond that it opens the way of singularity, because the subject is not satisfied only with what was established. Thus, the feminine approach - when dual - clearly reflects the way forward to the new social bond, since it contains a speech and exception. This appears in two schools, although in one of the most obvious.

Keywords: Exercise dual femininity, subjectivity, woman / teacher, political / social movement, suffering.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO... 08

1 FALANDO DA PROFESSORA - EM UMA ESCOLA DE ASSENTAMENTO (MST) E UMA ESCOLA URBANA NO MUNICÍPIO DE JÓIA - RS/BRASIL... 18

1.1 Dois lugares ... 19

1.2 Ser professora/educar... 20

1.3 A relação com “o certo e o errado”... 27

1.4 Começando a nomear o sofrimento... 28

1.5 O sofrimento: em EDA um conflito, em EUr o não conseguir mudar... 43

1.6 Relação com o outro: mudança (movimento) / estagnação... 50

2 FALANDO DA FEMINILIDADE NA PROFESSORA... 63

2.1 A Relação com a expressão do que “lhe falta” ... 63

2.2 A relação com os “atributos paternos” ... 66

3 A DUALIDADE NO EXERCÍCIO DA FEMINILIDADE... 74

3.1 O gozo outro e o desejo femininos ... 74

3.2 A mulher/feminina na política... 76

3.3 O (des) equilíbrio da dualidade na feminilidade... 85

3.4 A feminilidade “sossegada” na política... 92

3.5 O “roubo” do falo paterno... 97

3.6 Superar o falo paterno a partir da dimensão da lei “encarnada” na figura do Próprio Movimento: autonomia? ... 100

3.7 A dialética dada pela perda do nome. A “autonomia” a exemplo da feminilidade “sossegada” ... 103

4 UMA IMPOSSIBILIDADE PARA O EXERCÍCIO DA FEMINILIDADE... 106

CONCLUSÕES... 119

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INTRODUÇÃO

O fato de a maioria dos profissionais dedicados à docência ser constituída por mulheres nos instiga a pensar esta categoria a partir do feminino: suas demandas, seus conflitos, em especial o exercício do trabalho da professora e, consequentemente, o aprendizado de seus alunos. Não só nesta, mas em outras profissões, há algo do sujeito em ação que define a sua forma de exercer a profissão e, também, sua satisfação na realização das atividades que esta pressupõe.

Para a mulher, ser professora foi uma de suas primeiras funções fora do lar, no sentido de trabalho. Ser professora acompanha um modelo de mulher próprio de uma época em que as mulheres tinham “tarefas de mulheres”. Ao exercer a profissão de professora davam à sociedade a segurança de que na escola as crianças seriam muito “bem educadas”, ou seja, muito bem cuidadas por uma quase mãe.

Essas características, culturalmente1 definidas como função de professora, ligaram-se historicamente à mulher, pois sabemos que a feminilidade encontra-se, na maioria dos casos, nas mulheres, mas não só.

Em meio a esse discurso que perpassa a educação, não podemos nos esquecer dos professores, que, mesmo em menor número, coexistem com as professoras na instituição educativa e participam de um mesmo discurso educacional. A partir da psicanálise, entendemos que a postura feminina independe do sexo anatômico e é encontrada em muitos homens.

Dessa forma, apesar de socialmente inúmeras mudanças ocorrerem em relação à participação da mulher feminina, tanto de forma profissional como em relação à sua sexualidade, no meio educacional ainda se mantém um lugar para a professora muito ligado ao que tradicionalmente, no século XIX, lhe é reservado. Apesar deste lugar trazer certa segurança à sociedade e, segundo alguns autores, ser mantido pelo medo inconsciente que a humanidade tem de perder a mãe,2 ele não é um lugar natural das professoras.

1 Neste trabalho, usamos o termo “cultura” numa referência à cultura dominante.

2 Khel (1998) fala de um medo constituinte e inconsciente, que, sentido no início da vida em relação à função

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Para compreendermos a ligação entre a posição feminina e a instituição educativa e aproveitando para nomear de forma inicial a feminilidade, partimos dos pressupostos da psicanálise e, portanto, levamos em conta a questão do desejo. Dessa forma, entendemos que o ser feminino é um exercício que tem um lado ativo e um lado passivo: o primeiro se refere ao ser sujeito, estar implicado subjetivamente, desejar, e que define especialmente a masculinidade. Já o segundo mostra o outro lado da feminilidade, o qual a define, pois a diferencia do masculino: ser objeto de desejo do outro e, com isso, ter um gozo. A partir da psicanálise, entendemos como gozo uma satisfação que ininterruptamente inaugura outras buscas por satisfação, o que seria diferente de sentir prazer, pois este aliviaria as tensões e encerraria a busca. Dessa forma, o gozo se definiria como “as diferentes relações com a satisfação que um sujeito desejante e falante pode esperar e experimentar, no uso de um objeto desejado” (CHEMAMA, 1995, p.90).

O lado passivo pode ser exemplificado pelas ações maternais e domésticas; é uma resposta ao que a sociedade esperava e ainda hoje o faz (mas já com contradições) relativo à feminilidade. Podemos supor que a feminilidade é a estrutura sexual mais comum na escola, afinal há uma tendência aos sujeitos desta instituição a acolher e “retratar” uma demanda dada pelo discurso social, o que vemos nos trabalhos de diversos estudiosos desta questão. Entende-se que a feminilidade comporta uma bissexualidade que lhe permite tomar como identidade as demandas dadas pelo outro e as referidas ao exercício da atividade. De forma diferenciada, o que se relaciona com a masculinidade é o exercício da atividade.

Entendemos que hoje a sociedade abriu outro espaço para a mulher (ou ela mesma construiu) que lhe possibilita exercer funções e ocupar lugares que antes eram reservados apenas ao masculino e que falam, portanto, do lado ativo da feminilidade, permitindo que esta exercite algo que faz parte dela, mas que por muitos anos ficou escondido, pois recalcado. Segundo a psicanálise, o recalque retira da consciência sentimentos que para o sujeito são dolorosos, mas que, ao mesmo tempo, dizem de algo que é desejado: desejado inconscientemente, mas censurado pela consciência. Negar esses desejos através do recalque é uma forma de evitar conflitos entre o que é desejado e o que é permitido, mas assim o desejo é barrado. É então que, para a professora, a possibilidade de acesso ao novo lugar aberto ao feminino entra em conflito com o discurso social relativo ao educar: ao mesmo tempo em que se abre espaço para a professora, este é limitado.

A partir de Fernandez (1994) e Kehl (1998), pensamos que este discurso mantém a professora muito próxima do recalque e, portanto, do sintoma patológico. Isso porque se antes

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sua posição estava adequada ao que a sociedade e a maioria das mulheres compartilhava (mesmo que, muitas vezes, fosse uma posição imposta), hoje, lhe mostra a parcialidade de suas possibilidades de satisfação.

A pesquisa aqui apresentada surgiu a partir do contato direto com alunos e, principalmente, professores de vinte e três escolas de um pequeno município no Rio Grande do Sul /Brasil, enquanto a pesquisadora atuava como psicóloga na Secretaria de Educação e Cultura no período de 2005 - 2006. Partiu de um pedido comum à maioria destas escolas: “não conseguimos mais ter autoridade sobre nossos alunos, eles não nos escutam e não nos obedecem mais, rebatem e argumentam sobre nosso saber. Mas, ao mesmo tempo, estão descomprometidos em relação à sua aprendizagem”.

Esse pedido diz de questões relativas à sociedade contemporânea, atualmente discutidas por muitos pesquisadores e estudiosos do meio educacional que apontam, por sua vez, um fracasso. Segundo Tedesco (2001, p. 38), “o desaparecimento da distinção entre professor e aluno faz parte do processo mais global de crise da autoridade na sociedade contemporânea”. A crise da autoridade adquire sua expressão máxima quando chega às áreas pré-políticas do exercício da autoridade: como as relações entre professores e alunos e entre pais e filhos. Tedesco escreve (p.32) que há um enfraquecimento da capacidade socializadora da família - a qual ele chama de socialização primária. Tendo ocorrido isso nas esferas de socialização primária familiar, continua Tedesco (p.93), surgem novas demandas para a escola: antes instituição da socialização secundária - a qual parte do pressuposto de que o núcleo básico da personalidade e da incorporação à sociedade já foi adquirido, cabendo então a ela o núcleo básico de desenvolvimento cognitivo, ou seja, informações, conhecimentos, valores, atitudes -, deve agora, pelas demandas atuais, incorporar a formação da personalidade, a qual, segundo este mesmo autor, se realiza em circunstâncias de enorme carga emocional. Essa carga afetiva os pais transmitem de forma diferente daquela do passado, por motivos como menor tempo de convivência entre pais e filhos e declínio de autoridade dos pais sobre os filhos. A escola está frente a demandas de um novo papel, e seus sujeitos frente a novos conflitos.

Na medida em que a escola sente suas responsabilidades aumentadas e seus integrantes se vêm limitados para compreendê-las e assumi-las, percebemos repercussões sobre a saúde psíquica especialmente da professora. Manifesta-se a somatização de um sofrimento construído diante desse tipo de conflito.

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Sabemos que esta é uma questão que envolve toda a sociedade e todo o meio educacional; é uma questão social, que se presentifica para masculinidades e feminilidades e, mesmo assim, enfatizamos a feminilidade. Isso acontece porque, como antes explicitamos, além de a grande maioria docente ser constituída por mulheres e pela feminilidade, esta última, quando pensada a partir da psicanálise, apresenta uma plasticidade maior para tomar como demanda própria as demandas sociais dadas para os sujeitos. Isso graças ao seu lado passivo, que antes comentamos, o qual diz de uma entrega da feminilidade ao desejo do outro, portanto também uma entrega ou “encarnação” das demandas sociais. Dessa forma, a feminilidade caracteriza, explicita e vivencia os conflitos colocados na cultura e as “saídas” e dificuldades contextualmente encontradas.

Frente ao exposto, a pesquisa define como tema o exercício da feminilidade na professora, que entendemos influenciar diretamente nas formas de exercer a docência. No caso, antecipamos, com respaldo na psicanálise, que a postura da mulher frente à docência é condizente com o modo com que esta exerce a feminilidade (nos diversos espaços que ocupa) e condicionante de sofrimento na profissão de professora.

A pesquisa foi realizada em duas escolas do município, uma, localizada em área urbana, a qual chamamos de Escola Urbana (EUr) e outra situada em área rural, a qual chamaremos de Escola de Assentamento (EDA).

A escolha da EUr em questão se dá pelo fato de haver existido muita demanda de trabalho psicológico por parte desta escola (específico e relativo ao tema de pesquisa em questão), no período de 2005 e 2006. A escolha da EDA baseou-se no entendimento de que esta escola possui uma conjuntura própria, revelada por comportamentos diferenciados, que profissionais de educação do município julgam se constituir pela distância física em relação às outras escolas do município.

As duas escolas foram selecionadas entre as vinte e três escolas públicas do município, a partir do trabalho realizado pela pesquisadora junto à Secretaria de Educação e Cultura do mesmo.

Em relação às questões relacionadas à docência e à feminilidade, percebem-se diferenças na EDA e EUr - não em relação às crianças, pois, como revelam as professoras, as primeiras falam, reivindicam, argumentam, “apontam” erros, como em todas as outras escolas

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- mas pelas diferenças que aparecem nas falas das professoras em relação à maneira como essas encaram esta “fala” dos alunos.

A primeira vez que esta diferença apareceu de forma mais clara foi ainda no período de trabalho da pesquisadora no município, em uma reunião promovida pela Smec onde estavam presentes representantes de todas as escolas, os quais se queixavam tentando encontrar saídas para o problema relativo à indisciplina e ao descomprometimento dos alunos com sua aprendizagem, que até aquele momento parecia consenso. Até que uma das professoras explicita que na sua escola, uma escola de assentamento, ela não consegue perceber este tipo de problema. Professores de duas outras escolas, também de assentamento, concordam com ela.

Outra diferença aparece na forma como cada escola pede o auxílio psicológico. Esses pedidos vêm de professoras que falam de crianças com problemas de aprendizagem, conflitos dentro de grupos de trabalho, mas principalmente de necessidades de palestras. As palestras sugeridas pelas EUrs giram em torno de assuntos sobre sexualidade, valorização do estudo e do professor, autoestima, motivação, domínio de turma e palestras aos pais sobre a delegação de responsabilidades que fazem à escola. São questões que parecem se referir aos sujeitos individuais, apontando também um sofrimento docente a ser amparado. Já nas solicitações que vêm das EDAs, as questões estão mais ligadas ao social, à sociedade, revelando conflitos a serem enfrentados pela escola e pelos docentes, como a drogadição e a liderança.

Nas EUrs, a questão da sexualidade, especialmente, diz de um tema cujo enfrentamento a professora delega a outrem, neste caso à psicóloga, poderíamos entender que não é algo de que possa falar? Parece sentir dificuldade. Mas também nas EDAs, o fato das questões e solicitações ligarem-se mais ao social poderia nos questionar sobre a implicação destas professoras frente às questões docentes atuais; sobre uma fuga ou esconderijo das questões individuais através da coletividade. Poder-se-iam ambos estes comportamentos ligarem-se à concepção construída sobre “o ser professora”, o qual, durante muito tempo e, até hoje, possui um lugar que lhe foi dado pela sociedade: o de passiva, doméstica, com uma sexualidade tão escondida que chega a ser quase inexistente e que perante seus alunos aparece numa confusão mãe / tia / professora? Poderia ser ainda mais difícil admitir e administrar estas questões e sofrimentos quando se está dentro de um movimento social, o qual exige posturas diferenciadas dos sujeitos?

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Nas EDAs, porém, os pedidos de palestras referentes à sexualidade são associados a questões bem específicas vivenciadas pelos alunos na atualidade, como os relacionamentos amorosos fugazes e os conflitos e sofrimentos que se criam frente aos novos papéis de homens e mulheres. Ao falar com estes alunos durante as palestras, percebemos que eles expuseram e discutiram com a professora o assunto, o que definiu a demanda que eles têm, e que foi transmitida claramente pela professora.

Passamos a conjecturar, a partir desses pedidos de ajuda, sobre as posturas relativas à feminilidade que poderiam estar sendo vivenciadas pelas professoras do município, posturas estas que, com suas demandas e problemas diferenciados, nos questionam sobre um diferente tipo de laço social que cada instituição/professor constrói a partir do lugar que ocupa. O que reflete uma postura tradicional, que mantém as características que o discurso social afirma sobre o sujeito feminino e que, segundo a psicanálise (Kehl, 1996), barra seu desejo, pois o limita em uma postura doméstica, passiva, com uma sexualidade recalcada. Esta seria a postura própria à professora, como aponta Fernandez (1994). A outra postura é a moderna (Kehl, 1996), a qual permite à feminilidade compartilhar das possibilidades que o social lhe oferece hoje, que se traduzem pelo investimento em sua vida não só no espaço doméstico, mas também no espaço público, profissional. Esta última postura condiz com a dualidade que a psicanálise associa ao desejo na feminilidade (Pommier, 1991): passivo/ativo. Nos intriga saber, também, que desdobramentos, conflitos e sofrimentos a postura moderna feminina traz para a professora, postura esta que, no movimento social pode ser impulsionada pela condição de participação no espaço público.

Começamos a nos perguntar se pode haver diferenças no “como”, em diferentes escolas, as professoras se posicionam frente a um conflito da modernidade e como encontram realizações frente a ele. Kehl (1998) afirma que as questões modernas surgem para a feminilidade devido às novas demandas sociais. Para ela, o impasse que percebemos no sujeito moderno, ou seja, o conflito entre o desejo de ascensão social e autonomia (que sustentam a ordem burguesa, ideal do individualismo moderno) e entre as exigências de filiação e disciplina familiar (sem as quais, como nos afirma Kehl, esta ordem do ideal moderno também se vê ameaçada), este mesmo impasse, aparece fortemente no sujeito feminino. Para este aparece a questão de se colocar em uma postura passiva / doméstica / assexuada, mandato ao sujeito próprio de um ideal demandado3 à feminilidade, ou seja, ser

3Como antes já comentamos, segundo a psicanálise, a demanda direcionada à mulher constitui sua identidade, já

que parte da feminilidade é ser objeto de desejo do outro. Dessa forma, a mulher tem uma grande plasticidade

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objeto fixo no discurso do outro (ideal advindo, até hoje, do masculino e da sociedade); ou colocar-se numa postura ativa, autônoma, individual, ligada ao sujeito moderno - uma postura de ser sujeito. Nesse sentido, Kehl nos afirma que:

[...] como o campo simbólico nunca é unívoco – característica que se acentua intensamente na modernidade -, outros discursos e outras expectativas entram em choque com os ideais de feminilidade;

[...] à feminilidade como estrutura, corresponde a um conjunto de funções socialmente essenciais, opunha-se a nova personalidade individual, diferenciada de acordo com a composição “autoral” de cada sujeito (1998, p.53).

Este conflito pode ser positivo, pois se favorecer o exercício de atividade e passividade implica uma mudança constituidora e não comum à professora, a qual parece estar ligada de forma radical a um modelo de feminilidade referente ao que Kehl nomeia como um conjunto de funções socialmente essenciais; por outro lado, este mesmo conflito pode constituir sofrimento, pelas diversas saídas que o conflito possibilita. Afinal, também é próprio da mulher, como antes afirmamos, ser constituída pela demanda do outro, por funções socialmente essenciais, as quais são contraditórias às demandas de uma constituição autoral de cada sujeito.

Diante dessas questões, passamos a nos perguntar sobre o que poderia estar ocorrendo entre as professoras de assentamento, cuja prática aponta para um movimento de mudança de postura. Frente a isto, a pesquisa pergunta sobre a possibilidade de um movimento subjetivo na professora de EDA que a diferencia de professoras de outras escolas públicas. Levanta a hipótese de que as professoras de EDA estariam exercendo de forma diferenciada sua feminilidade, ou seja, de forma dual (num movimento entre atividade e passividade) e pergunta: a participação em um movimento social, em uma prática política, poderia estar permitindo esse movimento subjetivo que afeta a feminilidade e a docência? Por outro lado, poderíamos entender que a experiência de passividade na feminilidade fica comprometida, escondida e não questionada para estas professoras, já que o movimento lhes cobra a participação pública e, na escola, os questionamentos referentes à professora passiva (mascaramento da sexualidade, confusão mãe / tia / professora) parecem não aparecer como questões (pelo menos nas demandas de palestras surgidas nos contatos iniciais, no período de trabalho da pesquisadora)?

Portanto, a pesquisa objetiva tratar os temas da docência e da feminilidade com professoras da EDA e EUr para compreender se há diferenças quanto ao exercício da feminilidade - comportamento, postura, discurso - e quanto à prática pedagógica entre

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professoras de EDA e professoras de EUr; ou se há apenas sutilezas nas falas, as quais após serem analisadas revelam discursos semelhantes. Se existem diferenças, a pesquisa se propõe a verificar como elas se apresentam e qual o conjunto de fatores que possibilitam que elas ocorram.

A amostra foi constituída por trinta professores adultos, na faixa etária entre 20 e 54 anos, sendo vinte e cinco destes do sexo feminino e cinco masculinos. Destes, quinze estão situados na EUr (onde quatorze são mulheres e um é homem) e quinze na EDA (onde onze são mulheres e quatro são homens). Dos trinta professores, 10 foram entrevistados individualmente, estes foram definidos durante os encontros coletivos.

A pesquisa trabalhou com referências teóricas baseadas em abordagens relativas à história e à cultura da feminilidade e, também, referidas à psicanálise. A opção teórico-epistemológica exigiu que metodologicamente a pesquisa se organizasse como qualitativa, apresentando descrições, análises e interpretações.

O trabalho de campo foi realizado em etapas e por meio de dois procedimentos. Primeiramente, mediante conversas com o grupo de professores de cada escola, orientadas por questões norteadoras; posteriormente, por entrevistas individuais com perguntas abertas, de livre dissertação oral. Os encontros coletivos ajudaram a definir o conteúdo das entrevistas individuais, dirigidas por um formulário que se manteve flexível a modificações no decorrer das entrevistas.

Para registro das entrevistas, foi utilizada gravação de áudio em MP4 – arquivos de áudio e anotações em diário de campo da pesquisadora. Alguns detalhes da condução das entrevistas foram registrados no diário de campo.

As perguntas que constituíram os roteiros de entrevista contemplaram tanto a vida profissional como a vida pessoal das professoras. Em razão disso, no primeiro dos encontros com as escolas foi apresentado o “Formulário de Consentimento Livre e Esclarecido”, a fim de facilitar o esclarecimento de qualquer dúvida e afastar receios de mau uso dos depoimentos. Inicialmente para a direção das escolas e posteriormente nos trabalhos em grupos, foram feitos os esclarecimentos relativos à pesquisa: seus objetivos, justificativa, relevância, procedimentos, benefícios esperados e garantia de anonimato e possibilidade de desistência, se assim desejassem, a qualquer momento.

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O estudo foi desenvolvido sob amparo da Resolução 196/96, aprovada pelo Conselho Nacional de Saúde, que regulamenta a pesquisa em seres humanos. Para tanto, foi encaminhada solicitação de autorização à Smec do município para realização de pesquisa e para abordagem da população em estudo.

O projeto foi submetido à análise do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Regional do Noroeste do Rio Grande do Sul, conforme determina a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, obtendo parecer favorável à sua realização.

A validade do que foi escutado ou observado foi dada pelo nível de identificação do entrevistado / escutado com a temática da pesquisa, o que pode ser verificado através de devoluções daquilo que foi dito, principalmente nos encontros coletivos com os entrevistados. Por ser uma pesquisa que trata de práticas e subjetividades humanas, o risco de exposição dos sujeitos é maior, porém ele pode ser amplamente reduzido a partir de um trabalho realizado e orientado com firmes preceitos éticos e mediante conferência do texto pelos entrevistados.

Quanto à análise dos dados da pesquisa combinou, como antecipamos, o referencial de análise da psicanálise com o referencial sociológico. Predominaram, contudo, na abordagem metodológica, as técnicas oferecidas por este último referencial.

A dissertação divide-se em quatro capítulos.

No primeiro capítulo, dialogamos com as falas das professoras das duas escolas contempladas pela pesquisa: A EUr, situada na área urbana do município, e a EDA, situada dentro de um assentamento do MST no mesmo município. Falaremos da professora – feminina, ou seja, do ser professora e dos significados atribuídos ao educar.

No segundo capítulo, ainda a partir das singularidades das falas das professoras de EDA e de EUr, falamos da feminilidade na professora, ou seja, refletindo sobre a constituição de sua feminilidade através de conceitos ligados à psicanálise. E, pensando a partir de suas falas, buscamos expor as sutilezas que perpassam a vivência da feminilidade em EDA e EUr, como esta se expressa em ambas escolas.

No terceiro capítulo, aprofundamos teoricamente o que constatamos nas falas nos capítulos anteriores. Em meio a essas questões, discutimos como se define o “ser feminino”. É então que trabalhamos a partir do que a psicanálise nos fala sobre a busca que se alterna entre

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dois opostos: a atividade e a passividade, o que produz um almejar constante, um exercício dual de feminilidade, que comporta a busca, da qual nos fala o feminismo, da mulher em direção ao espaço público, mas também a passividade da feminilidade. Fixamos, aqui, os conflitos que então se estabelecem. Dessa forma, pensamos a feminilidade como movimento - na cultura e na história - circulante, pois sua subjetivação acontece na relação dual com seus desejos ativos e passivos. É assim que a visualizamos influenciando e sendo influenciada pelos movimentos sociais.

No quarto capítulo, seguiremos aprofundando teoricamente o que constatamos nas falas nos dois primeiros capítulos. Tratamos das barreiras que impedem que o sujeito feminino seja “dono” de sua feminilidade, principalmente na figura da professora. Falamos dos mecanismos que promovem uma estagnação do exercício da feminilidade. Abordamos, em diversas situações e em meio a diferentes construções, como a professora convive com um sofrimento estagnante da feminilidade dual.

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1 FALANDO DA PROFESSORA – EM UMA ESCOLA DE

ASSENTAMENTO (MST) E UMA ESCOLA URBANA NO MUNICÍPIO

DE JÓIA - RS/BRASIL.

O que existe de semelhança e o que há de diferença entre a professora que atua em escolas de assentamentos do MST e aquelas que exercem a docência em escolas urbanas? Podemos afirmar que elas divergem quanto ao exercício da feminilidade - comportamento, postura, discurso - e quanto à prática pedagógica? Realmente existe essa diferença ou existem sutilezas nas falas que tornam diferentes discursos quase idênticos? Para respondermos a essas questões, faremos um longo percurso.

Entendemos, com respaldo na psicanálise, que a postura do sujeito/professora frente à docência é condizente com o modo com que exerce a feminilidade - nos diversos espaços que ocupa - e determinante na relação de prazer e sofrimento no desempenho de sua profissão. Por isso, este capítulo trata da professora de forma una: sujeito/professora.

Para começar a pensar esta hipótese, dialogaremos com as falas das professoras e professores em duas escolas, como explanamos na introdução deste trabalho: uma situada na área urbana do município de Jóia, a qual chamaremos de EUr (Escola Urbana) e outra situada dentro de um assentamento do MST no mesmo município, a qual chamaremos de EDA (Escola de Assentamento). Levaremos em consideração as entrevistas coletivas e individuais (dirigidas a todo o grupo docente - professores e professoras).

Neste capítulo nos propomos a apresentar depoimentos das professoras e comentá-los, apontando elementos teóricos, os quais serão aprofundados nos capítulos seguintes. Traremos os entendimentos (revelados) sobre como é o ser professora, sobre o educar, as relações com os mandatos culturais que apontam para o que é “certo e errado” no contexto em questão e algumas novidades que adentram o palco educacional, como a mídia; também a relação com o que vem dos alunos e do governo, ou seja, falas que mostram como estas professoras se relacionam / se colocam frente ao outro. Antes, porém, vamos caracterizar os lugares de pesquisa e os grupos que os ocupam.

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1.1 Dois lugares

As escolas pesquisadas possuem conjunturas muito específicas. A escola urbana situa-se dentro da área urbana do município, é uma escola municipal de primeira a oitava séries. Possui alunos cerca de 120 alunos oriundos da cidade e, principalmente, de uma comunidade situada à 1 Km da área urbana, mas também há alunos de outros locais do município. Os professores desta escola têm idades que variam entre vinte e cinquenta e quatro anos, a grande maioria é mulher, o único homem é também, no momento, o único da escola que não reside no município, vindo uma vez por semana para desempenhar suas tarefas como professor de educação física. Todas as outras professoras residem no município. São, portanto, professoras nativas do município. Para as entrevistas individuais a escolha dos professores foi aleatória, mas buscou-se contemplar a variação de idade na composição da amostra.

A escola de assentamento situa-se no meio rural à cerca de 35 Km da área urbana do município, é uma escola estadual com cerca de 350 alunos divididos em turmas de primeira série do primário até terceiro ano do ensino médio. Os alunos são quase que exclusivamente provenientes do assentamento. Já entre as professoras a maioria é de fora do assentamento: são quatro homens e onze mulheres. Cinco professoras da amostra são nativas do lugar e participantes do MST, moram em suas casas, algumas bem próximas à escola, porém, dez delas são professoras que vêm de outros lugares do município e também de outros municípios próximos, como Ijuí. Estas se hospedam em uma casa situada ao lado da escola durante toda a semana e entre elas há bastante rotatividade, pois são contratadas e não concursadas. Não se definem, portanto, por professoras nativas do lugar. Suas idades variam entre vinte e três e quarenta e seis anos. A escolha das professoras para as entrevistas individuais priorizou a mesclagem entre professoras nativas do lugar e as que vêm de fora para ser docentes, entrevistaram-se individualmente duas professoras nativas e três “de fora”.

Todos esses professores participam de um discurso local, de um lugar onde as pessoas estão juntas, participam do discurso do MST. Segundo Santos (2001), o estar junto é um modo de insurreição onde se descobre que, além de sermos o que somos, pode-se também desejar ser outra coisa. Santos nos fala desta insurreição frente à globalização, mas entendemos que ela não provoca mudanças somente frente à globalização, mas também em relação a todas as imposições da cultura e do que internalizamos destas imposições:

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Nisso, o papel do lugar é determinante. Ele não é apenas um quadro de vida, mas um espaço vivido, isto é, de experiência sempre renovada, o que permite, ao mesmo tempo, a reavaliação das heranças e a indagação sobre o presente e o futuro. A existência naquele espaço exerce um papel revelador sobre o mundo (SANTOS, 2001, p.114).

Segundo este autor, a força do lugar permite a cada pessoa ou coletivo realizar o mundo à sua maneira. Vemos, entre os professores pesquisados, um grupo que se situa em um lugar de contestação daquilo que é dado, um movimento social; e outro grupo onde o lugar que os reune é institucionalizado para a não contestação. Na medida em que olhamos para os dois grupos através de nossas questões de pesquisa, buscamos saber como os sujeitos se imbricam com seus desejos, vontades, frustrações e sofrimentos no lugar onde estão. Afinal, como nos adverte Santos, a pertença a um lugar faz o indivíduo descobrir a diferença deste frente ao mundo, porém, outra coisa é ultrapassar a descoberta da diferença e chegar à sua consciência: “Para isso, é fundamental viver a própria existência como algo de unitário e verdadeiro, mas também como um paradoxo: obedecer para subsistir e resistir para poder pensar o futuro” (SANTOS, 2001, p. 116). Portanto consideramos o lugar e especialmente o sujeito e sua existência objetiva e subjetiva.

1.2 Ser professora / educar

Nos encontros coletivos, realizados pela pesquisa, a primeira pergunta dirigida ao grupo de professoras nas escolas foi: “Como é para você ser professora?”, a qual foi seguida por uma segunda questão: “Para você como é educar?”

- Eu acho que ser professora não se detém só na parte pedagógica, mas também no humano, porque tu não faz o pedagógico sem o humano. Eu acho que além do conhecimento científico que o aluno tem que ter na escola o professor também tem que orientar ele para a vida, para o dia a dia, tentar mostrar alternativas, abrir caminhos (P. EUr).

- Se houvesse tanto o humano quanto o pedagógico em todos os momentos, em todas as escolas, em todos os professores, acho que seria muito melhor pra eles aprenderem e até para nós ensinarmos também (P. EUr).

- Professora pra mim é como diz a colega: ali não basta ser só pedagógico tem que ter o humano e acho que mais o humano do que o pedagógico [...] (P. EUr). - Eu acho que educar é ir além de ser professora. Porque tu tem que enxergar, embora muitas vezes a gente falha, eu, como professor, falho, minhas colegas falham, mas no educar tu tem que enxergar o aluno como um todo, não aquela parte fragmentada: onde o professor de história é o de história, o de matemática é o de matemática... mas tu te preocupar, como é que vou dizer (pausa), com a formação

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integral, com a formação mais completa. Porque educar não está só no conhecer científico, ele também está no... Como eu disse, o ser professor tem que estar no humano (P. EUr).

Há um entendimento, entre as professoras da EUr, de que, juntamente com o pedagógico - conteúdos pedagógicos - , a professora tem que se preocupar com a dimensão humana do processo educativo e do educando, educar para a vida. Constata-se que isso aparece em vários depoimentos e se apresenta como um mandato: “o ser professor tem que estar no humano” (P. EUr). Tedesco (2001), como já explicitamos, mostra com sua escrita que há uma nova demanda social para a escola, a qual deve agora, além de se preocupar com a parte cognitiva da educação, incorporar atividades vinculadas à formação da personalidade. Entendemos que essas novas demandas, ou uma determinada interpretação do que afirma o autor referido, são explicitadas na fala dessas professoras: o pedagógico referindo-se ao que Tedesco nomeia como o cognitivo, e o humano referindo-se ao que este autor refere como formação da personalidade (pensamento sistemático, solidariedade, criatividade, valores, capacidade de resolver problemas, capacidade de trabalhar em equipe...).

Na fala que segue, aparece o entendimento de que os alunos precisam de uma assistência mais afetivo-maternal do que informativo-instrumental. Essa assistência associa-se ao humano que afirmam veementemente ser importante no educar:

- [...] Se tu não tiver o humano tu tem que estar sempre em cima, tu está sempre preocupada com os alunos: se eles estão estudando, se eles não estão... até acho que a gente se preocupa bem mais com isso do que os próprios pais. Então, eu acho que pra nós, no momento, nós estamos é bem mais no humano do que no pedagógico. Claro que o pedagógico tu tem que ter, mas isso tem que ter. Agora, se não tiver um pouquinho de humano, trabalhar o humano com eles, não dá. Eles mesmos já vêm com esta carência de casa, de falta humana em casa e de carinho [... ] (P. EUr).

Dessa forma, as dimensões que tornam humano o educar são o “educar para a vida” e com afeto, mediante uma assistência quase maternal ao aluno. Se há uma demanda social para a escola advinda de uma diferente carga afetiva dada pelos pais aos filhos na socialização primária, familiar, como escreve Tedesco (2001), pode haver o entendimento, pela professora, de que é responsabilidade dela resgatar e realizar a formação da personalidade com carga emocional.

Sabemos que há um discurso educacional que mantém determinadas posturas nos sujeitos relativas à docência, como a exemplificada. Conhecemos o vigor de um discurso, o qual força e produz comportamentos que podem dificultar que o sujeito se coloque na trama discursiva: afinal, ser professora pressupõe comportamentos, posturas, maneiras de ser. Esses discursos passam, contudo, por reconstruções, no curso da história. Nesse sentido, Louro

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(1997) nos mostra as diversas formas de expressão do ser professora, tanto a “professorinha” (maternal), comum em meados do século XX, quanto a professora “profissional de ensino” (mais técnica, burocrática e intelectual), predominante na década de 60/70, e o quanto ambas permanecem constituindo o discurso educacional, na contemporaneidade. Nesse sentido, porém, nos adverte Foucault, que o discurso “não é a manifestação, majestosamente desenvolvida, de um sujeito que pensa, que conhece, e que o diz: é ao contrário um conjunto em que podem ser determinadas a dispersão do sujeito e sua descontinuidade em relação a si próprio” (FOUCAULT, 2002, p.62). Ou seja, pensando no discurso educacional, este delimita e limita o sujeito e a aleatoriedade que pode lhe direcionar.

Na EUr, nas entrevistas individuais, aparece um exercício de professora ligado a vivências que nossas interlocutoras afirmam que desde crianças já sonhavam (ilusionavam) e/ou praticavam nas brincadeiras com os amiguinhos, e que, além disso, eram dadas ou tomadas como único caminho a ser seguido a partir das expectativas dos familiares ou de pessoas conhecidas ou marcantes em suas vidas:

- Eu adoro ser professora.

- E por que você gosta tanto?

- (longa pausa) Porque (pausa) sempre eu fui professora desde criança, desde os sete anos eu alfabetizava meus colegas, meus amigos e sempre fui professora desde esta época [...] (P. EUr).

- Para mim é bem ... na minha profissão também... Porque a grande maioria das professoras é mulher, eu acho que se torna... não é que se torna mais fácil, mas assim a minha mãe, minha família, também já vem de professores a maioria... A maioria não, todas as mulheres! e já vem com aquele instinto. Até porque, quando eu fui fazer a escolha da faculdade, a mãe disse “ah, porque que tu não vai ser professora?”, já vem com aquele instinto, aquela força deles quererem que tu também sigas o caminho. Então já vem uma coisa desde pequena, desde criança já vão te instigando pra ti ser. Eu não consigo ver, se eu fosse fazer outra faculdade que faculdade eu ia fazer? Eu não consigo me ver fazendo outra faculdade, não consigo me ver em uma outra profissão. Minha profissão eu acho que é essa e eu acho que eu acertei mesmo, sabe? Não saberia dizer o que eu poderia ser por enquanto, só professora (P. EUr).

- Amo, adoro, tenho paixão, desde pequena sempre quis e nunca me imaginei na sala de aula, única coisa.

- Como assim?

- Me passava tudo pela cabeça, queria estudar, não sabia nem por onde eu começava, sabe? O que eu fazia primeiro para ser professora, porque as minhas professoras eram professoras, ganhavam bem, digamos assim (risos), agora eu já vejo que não é bem isso... e bah! ser professora né... eu quero ser. Aí foi, foi, foi terminei a oitava série lá fora - eu morava pra fora - eu fui morar em Tupã, daí eu morei com minha vó, fiz magistério lá. O dia que eu cheguei aqui o primeiro rostinho da escola era a “fulana”. Meu deus do céu! O que eu vou fazer na sala de aula! Eu tinha noção mas não sabia se era aquilo mesmo de estágio e de monitoria, tu não tem muita noção assim do que é o dia a dia: um ano, 200 dias letivos, tu com os alunos [...].

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- Não, nem na frente de um caixa de supermercado, gosto muito de contação, mas dentro da escola, na papelada da escola. Sei lá, acho que é aquela coisa assim... Desde criança a mãe sempre dava um livro, dava um caderno pra gente, estava sempre incentivando em casa... Ela sempre quis que eu fosse também, porque às vezes tem pais que querem e o filho não quer, e ela sempre me deu apoio e tudo... e ela precisava de mim na época que eu fui estudar, mas ela teve que deixar eu ir porque sabia que eu queria aquilo... e eu era nova, e ficar longe da mãe também... (P. EUr).

Aparece uma prática que se baseia, às vezes mais e às vezes menos, em um “modelo”. Isso dificulta a modificação do exercício da docência conforme a necessidade ou as situações não esperadas que se apresentam na escola. É muito difícil ser uma professora diferente, agir de forma diferente do que o discurso diz que é o “ser professora”, mesmo que as situações vivenciadas no dia a dia da escola questionem e vislumbrem outras formas de “ser”. Também há dificuldades para que esse sujeito/professora encontre outra profissão/função, caso descubra que esta não lhe causa prazer no exercício de sua atividade, já que “desde sempre sonhou” - impulsionada por várias pré-determinações - e só pensou em ser o que fantasiou como profissão de educadora e criou sobre o educar:

- Adoro, eu sempre sonhei ser professora, conquistei meu espaço, me sinto realizada. Gosto porque me sinto realizada, é uma profissão que optei e adoro, parece que, pra mim, em outra profissão eu não ia sentir tanta realização. Claro, como mãe, como dona de casa também. Não pensei assim em outra profissão, não me imagino em outra profissão, desde pequena meu sonho era ser professora [...]. Eu não me imagino em outra profissão. A não ser cuidar da casa, dos filhos. Mas de ter outra profissão não imagino, nunca imaginei, o sonho da gente era ser professora, sim... porque me sinto bem, não é? Combina, pois o papel de mãe, de profe, e o papel de mulher, sempre exerci com seriedade (P. EUr).

A profissão aparece no depoimento de forma idealizada e equiparada a um modelo de ser feminina e mãe. Tanto que, se a função comportasse outras atribuições, a entrevistada não se imaginaria realizando-a. A função de mãe, a qual se liga culturalmente à feminilidade, ao ser posicionada em pé de igualdade com o ser professora, acaba definindo e mostrando características para esta profissão.

A construção do ser professora na EDA, num primeiro momento, parece menos predeterminada, parece se construir no cotidiano. Isso não quer dizer que não haja determinações que fazem parte do cotidiano destas professoras; determinações que assim como em EUr são advindas dos pais e, no caso de EDA, também do próprio Movimento Social, onde há normas e delegações de incumbências, como as próprias professoras revelam nas entrevistas. Mesmo assim, parece que essas professoras vão se constituindo em um movimento que não se resume à aceitação dessas; há momentos em que escapam de algumas pré-determinações. Foucault nos diria que se formula aqui um diferente modo de sujeição:

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“As diferenças podem, assim, dizer respeito ao modo de sujeição, isto é, à maneira pela qual o indivíduo estabelece sua relação com esta regra e se reconhece como ligado à obrigação de pô-la em prática” (2001, p. 27).

Os depoimentos a seguir, quanto ao ‘como ser professora’ e ‘como educar’, foram obtidos na EDA:

- [...] O professor acaba se apaixonando por aquilo que faz, tu tem limites, tem dificuldades, mas a gente se apaixona e vai fazendo. Tu vai dando um jeito, tu vê o resultado depois e a gente vai, cada vez mais, se aperfeiçoando. Às vezes, acaba caindo até em rotina, mas é uma coisa que a gente faz porque gosta. Eu acredito que é isso. Não é porque eu vou sobreviver disso. É gostar do que está fazendo (P. EDA).

- Eu acho assim... quando eu comecei a fazer o magistério não era uma opção minha, era mais porque os meus pais queriam, porque era uma oportunidade de estudar e de conseguir voltar a trabalhar próximo deles, voltar para o interior. Mas quando eu comecei a estudar eu fui gostando, fui me apaixonando pela profissão e hoje eu vejo que é uma profissão em que a gente não está todo dia na rotina. Cada dia é um dia diferente, até que a gente tem problemas fora da aula, mas quando você entra, você não tem mais. Muda. E é uma oportunidade de você trocar ideias, de você conviver com as pessoas, de aprender, não só de ensinar, mas acho que assim a gente aprende muito, tanto com os pequenininhos quanto com os maiores. E eu acho que é uma atividade diferente, que a gente não... que cada dia é um dia diferente, não tem uma rotina. Que isso é que faz ser legal (P. EDA).

- Eu comecei a minha profissão há mais ou menos 25 anos atrás com a 8ª série, não tinha magistério, sem experiência nenhuma, não porque eu queria ser professora, mas sim porque era a oportunidade de trabalho que eu tinha. E eu vejo assim que hoje, pra mim, é um dom, como a colega disse que é uma vocação, para mim é semelhante, é um dom porque, comparando, toda a trajetória de professora que eu já passei, por tudo onde já andei, tudo que já fiz, a gente percebe assim que a cada dia está mais difícil ser professor, mas, como diz a colega, é gratificante. A gente... eu vejo assim... porque eu trabalho no Laboratório de Aprendizagem, a gente traz os alunos (da fulana), quando eles conseguem ler uma palavra, conseguem juntar as letras e ler, eu acho que é gratificante, tu conseguir ensinar alguma coisa. E aqueles que aprendem mais fácil, quando a gente também orienta e consegue que eles aprendam... Em toda essa trajetória a gente tem alunos que passaram pelas mãos da gente e que já estão bem adiantados, já tem faculdade... quanta coisa já, outras profissões [...]. Eu acho assim muito gratificante (P. EDA).

Essas descrições da docência na EDA mostram uma “construção” do “ser professora” por meio das experiências: “quando eu comecei a fazer o magistério não era uma opção minha, era mais porque os meus pais queriam [...]. Mas quando eu comecei a estudar eu fui gostando, fui me apaixonando pela profissão” (P. EDA), “cada dia é um dia diferente, não tem uma rotina” (P. EDA).

Mesmo que as expectativas pré-formadas tenham existido, estas passam por um constante processo de reconstrução, portanto, é nas aulas do dia a dia que vão se construindo práticas e o gosto pela profissão, à semelhança do que Foucault nomeou como uma experimentação que gera um modo de vida:

Um modo de vida pode ser compartilhado por indivíduos que se diferenciam em relação à idade, ao status e à atividade social. Pode conduzir a relações intensas que

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não se assemelham a nenhuma relação institucionalizada. E um modo de vida pode culminar, creio, em uma ética e uma cultura (FOUCAULT apud ORTEGA, 1999, p. 167).

Percebemos que, dessa forma, emerge prazer na descrição do fazer: “Eu acho, assim, muito gratificante” (P. EDA), pois a primeira coisa que se fala ao se tocar no assunto “docência” é de um gostar ligado a uma construção pessoal, permeado pela prática do ser professora.

A professora de EDA afirma que, em qualquer profissão, em qualquer “lugar” poderia construir maneiras de ser feliz na atividade que viesse a realizar.

E eu acho que é isso... de eu gostar de ser professora porque eu relaciono a minha vida de mulher, de trabalhadora e professora, porque eu também não vivi como homem. E assim, se gosto de ser professora, gosto, mas como eu disse esses dias: se eu não fosse professora, ou agora sendo professora e conseguindo fazer o que eu gosto, se um dia, por exemplo, eu deixasse de ser professora - eu não me vejo aposentada -, eu teria bem mais ampliado os horizontes: bom, se eu não sou professora eu ia construir outra coisa, por exemplo, sou mulher, mas mesmo que eu seja agricultora, que eu fique trabalhando, vou sabendo que eu não vou deixar de ser mulher, mesmo sendo agricultora. Então é tu abrir os horizontes e saber o que tu quer. Tu pode ser feliz em qualquer lugar desde que tu esteja realizada naquilo que tu faz, tu não vai deixar de ser mulher porque tu é professora ou não, ou porque tu é agricultora, então é nesse sentido aí (P. EDA).

A professora de EDA mostra um “ser” que se constrói pela experiência, “porque eu também não vivi como homem” (P. EDA); e como esta experiência vai tomando conta dela porque está servindo de elemento para o usufruto de um prazer ligado à construção de modos de vida relacionados tanto à profissional da educação como ao sujeito feminino. Dessa forma, podemos pensar que o lugar da feminilidade e o de professora são distintos, mas estão

relacionados, ou seja, ambos são experenciados. Não há detrimento de um pelo outro, uma

relação diferente da que acontece em EUr, onde se age de forma maternal em casa e há uma tendência de fazer o mesmo na escola.

Percebemos que é na experiência da função/profissão que a professora de EDA vai construindo/descobrindo o gosto pela atividade, o que, segundo ela, abre leques de possibilidades e poderia ser vivenciado em outras atividades/profissões, de forma semelhante. Neste percurso, ela pode estar vivenciando a feminilidade em ambos os seus aspectos, o passivo e o ativo: “trabalhando, vou sabendo que eu não vou deixar de ser mulher” (P.EDA).

Enquanto na EDA as professoras parecem falar delas, de sua relação com o educar - “Tu pode ser feliz em qualquer lugar...” -, na EUr o ser professora e educar é algo que vem

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dos outros – de familiares e de “modelos” apontados como corretos socialmente. É também realizado e dirigido aos outros: para ou pelos pais (do próprio professor) ou para os alunos. Dessa forma, as coisas a serem feitas aparecem como um mandato: “[...] tu tem que estar sempre em cima [...]”, “[...] mas isso tem que ter não é?” E talvez por isso haja detrimento de algumas posturas e vontades da professora em relação às que lhe são impostas. Em outro trabalho falamos (Bortolini, 2008), ao citar Louro (2000, p. 68), que a professora acaba se constituindo como identidade invisível (determinada socialmente e por isso não se constitui alvo dos olhares na cultura) em vez de identidade marcada (diferente do padrão), e do quanto isso a liga ao “ser pelo outro” numa identidade que não consegue se dizer: “[...] é dita pelos outros ou se diz através do olhar dos outros” (Bortolini, 2008, p.8). Segundo Louro (2000, p.101), essas identidades são representadas pela comparação à identidade hegemônica e, também, a partir do olhar hegemônico, não podendo falar por si mesmas.

Se afirmamos que a professora participa de demandas que são culturais, temos que entender a conjuntura da sociedade atual e o que pode configurar diferenças entre a escola EDA e EUr, pois ambas participam da mesma conjuntura social atual.

Esta conjuntura, segundo Bauman (2005), caracteriza-se pela modernidade líquida, a qual está associada à lógica que se carateriza como individualismo moderno, do qual nos fala Tedesco e também a psicanálise, como antes já referimos: constantemente anular o passado, nascer constantemente, uma sucessão inesgotável de renasceres; o mandamento é reinventar-se continuamente. Nesta liquidez não há padrões, sustentações, amparo, certezas.

Diante disto, dispomos de duas escolas situadas em lugares diferentes, como antes já frisamos, um grupo pertencente a um lugar de contestação daquilo que é dado, um movimento social; e outro grupo onde o lugar é institucionalizado para a não contestação: a escola EDA e a escola EUr. A primeira, além de contestar a fluidez da modernidade líquida, pois participa de um movimento social que tem um ideal de sociedade que é socialista, encontra sustentação, amparo neste ideal. Pode, portanto, construir um modo diferente de ser, em meio a este amparo. Portanto, podemos inferir que este amparo fornece certezas que a modernidade líquida não permite. O que não quer dizer que este diferente modo de ser não esteja também seguindo um modelo dado pelo outro, neste caso, pelo Movimento Social, afinal quando afirmamos que estas professoras pertencem a um lugar de contestação, então elas seguem um modelo ao contestar o modelo dado para o ser professora. O ideal da EUr é diferenciado, construído em meio à perversa liquidez da modernidade, e no momento sem encontrar outras possibilidades que sustentem outro ideal, parece buscar segurança, certeza, aprovação ou

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reconhecimento no que o outro (cultural, do discurso educacional) diz que é o “ser professora”.

1.3 A relação com “o certo e o errado”

A resposta à questão “Como é sua relação com o certo e o errado?”, realizada na entrevista individual, demonstra os questionamentos enfrentados pelas professoras da EUr ao buscar construir uma postura “sua”, pois os modelos do que “é certo e errado” estão muito presentes em suas vivências (aqui não seria mesmo vivencia?).

- [...] Com as coisas que são certas com mais facilidade e com as erradas, às vezes, a gente fica..., eu principalmente, assim ó, mais constrangida, mais com medo, com receio. Quando eu acho que fiz uma coisa errada fico pensando bastante, muito, porque que eu fiz, será que estava certo, será que deveria ser daquele jeito... - O que é o certo pra ti?

- No momento em que tu não atinge o ponto do outro, não ultrapassa o limite do outro, no momento que tu não ouve uma crítica ruim também, acho que às vezes uma crítica boa também te faz pensar no certo... “Bah, fiz certo!”, um elogio talvez.

- Então você acha que isso também parte dos outros?

- Sim, parte dos outros, no momento que a gente vê a satisfação do outro, eu no meu ponto de vista... (P. EUr).

Enquanto as professoras da EUr nos mostram esta dependência ao modelo dado pelo outro, ao consentimento dado pelo outro, em relação ao certo e errado, na EDA, percebemos que esta dependência existe – aos ideais de sociedade e às regras dadas pelo movimento social - mas há, concomitantemente, uma capacidade de contestar a cultura posta devido a participação no modelo dado pelo Movimento Social, ou pelo menos de não tomar os padrões de certo ou errado exatamente da forma como eles chegam até elas. Podemos pensar que o modelo dado de fora do Movimento social desestabiliza o sujeito pois questiona fortemente suas certezas: “será que estava certo? Será que deveria ser daquele jeito? (p. EUr), mas não sustenta outra forma de subjetividade; enquanto isso o modelo dado pelo movimento social sustenta e permite a manifestação do sujeito, ainda que dentro de um modelo de subjetividade dada pelo Movimento Social:

- Olha... porque às vezes é uma opinião, o certo e o errado dependem de uma opinião sobre um e outro. Às vezes depende de como a gente foi criado, de como meu marido foi criado, como a gente cria os filhos já é diferente. Então, como eu fui criada, pra mim, tinha coisas que eram certas e coisas que eu achava errado, e na

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família do meu marido já é o contrário as coisas que ele achava errado... Então foi assim, muito a questão de ir conversando, [...] então é tentar ponderar, de ver o que que é certo e o que é errado, de conversar com eles, de não ser tão taxativa. Porque também isso que eu digo, o certo e o errado dependem do momento, porque quanta coisa que a gente acha que fez certo, que era certo e depois, passado um tempo, a gente vê: bom, não era tão certo assim. Ou alguma coisa que se tinha feito muito errado e que daí, depois de passar o tempo, não é totalmente errado. Então eu acho que sou muito assim de pensar, analisar, eu penso muito, converso muito comigo (P. EDA).

Na fala a seguir, percebemos que essa postura de mudança da professora de EDA, tem reflexos significativos sobre sua docência:

- Bom, o que é certo fazer e o que é errado, hoje tu tem que estar aprendendo porque os adolescentes são muito diferentes do que eu vivia e a gente tem tendência a voltar ao passado: como é que eu fiz, como era no meu período e como é agora. Então, como é que tu trabalha com isso? É conflitante, às vezes tu entra em parafuso: meu Deus, mas eu não fazia isso, a minha família em casa não era assim e como os alunos são assim? Então tu tem que estar sempre estudando, sempre buscando, tentando entender e aí a situação da escola que muda, tanto o comportamento do aluno como a organização da escola, bem como a própria situação dos educadores..., e às vezes tu fica sem saber o que é certo e errado nesse momento e aí como tu reage nessas situações (P. EDA)?

A relatividade do certo e errado em EDA advém da consideração à diversidade cultural e do entendimento de que as culturas são dinâmicas, o que advém da consequente necessidade da negociação com os outros com quem se está em relação e também consigo: “Então eu acho que sou muito assim de pensar, analisar, eu penso muito, converso muito

comigo (P. EDA) (grifo nosso)”. Isso diferencia-se da postura de EUr que é a de

questionamento frente ao único caminho dado pela cultura, ou seja, à internalização do que é certo e errado, onde as determinações (que geram questionamentos mas trazem um mandato de terem de ser obedecidas) viriam mais dos outros (enquanto cultura dominante): “às vezes uma crítica boa também te faz pensar no certo...; ‘Bah fiz certo’, um elogio talvez; [...] Sim, parte dos outros, no momento que a gente vê a satisfação do outro” (P. EUr).

1.4 Começando a nomear o sofrimento

Em meio à constatação dessa dependência e ao mesmo tempo questionamento frente ao outro (aluno, sociedade, cultura) na EUr, percebemos um sofrimento e uma dificuldade de negociação com o outro, com a novidade, com a diversidade, com a demanda de dinamicidade

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