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Capítulo II: As presunções no trilho da verdade

5. Tomar como verdade

Estamos convencidos que o exercício que se afigura incontornável à justiça, ao direito e ao seu intérprete e que é inerente, em especial, às presunções é o de tomar

como verdade329. Particularmente em relação às presunções, variadíssimos autores

indicam que esta tem como consequência tomar como verdade: “holding as true”330,

“réput[é] pour vrai”331, “ritenere come vero”332 ou “aceita[r] como verdadeiro”333. Com

efeito, estamos a reputar como verdade uma situação que pode ser falsa334.

despendido está relacionado com o registo contabilístico, enquanto que 20% com os formulários em si; para um total estima- do, mínimo, de 3.5 mil milhões de horas despendidas, calculam que, se o tempo fosse remunerado em $20, os custos de cum- primento seriam de 85 mil milhões de dólares, no ano de 2004. Não obstante, como não deixam de ressalvar, a complexidade não atinge todos da mesma forma, sendo progressivamente superior, em princípio, para as pessoas colectivas de maiores rendimentos. Não é concludente mas não deixa de ser impressivo que uma boa parte das 8 milhões de palavras dispersas por cerca de 14 mil páginas que em 2006 compunham a legislação tributária americano sejam dirigidas às pessoas colectivas. Também que o número de formulários tenha subido de 475 em 2000 para 582 em 2006 e que até o próprio manual de instru- ções para preenchimento do formulário destinado às pessoas singulares tenha passado de 84 páginas em 1995 para 142 em 2006.

326 Cfr. S

OUSA,LUÍS FILIPE PIRES DE, Prova por Presunção... pp. 127-128.

327

Talvez fosse desta última forma quando o processo tinha uma natureza inquisitiva.

328

Cfr. SOUSA,LUÍS FILIPE PIRES DE, Prova por Presunção... p. 128.

329 Optamos pela designação tomar como verdade, baseado na concepção de holding as true de U

LLMANN-MARGALIT e

MARGALIT, que trataremos infra. A tradução pela qual optamos foi esta, mas admitimos que poderia ter sido outra, como con-

siderar, reputar, reter, assumir, aceitar, adoptar, entre outras hipóteses sinónimas.

330 Cfr. U

LLMANN-MARGALIT,EDNA e MARGALIT,AVISHAI, Holding true and holding as true. "Synthese", Vol. 92, 2, pp. 167-187.

Disponível em www: <http://dx.doi.org/10.1007/BF00414298>.

331 Cfr. F

ORIERS,P., Présomptions et Fictions, coord. ou Les Présomptions... p. 11.

332 Cfr. I

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Tomar como verdade é uma necessidade pragmática, como o ilustra o exemplo

de KANT, de que o médico, perante a urgência de uma decisão, tem de a tomar quanto

ao doente que tem em mãos, mesmo que não tenha logrado efectuar o diagnóstico e permaneça ignorante ou inseguro quanto à natureza da doença. Tem de tomar algo

como verdade e agir determinadamente em consequência, cunhando KANT esta con-

vicção como “convicção pragmática” (“pragmatic belief”)335. Independentemente do

exemplo médico, esta necessidade pragmática é intrínseca ao direito e à necessidade de justiça, valendo o que se disse supra em relação à verdade e à verdade que é possí- vel atingir no processo. Tomar como verdade é um compromisso necessário.

Estes autores falam-nos também da noção de “hold true”, que pode ser associ- ada à ideia de certeza-confiança na veracidade de um enunciado, sem que, contudo, se possa afirmar que este é verdadeiro ou falso, simplesmente por ser incompreensível

para essa pessoa336. Tome-se como exemplo uma afirmação científico-natural, numa

fonte que o leitor tenha por fidedigna, como: “os carotenóides são polienos isoprenói-

des”. O que ULLMANN-MARGALIT e MARGALIT pretendem demonstrar com exemplos desta

natureza, é que, apesar de podermos ter fortes razões circunstanciais para confiar- acreditar que um enunciado é verdadeiro, não somos capazes de acreditar (ou deixar

de acreditar) no seu conteúdo pois transcende a nossa compreensão337.

Distintamente, a noção de “holding as true”, como se apontou, tem implícita

uma presunção338, num sentido não necessária ou exclusivamente jurídico. Não é uma

crença não fundamentada, incompreendida. Não é baseada na confiança que recai sobre quem enuncia. É refutável. De forma alguma seriamos, nós, capazes de refutar um argumento que contrariasse aquela afirmação sobre carotenóides.

333

Cfr. SOUSA,LUÍS FILIPE PIRES DE, Prova por Presunção... p. 128, no contexto da prova e já não, especificamente, das pre- sunções.

334

Cfr. FORIERS,P., Présomptions et Fictions, coord. ou Les Présomptions... p. 11, “tout ceci indique qu’en droit, dans le do-

maine de la preuve, s’introduisent des valeurs et que ces valeurs peuvent apparaître comme suffisantes pour qu’il soit fait une entorse à la vérité, tout en réputant pour vraie une situation pouvant être fausse”.

335

Cfr. KANT apud. ULLMANN-MARGALIT,EDNA e MARGALIT,AVISHAI, Holding true and holding as true, pp. 172-174.

336 Cfr. Ibidem, p. 167: “You believe of a given sentence that it is true, because you have good external reasons to believe

that it is true, but you do not believe (nor do you disbelieve, for that matter) its content - because its content is incomprehensi- ble to you”.

337 Cfr. Ibidem, pp. 167-169. 338 Cfr. Ibidem, p. 171.

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Para os autores ULLMANN-MARGALIT e MARGALIT merecem ainda distinção as no-

ções de “holding as true” e de “holding fast”339, noção com a qual WITTGENSTEIN se di-

gladia ao dissertar sobre a certeza, embora sem a classificar como tal. Em termos sintéticos e simplificados, a ideia de “holding fast” pode ser explicada considerando

uma situação em que temos um facto como ponto assente340, em que temos um grau

de certeza elevadíssima quanto a esse facto, mas somos incapazes de o demonstrar,

de o explicar341. Não podemos afirmar que o enunciado é verdadeiro ou falso, que

sabemos, que acreditamos ou tampouco que duvidamos342. Aproxima-se da ideia de

crença inabalável343, mas por vezes é instrumental, inclusive como fundamento de

investigação e acção344.

Concluindo, no extremo processual do caso julgado, é uma certa noção de “to-

mar como verdade”, mais intensa, que está implícita ao adágio res judicata pro veritate habetur, que traduz o princípio da imutabilidade das decisões transitadas em julga-

do345; princípio que, ainda assim, não é incontornável em determinadas circunstâncias

extraordinárias, em que se admite o sacrifício dessa segurança jurídica perante a ver-

dade e a justiça346-347. Similarmente, o brocardo res inter alios acta representa a ideia

339 Cfr. Ibidem, pp. 183-185. 340

Cfr. WITTGENSTEIN,LUDWIG, Da certeza, p. 73, § 235.

341 Cfr. Ibidem, pp. 75-77, § 239-243 e pp. 81-79, § 264-265, dos quais realçamos os seguintes trechos: § 239: “Acredito

que todo o ser humano tem um pai e uma mãe; mas os católicos acreditam que Jesus só teve uma mãe humana. [… similar- mente, quanto às hóstias] se Moore dissesse: «Eu sei que isto é vinho e não sangue», os católicos contradizê-lo-iam”; § 243: “Diz-se «Eu sei» quando se está pronto a indicar razões soberanas. «Eu sei» relaciona-se com a possibilidade de demonstrar a verdade […]”; § 264 e 265: “Posso imaginar que Moore fosse capturado por uma tribo de selvagens e que eles exprimissem a suspeita de que tivesse vindo de algum sítio entre a Terra e a Lua. Moore diz-lhes que sabe, etc. mas não pode indicar funda- mentos para a sua certeza, porque eles têm ideias fantásticas sobre a aptidão do homem para o voo e não sabem nada de físi- ca […] que diria, além de «Nunca estive em tal lugar e tenho razões soberanas para acreditar nisso»?”.

MOORE surge aqui como alvo de crítica de WITTGENSTEIN. Em obra de defesa do senso comum contra os cépticos, MOORE dá uma série de exemplos que representam truísmos que nós conhecemos com toda a certeza, do género «Eu sei que a Terra existiu antes de eu nascer». Para WITTGENSTEIN este género de afirmações representam “that which stands fast for us”. Cfr.

ULLMANN-MARGALIT,EDNA e MARGALIT,AVISHAI, Holding true and holding as true, p. 183.

342 Cfr. U

LLMANN-MARGALIT,EDNA e MARGALIT,AVISHAI, Holding true and holding as true, p. 183.

343

Cfr. WITTGENSTEIN,LUDWIG, Da certeza, pp. 75-77, § 245: “A quem é que alguém diz que sabe qualquer coisa? A si mesmo

ou a outra pessoa. Se a diz para si mesmo, como é que se distingue da afirmação de está seguro de que as coisas são assim? Não há segurança subjectiva de que eu saiba qualquer coisa. A certeza é subjectiva, mas não o saber. Assim, se digo «Eu sei que tenho duas mãos» e isso não for para expressar apenas a minha certeza subjectiva, então tenho de poder convencer-me de que estou certo. Mas não o posso fazer porque o ter duas mãos não é menos certo antes de ter olhado para elas do que de- pois. Mas podia dizer: «Eu ter duas mãos é uma crença inabalável». […]”.

344

Cfr. Ibidem, p. 37, § 87.

345

Cfr. REIS,JOSÉ ALBERTO DOS, Código de Processo Civil Anotado, Vol. VI, 3ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2012. p. 335,

“Em princípio, a segurança jurídica exige que, formado o caso julgado, se feche a porta a qualquer pretensão tendente a inuti- lizar o benefício que a decisão atribui à parte vencedora[, mas] pode a sentença ter sido obtida em condições tão estranhas e anómalas, que seja de aconselhar fazer prevalecer o princípio da justiça sobre o princípio da segurança”.

346 Cfr. AcSTJ de 29/09/2010, proc. n.º 520/00.7TBABT-A.S1, no qual se determina que “o princípio res judicata pro verita-

te habetur não pode obstar a um novo julgamento, quando posteriores elementos de apreciação põem seriamente em causa a justiça do anterior. O direito não pode querer e não quer a manutenção de uma condenação, em, homenagem à estabilidade de decisões judiciais, à custa da postergação de direitos fundamentais dos cidadãos”. No mesmo sentido, no processo penal,

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de que, em relação a terceiros que não tenham intervindo na acção em que o caso julgado se formou, a sentença – e a verdade aí apurada – não lhes aproveita nem os

prejudica, embora nem sempre seja assim348. Do mesmo modo, a questão da eficácia

probatória extraprocessual da sentença penal condenatória e absolutória (art. 674.º-A

e 674.º-B do CPC)349.

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