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Como já afirmamos, não queremos marcar que não seja importante o acesso, pela feminilidade, ao espaço público; pelo contrário, é imprescindível. Porém, esse exercício não precisa, necessariamente, reproduzir um modelo, ou seja, a mulher feminina e, nesse caso, a mulher em assentamento, não precisa exercer seu desejo de atividade somente através do reconhecimento na igualdade de lugar com o homem: o trabalho na lavoura, as cooperativas e os sindicatos. Mas é necessário pensarmos em relação ao que Fabrício nos faz entender como uma dificuldade de algumas mulheres femininas situadas dentro do coletivo do MST de exercer seu gozo fálico (e, portanto, de dar passos para o exercício dual de feminilidade - movimentação). Fica marcado nas falas que algumas “passam do pai para o marido”. Num primeiro momento, poderíamos entender que elas parecem estar no lugar de objeto do desejo do outro, portanto passivas, o que poderia dizer de uma não identificação com esse pai (pensado aqui não só como simples pai, mas também como pai simbólico, o qual faz função constitutiva do sujeito). Apesar de termos mostrado, no capítulo anterior, uma identificação com o pai pelas professoras de EDA, as quais devido a isso diferenciavam-se das professoras de EUr (as quais demonstravam maior dificuldade nesta identificação), essa observação de Fabrício (1996) reabre a questão, já que a identificação com os atributos paternos, segundo a psicanálise, permite o acesso ao gozo ativo, fálico, pertencente ao feminino e ao masculino.

Kehl nos lembra que a identificação com os atributos paternos - apesar de compensar a feminilidade com um “a menos de recalque” do gozo ativo (p.52), pois permite que ela realize desejos ligados à atividade - não é uma tarefa fácil para o sujeito feminino, o qual tem um superego que relativiza com a lei, ou seja, com a lei paterna, com o Nome do Pai.20 Identificar-se, portanto, com esta mesma lei que ela deve relativizar com seu superego “falho” não é simples. É difícil para ela tomar esses atributos paternos, de lei paterna; essa dificuldade

20 “(...) O Nome do Pai consiste, principalmente, na regulação do sujeito com seu desejo, em relação aos jogos

dos significantes que o animam e constituem sua lei” (Chemama, 1995, p.148). Segundo este autor, ele se formaliza em dois tempos: primeiramente através do corte paterno realizado na relação de simbiose com a mãe no início da vida do sujeito, na castração. “No segundo tempo, o Nome do Pai enquanto significante, vai duplicar o lugar do Outro inconsciente. Ele dramatiza, em seu justo lugar, a relação com o significante fálico, originalmente recalcado, e institui a palavra, sob os efeitos do recalcamento e da castração simbólica, condição sem a qual um sujeito não conseguiria assumir validamente seu desejo na ordem de seu sexo” (1995, p.148). No caso da feminilidade, Pommier nos diz que ela passa por três momentos: o da castração (igual à do menino) narrada acima por Chemama; a introdução no gozo fálico e a castração simbólica e um retorno ao gozo simbiótico com a mãe vivido no início da vida – ou seja, a vivência do gozo de estar entregue ao desejo do Outro -, mas agora após ter passado pela castração. Isso a define enquanto mulher, o que Pommier (1991) chama de um “retornar-se mulher”.

pode inclusive impedir a sublimação - o deslocamento da libido destinada a fins sexuais para fins não sexuais -, ou seja, impedir o deslocamento da energia para o exercício das funções ditas masculinas: o exercício da atividade.

Aqui, podemos antever complicações para a mulher – complicações que serão ou não impeditivas da sublimação, a depender de como ela consiga se apossar, de alguma forma, do Nome do Pai. Se a condição de sublimação é o “recurso estruturante à potência paterna”, isto significa que o sujeito precisa se dar o direito de tomar certas liberdades, digamos, em relação ao que sejam os atributos do pai, sem sucumbir à angústia de castração. [...] É preciso que o sujeito possa se aventurar sem grandes riscos a roubar o fogo paterno [...] (KEHL, 1996, p.42).

O sujeito tem que se identificar com a atividade paterna sem grandes riscos e sem sucumbir à angústia de castração,21 nos diz Kehl. Ou seja, no caso da feminilidade, sem recalcar e sem negar a identificação com o pai - já que esta é permeada por fortes sentimentos de perda, podendo ser recalcada - e, portanto, sem comprometer nenhum dos desejos do feminino.

As professoras do MST parecem encontrar mais facilmente espaço para a dialética do feminino no fogo paterno tomado no Movimento, dialética que se mantém nos momentos “sossegados”, ou seja, nos momentos mais subjetivos e importantíssimos na manutenção da participação dessas no Movimento e para sua feminilidade, por causa de seu próprio movimento, pois denota seu ir além em relação à própria lei do Movimento (ainda assim elas continuam sendo Sem Terra, mesmo depois de assentadas). Então, as falas relativas à identificação com o pai em EDA, trazidas no capítulo anterior, mostram essa identificação relatada a partir da figura paterna, talvez pelo fato de as professoras estarem, agora, assentadas/“sossegadas”. Sand/uma mulher na política parece ter também conseguido essa identificação, talvez através do próprio Movimento Feminista, mas para isso teve de ir além deste. Por isso o mesmo Movimento que ela criticou pode ter sido alvo de sua identificação com os atributos paternos. Nesse sentido, nos afirma Perrot que Sand se identificava com o pai no seu desejo realizado pela política:

Nesta figura heroicizada do pai, que encontramos em diversos relatos da infância desta época, George Sand reconhece-se orgulhosamente: “Meu ser é um reflexo, enfraquecido sem dúvida, mas bastante completo, do seu”. Sua filiação revolucionária é, inicialmente, paterna (PERROT, 2005, p.384).

21 Segundo Freud, a castração simbólica – vivência de perda que inaugura o sujeito como desejante – comporta

terror e revolta proporcionais ao valor que se dá ao pênis, o qual é representante, para o menino, do que “não se pode perder” e, para a menina, “do que já não se tem”. A angústia de castração pode provocar recalques devido à intensidade dos sentimentos, recalques estes que podem comprometer o exercício da atividade dada pela identificação com o falo paterno.

Um reflexo do pai completo, mas enfraquecido, nos diz Sand. Entendemos que ela quer dizer que é “completo” na identificação com aquilo que o pai pode lhe dar e que ela toma dele, ou seja, a identificação com um gozo ativo (fálico, dado a partir da lei do Nome do Pai), exercido na política. Mas, ao mesmo tempo, um reflexo do pai enfraquecido por um outro gozo (o passivo, da feminilidade) que ela tem e que enfraquece a força da lei dada através do Nome do Pai, devido a seu superego “malformado” de mulher feminina, o qual também é muito positivo para ela e para a sociedade ou coletivo onde se insere.

Esse enfraquecimento ocorrido em Sand pelo gozo outro da feminilidade, o passivo, aparece como “dar um passo à frente do que o pai era”, nesta fala de uma professora de EDA: “Meu pai progrediu enquanto ponto de vista do progresso da humanidade, mas também foi até o limite, e a gente procura continuar (...). Eu acho que eu consegui dar um passinho à frente, pequenininho, mas eu consegui dar um passinho à frente do que ele é” (P. EDA).

Dessa forma, também a mulher/ feminina/ professora do MST identifica-se com o Nome do Pai, o que pode ser facilitado a partir do MST – da política – e assim faz este movimento que apontamos em Sand. Principalmente porque a mulher do MST está preocupada com o coletivo feminino e, também, com a dimensão de classe da luta, que é o que a leva à luta, ou seja, o primeiro passo para a alternância de desejos ativos e passivos. Pode-se pensar, então, que a identificação com o pai existe, e inclusive na figura do próprio Movimento nos momentos em que este está no lugar da lei, da lei paterna.

Isso nos permite pensar ou “idealizar” que, também em EUr, um coletivo construído por estas professoras poderia ser colocado no lugar de lei paterna e permitir ou facilitar a identificação destas professoras com atributos paternos. Isso poderia, como aconteceu em EDA, fortalecer e produzir a identificação com as figuras masculinas ligadas a lei paterna nos momentos de “sossego”. Seria esta conjuntura subjetiva capaz de facilitar a dialética atividade /passividade também nesta professora? Mas em relação a algo que ainda não acontece podemos apenas imaginar, nem mesmo supor.

Ainda nos fica, porém, a questão trazida por Fabrício: o que realmente significa “passar do pai para o marido”? Isso é “negativo” para a sua feminilidade? Retomaremos esta questão posteriormente.

3.6 Superar o falo paterno a partir da dimensão da lei “encarnada” na figura do próprio