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Capítulo I: Delimitação do conceito de presunção

2. Figuras afins das presunções

2.3. Ficção legal

Tanto a ficção legal como a presunção legal consistem em processos técnico-

legislativos180 que dão uma “particular coloração ao raciocínio jurídico”181, providenci-

ando ao legislador certos artifícios normativos melhor habilitados a dar reposta a de-

terminadas questões jurídicas182. Em particular, a ficção legal permite estender o

alcance de uma norma183, configura uma remissão encoberta, consistindo na “equipa-

ra[ção] voluntária [de] algo que se sabe que é desigual”184.

Trata-se de uma figura mais próxima das presunções iure et de iure do que das presunções iuris tantum, pois, à semelhança daquelas, não admitem prova em contrá- rio. Por isso, será irrefutável, como as presunções iure et de iure.

Contudo, a ficção legal distingue-se185 da presunção iure et de iure num porme-

nor fundamental186, apesar de muito terem em comum187. Enquanto que com a pre-

180 Cfr. D

ELGADO-OCANDO,J.M., La Fiction Juridique dans le Code Civil Vénézuélien avec quelques Références à la Législation

Comparée, coord. ou org. PERELMAN,CH. e FORIERS,P. Les Présomptions et les Fictions en Droit, Bruxelles: Établissements Émile Bruylant, 1974. pp. 72-78, quanto à “técnica jurídica”.

181 Cfr. F

ORIERS,P., Présomptions et Fictions, coord. ou ibidem p. 7.

182

Cfr. MACHADO,J.BAPTISTA, Introdução... p. 108. Cfr. também DOURADO,ANA PAULA, O Princípio da Legalidade Fiscal... pp. 597-606 e NAVARRINE,SUSANA CAMILA e ASOREY,RUBÉN O., Presunciones y ficciones... pp. 2-3.

183 Cfr. F

ORIERS,P., Présomptions et Fictions, coord. ou Les Présomptions... p. 8.

184

Cfr. LARENZ,KARL, Metodologia da Ciência do Direito, 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997. pp. 366-370, que distingue ainda a ficção legal da ficção como meio de fundamentação da sentença. Acrescenta LARENZ que nem sempre o legislador utiliza a ficção legal como remissão. A ficção legal acaba por desempenhar uma função ora de remissão, ora de res- trição, ora de aclaração, uma vez que o legislador a ela recorre quando podia recorrer a outras técnicas menos extremas. Cfr. também NAVARRINE,SUSANA CAMILA e ASOREY,RUBÉN O., Presunciones y ficciones... pp. 2-3.

Cfr. no mesmo sentido, MARQUES,J.DIAS, Introdução... pp. 171-175, que contrapõe as normas materiais, aquelas que “con-

tém elas próprias, de forma imediata, a regulamentação da matéria a que respeitam”, das normas remissivas, que, por con-

traposição, são aquelas em que se utiliza um processo indirecto, de remissão para outras normais materiais.

185

Como nos dá conta RIBEIRO,JOÃO SÉRGIO, Tributação Presuntiva... pp. 47-48, não é pacífico que sejam distintas a um ní- vel fundamental, que as diferenças devam assumir relevância. Refere-nos, por exemplo, que os glosadores “se referiram à

presunção iures et de iure como magis dicitur fictio”. Também que FABO,DIEGO MARÍN-BARNUEVO, Presunciones y técnicas... pp. 214-215, defende que, à excepção da questão da diferente probabilidade, não existem razões suficientes e convincentes para distinguir ficção legal de presunção absoluta. Também NAVARRINE,SUSANA CAMILA e ASOREY,RUBÉN O., Presunciones y ficciones... pp. 4-6. Estes autores assinalam uma outra diferença de ordem processual, que se relaciona com a admissibilidade da confis- são judicial quanto às presunções iuris et de iure e da sua inadmissibilidade quando toca às ficções legais (p. 9).

186

Cfr. NAVARRINE,SUSANA CAMILA e ASOREY,RUBÉN O., Presunciones y ficciones... p. 8, que assinalam que “dentro de la dife-

renciación prejurídica entre los conceptos de ficción y presunción figura aquella según la cual la presunción siempre se basa en un hecho conocido de existencia cierta para el que se dispone de certeza jurídica, del cual se deriva la existencia de un hecho desconocido cuya factibilidad es muy probable por la relación natural que existe entre ambos, mientras que en la ficción, sobre

187 Designadamente, defende H

ARET,FLORENCE CRONEMBERGER, Presunções no Direito Tributário... p. 30: ambas coincidem ao

assumirem-se como “noção substitutiva, originária de um juízo antecipado e provisório, criado por meio de um efeito de espe-

lhamento e identificação entre uma coisa e outra, produto de uma interacção específica de significados heterogéneos”. la base de un hecho cierto, se otorga certeza jurídica a un hecho de existencia muy improbable o sencillamente falso”.

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sunção iuris tantum pretendemos assumir uma verdade como hipotética, tendo por referência e fundamento máximas de experiência e diferentes graus de razoável pro- babilidade da verificação do facto presumido, com a ficção assumimos, logo à partida, que é de todo improvável que o facto presumido se tenha verificado dessa forma, mas,

entende o legislador, tornou-se necessário188 positivar normativamente essa presun-

ção de tal forma arbitrária e artificial189, como a doutrina tradicional refere, que se

deverá ter por inilidível190. A ficção pode então ser entendida como uma presunção191

que desobedece a máximas de experiência, cuja correspondência com a realidade é

uma mera coincidência192.

Assim, na pena de BAPTISTA MACHADO, na ficção legal o legislador “atribui a um

facto as consequências jurídicas de outro193, ao passo que na presunção iure et de iure o legislador supõe, de modo irrefutável, que o facto presumido acompanha sempre o facto que serve de base à presunção”194. Isto não significa, contudo, que não existam presunções que também produzam o mesmo efeito de extensão de efeitos e conse-

quências jurídicas195. Pelo que, no nosso entender, o critério distintivo é o da probabi-

lidade, que na ficção se reconduz à indiferença em relação à realidade196. Pode

implicar uma falsidade, como também pode significar uma baixíssima probabilidade197,

188 Não é que seja sempre necessário, em rigor. L

ARENZ,KARL, Metodologia... pp. 368-369, exemplificando, dá-nos conta de

situações em que o legislador acaba por utilizar a forma de ficção em certas normas sem que exista razão para tal. Por vezes apenas esclarece; por vezes percebe-se que poderia ter incluído o que dispõe na ficção, no que dispõe na norma para a qual remete, melhor definindo certo conceito. O que leva LARENZ a defender que a ficção legal acaba por desempenhar uma função ora de remissão, ora de restrição, ora de aclaração.

189

Cfr. BRETHE DE LA GRESSAYE e LABORDE-LACOSTE apud. FORIERS,P., Présomptions et Fictions, coord. ou Les Présomptions... p. 17, “avec la fiction nous sommes en présence d’un procédé technique encore plus arbitraire et artificiel que les précédents.

C’est le degré le plus élevé de l’artifice. La déformation propre à la technique atteint ainsi son point culminant. Alors que les présomptions, par exemple, se fondent sur l’ordre normal des choses, la fiction elle, contredit la vérité: elle en prend le contre- pied. C’est un mensonge: ce qui est faux est tenu por vrai en vue d’arriver à un certain résultat convenable”. No mesmo senti-

do, cfr. DOURADO,ANA PAULA, O Princípio da Legalidade Fiscal... pp. 604-605.

190

Cfr. ITALIA,VITTORIO, Le presunzioni legali, p. 3: “La finzione è l'ammisione del tutto immaginaria di circostanze che si

sanno non corrispondenti alla realtà al fine di applicare una data norma”.

191

Cfr. KRINGS,J.E., Fictions et Présomptions an Droit Fiscal, coord. ou org. PERELMAN,CH. e FORIERS,P. Les Présomptions et

les Fictions en Droit, Bruxelles: Établissements Émile Bruylant, 1974. p. 166, que sublinha que “présomption et fiction vont donc de pair”.

192

Cfr. NAVARRINE,SUSANA CAMILA e ASOREY,RUBÉN O., Presunciones y ficciones... pp. 6-10.

193

Identicamente, cfr. HENRI CAPITANT apud. FORIERS,P., Présomptions et Fictions, coord. ou Les Présomptions... p. 16, “la

fiction […] est un procédé de technique juridique consistant à supposer un fait ou une situation différente de la réalité pour en déduire des conséquences juridiques”.

194

Cfr. MACHADO,J.BAPTISTA, Introdução... p. 112.

195 Assim defende H

ARET,FLORENCE CRONEMBERGER, Presunções no Direito Tributário... p. 74, que chama a atenção para as

situações em que “[uma] regra de direito substantivo[, ao] assum[ir] um facto – conhecido e presuntivo – pelo outro – desco-

nhecido e presumido, [vem] atribu[ir] consequências ou efeitos jurídicos deste […] àquele […], estendendo (e ampliando) os ca- sos aptos a [serem] subsumi[dos] à previsão legal”.

196

Neste sentido, cfr. Ibidem, p. 30, que nos fala da ficção como “um conceito logicamente independente da experiência”.

197 Neste sentido, cfr. R

IBEIRO,JOÃO SÉRGIO, Tributação Presuntiva... pp. 50-51, MACHADO,J.BAPTISTA, Introdução... p. 112 e

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mas o que podemos ter como assente é que a ficção admite como verdade o que de

facto e a priori é inexacto198.

SANTOS JUSTO é peremptório quando afirma que a fictio iuris, que é, embora, dis-

tinta da ficção legal, por não ser de emanação normativa, “tem uma característica es-

sencialmente alógica: fingir é violar, sempre, as regras da pura lógica”199. Devemos,

porém, notar que, mesmo reconhecendo que “a fictio é adversus veritatem”, SANTOS

JUSTO logo aponta que esta “é, ao mesmo tempo, pro veritate […] por tornar possível o

advento e a consolidação de novas normas jurídicas, inspiradas em novos e actuais valores ético-jurídicos: veicula a nova realidade” 200. Pretende-se, por outro lado, que a ficção legal seja não um mecanismo de inovação mas de consolidação, pelo que a utili- zação da ficção legal como técnica de inovação, ainda que continue a ter subjacentes preocupações de justiça, arrisca seriamente a potenciar situações de injustiça, por consubstanciar uma irredutível afirmação de uma verdade que se sabe ser falsa. Arris- ca, afinal, contrariar o seu propósito, ao não admitir a ponderação da justiça do caso concreto.

Na também peremptória expressão de FORIERS, através do recurso à ficção legal,

o legislador passa da verdade hipotética, que positiva com a presunção legal, à consa-

gração legal do erro manifesto e voluntário adoptado como verdade jurídica201. Signifi-

ca isto que as ficções não pertencem ao domínio da prova, não colocando um problema de ónus de prova, antes se perfilam como uma norma de extensão, pois, dito de uma forma menos impressiva, tratam de efectuar uma “assimilação fictícia de

realidades factuais diferentes, para efeito de as sujeitar ao mesmo regime jurídico”202.

198

Cfr. KRINGS,J.E., Fictions et Présomptions an Droit Fiscal, coord. ou Les Présomptions... pp. 164-165. No mesmo sentido, cfr. DOURADO,ANA PAULA, O Princípio da Legalidade Fiscal... pp. 604-605.

199

Cfr. JUSTO,ANTÓNIO DOS SANTOS, A «Fictio Iuris»... p. 37.

200 Cfr. Ibidemp. 64. 201 Cfr. F

ORIERS,P., Présomptions et Fictions, coord. ou Les Présomptions... pp. 7-8, “De la présomption qui peut être exacte

mais ne l'est pas forcément, tant s'en faut, à la fiction qui est certainement la légitimation du faux, nous passons de la vérité hypothétique à l'erreur manifeste et qui plus est au traitement de l'erreur volontaire comme source de vérité juridique”.

202 Cfr. M

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Desinteressam-se da verdade ou sequer de uma aproximação à verdade – “a fictio

[iuris] é adversus veritatem”203 –, não lhe devendo qualquer espécie de lealdade204.

Na perspectiva de DELGADO-OCANDO, o legislador recorre à ficção como método

de “assimilação” (e não de analogia legal) e “igualização”205 de situações que sabe que

são distintas206, através de uma “operação intelectual derivada” que se revela necessá-

ria por razões de natureza pragmática, para satisfazer objectivos concretos de que o

ordenamento jurídico carece207.

Podem ser oferecidos vários exemplos de ficções legalmente previstas no orde- namento jurídico português para ilustrarmos o que acabou de ser referido:

i) O conceito de indeferimento tácito previsto no art. 109.° do CPA e demais

normas de similar intuito208;

ii) No âmbito dos impostos periódicos, ficciona-se que o facto tributário ocorreu com o termo do ano, começando a contar-se, a partir do dia seguinte, os pra-

zos de caducidade e de prescrição209, nos termos do art. 45.º, n.º 4 e 48.º, n.º

1 da LGT210;

203 Cfr. J

USTO,ANTÓNIO DOS SANTOS, A «Fictio Iuris»... p. 64, que defende que “a fictio é adversus veritatem (iuris civilis) por

contrariar a realidade jurídica civil, permitindo que o ius civile se aplique a uma realidade jurídica diferente da prevista nas su- as actiones”.

204 Cfr. R

IBEIRO,JOÃO SÉRGIO, Tributação Presuntiva... pp. 48-49, que menciona que a ficção “nasce de uma falsidade ou de

algo irreal, desligado da ordem natural das coisas”. No mesmo sentido, BRETHE DE LA GRESSAYE e LABORDE-LACOSTE apud. FORIERS, P., Présomptions et Fictions, coord. ou Les Présomptions... p. 17, “avec la fiction nous sommes en présence d’un procédé tech-

nique encore plus arbitraire et artificiel que les précédents. C’est le degré le plus élevé de l’artifice.

205

Cfr. DELGADO-OCANDO,J.M., La Fiction Juridique dans le Code Civil Vénézuélien avec quelques Références à la Législation

Comparée, coord. ou ibidem pp. 78-82.

206

Cfr. Ibidem, pp. 82-84.

207

Cfr. Ibidem, pp. 85-89.

208 Cfr. AcTCAS de 07/11/2002, proc. n.° 10648/01: “[...] o indeferimento tácito não é um acto administrativo mas antes

uma ficção legal cuja única função é permitir ao administrado o uso facultativo do recurso contencioso na falta de resolução expressa sobre a sua pretensão [...]”. No mesmo sentido, cfr. AcSTA de 12/01/2006, proc. n.° 0374/04: “A presunção de inde- ferimento, face ao silêncio da Administração, é uma mera ficção legal para protecção do administrado, com finalidades exclu- sivamente adjectivas”.

209

Sobre o assunto da prescrição, caducidade e contagem de prazos, cfr. SOUSA,JORGE LOPES DE, Sobre a Prescrição da

Obrigação Tributária - Notas práticas, 2ª ed. Lisboa: Áreas Editora, 2010. pp. 44-49.

210

Isto seria, em princípio e em condições normais, absolutamente irrelevante e inócuo. Excepto quando há uma altera- ção legislativa e o Tribunal Constitucional admite a retroactividade da lei, como ocorreu com o AcTC n.º 399/10, de 27/10/2010, que versava sobre a introdução, a meio do ano, de um novo escalão de topo do IRS. A motivação para a decisão de conformidade com a Constituição residiu, fundamentalmente, no entendimento de que não “exist[e] uma expectativa[, de

confiança e segurança jurídica,] constitucionalmente tutelada” de que o legislador fará todas as alterações fiscais “no logo no dia 1 de Janeiro de cada ano”.

O momento da prática do facto tributário é relevante e faz parte da incidência do imposto. Ainda que não se considere que existe retroactividade, como não considerou o Tribunal Constitucional, haverá, pelo menos, retrospectividade, pelo que cremos que sempre seria admitir que o momento da prática do facto tributário é ficcionado e, consequentemente, haveria lu- gar à ilisão desse factor, a posteriori ou até no decurso do ano, lançando mão do procedimento especialmente previsto no art. 64.º do CPPT, que tem efeitos futuros, assim adequando a tributação aos dois períodos distintos. Em todo o caso, voltaremos a este assunto, com maior destaque e em momento mais apropriado.

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iii) O art. 2.º, n.º 4 do CIMI que estabelece que “cada fracção autónoma, no regi-

me de propriedade horizontal, é havida como constituindo um prédio”, assim

remetendo-as para o seu n.º 1;

iv) O art. 111.º, n.º 3 do Código da Estrada que determina que, “para efeitos de

circulação, o conjunto de veículos é equiparado a veículo único”;

v) O art. 4.º, n.ºs 2 e 3 do CIVA, que pretende alargar o conceito de prestação de serviço onerosa para situações de natureza distinta.

vi) Também o art. 53.º, n.º 4 do CIRC (que veio a ser revogado pela Lei n.º 3- B/2010, de 28 de Abril, tendo vigorado brevemente como art. 58.º, após a re- publicação operada pelo Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13/07), que, no âmbito do regime simplificado, fixa um valor de rendimento obtido mínimo.

Na concepção de FORIERS deve ser feita uma subclassificação de ficções legais

em ficções terminológicas (terminologiques) e ficções normativas (normatives)211.

As ficções terminológicas212 correspondem a uma ideia de simplificação, unifi-

cação e de afectação a um mesmo fim que se torna possível através da coincidência de tratamento jurídico. Ou seja, aproximam-se da noção de ficção legal, que apresentá- mos supra, enquanto norma de remissão através da qual o legislador qualifica certas situações de uma forma contrária à que a realidade sugere.

Por outro lado, FORIERS entende certo tipo de ficções como normativas213, pois,

diferentemente, visam compatibilizar certo instituto jurídico com um determinado regime jurídico. Para as exemplificar, recorre a um exemplo de direito civil francês que encontra correspondência no ordenamento jurídico português no art. 1439.º e 1451.º do CC. Através destes artigos, o legislador dispõe que o "usufruto é o direito de gozar

temporária e plenamente uma coisa ou direito alheio, sem alterar a sua forma ou subs- tância"; entendendo, porém, que as coisas consumíveis devem poder ser objecto de

211 Cfr. F

ORIERS,P., Présomptions et Fictions, coord. ou Les Présomptions... pp. 17-20. Para além destas, este autor aponta

ainda mais duas possíveis subclassificações para a ficção legal, que nos parecem de menor relevância para este trabalho, po- rém, fica a nota: as ficções resultantes de lei interpretativa e a ficção jurisprudencial (pp. 20-25).

212 Cfr. Ibidem, pp. 17-19. 213 Cfr. Ibidem, pp. 19-20.

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usufruto, apercebe-se que é necessário plasmar uma meta-regra (métarègle)214 que

compatibilize a própria natureza consumível dessas coisas, com um regime jurídico que exige que não se altere a forma ou substância dessas mesmas coisas, assim exigin- do que estas sejam restituídas de acordo com o seu valor ou por outras coisas consu- míveis do mesmo género, qualidade e quantidade.

Conforme referimos, as ficções que FORIERS classifica como terminológicas cor-

respondem à noção de ficção legal que nos interessa destacar como figura próxima da presunção, em particular da presunção iuris et de iure. Com efeito, aquelas são as ca- racterísticas das ficções legais e não temos dúvidas quanto à sua diferente natureza em relação às presunções em sentido estrito, em função do diferente grau de probabi- lidade e do desinteresse quase absoluto pela realidade (ainda que possa existir algum

nexo). Pelo que acompanhamos, parcialmente, SÉRGIO RIBEIRO, quando defende que “a

distinção entre as duas figuras […] não é irrelevante”. Contudo – e é aqui que discor-

damos, pois este autor dá, especificamente, este exemplo para enfatizar a relevância

da distinção215 –, iremos defender, oportunamente, que duvidamos que as ficções

consagradas em normas de incidência tributária, ou pelo menos algumas delas, não

possam ser ilididas nos termos do art. 73.º da LGT216.

Aquele entendimento parece ir, apenas em parte, ao encontro do entendimen-

to defendido por CASALTA NABAIS, proferido antes da entrada em vigor da LGT, sublinhe-

se, segundo o qual as ficções legais serão admissíveis no direito tributário e distin- guem-se das presunções iuris et de iure por configurarem “situações em que nos depa-

ramos com a assunção de regras de experiência comum como regras de tributação, verificando-se assim a construção de normas jurídicas (ou de tipos legais) com o (even- tual) recurso a ficções legais”217, justificando-as com o sacrifício necessário do princípio da tributação segundo a capacidade contributiva por razões pragmáticas. Entende que, enquanto que nas presunções se há-de admitir a prova em contrário, as ficções devem

214 Uma meta-regra pode ser definida como uma norma que descreve como outras normas deverão funcionar, ser utiliza-

das ou interpretadas.

215 Cfr. R

IBEIRO,JOÃO SÉRGIO, Tributação Presuntiva... pp. 50-51.

216 No sentido, aliás, de alguma jurisprudência que se vem formando, designadamente, AcSTA de 04/11/2009, proc. n.º

0553/09.

217 Cfr. N

ABAIS,JOSÉ CASALTA, O Dever Fundamental de Pagar Impostos - Contributo para a compreensão constitucional do

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“contentar-se com uma válvula de segurança relativamente aqueles casos que, por atingirem tais níveis ou rigores de iniquidade, não podem deixar de permitir o afasta- mento das referidas regras de experiência”; assim reduzindo a possibilidade de ilisão às “situações de intolerável iniquidade218”.

Este entendimento de CASALTA NABAIS parece-nos pressupor que as ficções legais

são sempre bem concebidas e utilizadas. É que, como assinala SANTOS JUSTO, se a fictio

iuris (instrumento jurídico não normativo) permitia a inovação e a adaptação a novas

realidades jurídicas (assim sendo flexíveis e mutáveis), a fictio legales, aqui seguindo SEBASTIÃO CRUZ, não era utilizada para inovar, antes servia como “‘confirmação e defesa

dessa veneranda ‘tradição de uma comprovada moralidade’ contra os maus usos no- vos’, afirmando respeito pelos mores maiorum e pelas «velhas leis tidas como inderro- gáveis’”219.

É sabido que o legislador tributário está constantemente a inovar, em reacção a novos fenómenos económicos. Parece-nos que o órgão que produz as leis fiscais, fa- zendo prevalecer necessidades de praticabilidade, arrisca confundir as suas responsa- bilidades enquanto órgão com poderes legislativos com as necessidades e dificuldades do órgão executivo que administra essas mesmas leis. As fictio iuris não eram lei, antes uma faculdade de natureza integrativa do antigo pretor, encarregue de administrar a justiça, e, não representando uma probabilidade, antes uma inequívoca falsidade, não deixavam de ser mutáveis, pois eram postas em prática ao serviço e em função de

valores ponderosos do ius civile220. A praticabilidade da lei não era o fim último. Já as

fictio legales não eram positivadas como inovação221, como fizemos referência no pa-

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