• Nenhum resultado encontrado

PARTE II: Normas de incidência tributária

1. Princípio da legalidade e a reserva de lei

O princípio da legalidade ínsito no art. 103.º n.º 2 da CRP assume-se como um dos princípios basilares do Estado de Direito e, especificamente, do sistema tributário e da actuação da administração. Um princípio que se desdobra em duas dimensões: a

da reserva de lei e a da preferência de lei602.

A reserva de lei, em sentido formal, impõe que a legislação tributária, nomea- damente legislação que implique a criação de imposto ou que envolva a determinação de incidência, taxa, benefícios fiscais ou de garantias (art. 103.º n.º 2 da CRP), seja produzia através de lei em sentido estrito.

602 Cfr. D

OURADO,ANA PAULA, O Princípio da Legalidade Fiscal... ; DOURADO,ANA PAULA, O princípio da legalidade fiscal na

constituição portuguesa, coord. ou org. MIRANDA,JORGE Perspectivas Constitucionais nos 20 anos da Constituição de 1976, Vol. II, Coimbra: Coimbra Editora, 1997. e MARTINS,ELISABETE LOURO, O Ónus da Prova no Direito Fiscal, Coimbra: Coimbra Editora, 2010. pp. 58 e ss.

132

Assim sendo, tratando-se de matéria abrangida pela reserva relativa de compe- tência da Assembleia da República, tanto pode derivar de Lei como de Decreto-Lei

precedido de lei de autorização legislativa603 (art. 165.º n.º 1, al. i) da CRP, que, neces-

sariamente, terá de ser interpretado em conjunto com o art. 103.º da CRP)604. Tal nível

de exigência constitucional deriva, em grande medida, do secular princípio de “no ta-

xation without representation”605 ou da auto-tributação606.

A reserva de lei, em sentido material, exige que a lei de autorização legislativa

fixe o conteúdo da lei autorizada607. Como LOURO MARTINS sucintamente explana, esse

conteúdo não será fixado de “forma total e densa, mas de forma a assegurar o cum-

primento dos requisitos de (i) determinabilidade, (ii) previsibilidade, (iii) estabilidade e (iv) fundamentação da decisão legislativa, que será tomada pelo Governo no que res- peita pelo menos aos elementos essenciais da lei autorizada”608. Elementos que dão expressão às exigências constitucionais de segurança jurídica e de proibição de impos- tos retroactivos.

Como consequência da reserva de lei e das exigências constitucionais no que

concerne ao conteúdo das normas fiscais, retira-se a ideia de tipicidade legal609. Com

efeito, a norma deve estar suficientemente determinada na lei, não dando margem

603 Este mecanismo foi, outrora, objecto de grande controvérsia, colocando-se problemas ao nível da caducidade da lei de

autorização de um Orçamento – Vide CANOTILHO,J.J.GOMES, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª ed. Coimbra: Almedina, 2011b. pp. 770-771; MIRANDA,JORGE e MEDEIROS,RUI, Constituição Portuguesa Anotada, Vol. II, Coimbra: Coimbra Editora, 2005., art. 165.º; e AcTC 86-069-2 de 05-03-1986 e 87-435-2 de 04-11-1987 – questão hoje algo obsoleta, em conse- quência das revisões constitucionais que lhe sucederam, especificamente com o aditamento do n.º 5 ao art. 165.º.

604 Cfr. D

OURADO,ANA PAULA, O princípio da legalidade fiscal na constituição... coord. ou Perspectivas Constitucionais... Vol.

II, pp. 429-430.

605

“[...] correspondente à ideia de que, sendo o imposto uma amputação de riqueza privada, a sua legitimação resultaria

de aprovação pelos representantes populares. Trata-se de uma ideia que atingiu o seu auge com as revoluções liberais, sendo, então, o princípio da legalidade entendido como forma de assegurar que a agressão do Estado à esfera patrimonial privada – consubstanciada no imposto – se confrontaria dentro de limites apertados, uma vez que os seus representantes populares, por regra e em face dos mecanismos de sufrágio censitário não teriam qualquer interesse em permitir cargas fiscais pesadas” – Cfr.

MIRANDA,JORGE e MEDEIROS,RUI, Constituição Portuguesa Anotada, Vol. II, anotação ao art. 103.º, 2006.

606

A ideia relaciona-se com o iluminismo francês do século XVIII e especialmente com “o contrato social[, que] transferia

um conjunto de direitos e de regalias para o Estado [que] manifestava a sua vontade através de órgãos”, nomeadamente o

Parlamento, pelo que “eram os eleitores [...] que acabavam por se tributar a si mesmos, definindo os impostos que queriam

pagar, como e em que termos os iam pagar”. Vide CAMPOS,DIOGO LEITE DE, As três fases de princípios fundamentantes do

direito tributário. "Revista da Ordem dos Advogados", Ano 67, Vol. I, Jan 2007pontos 8 e 9; também CANOTILHO,J.J.GOMES e

MOREIRA,VITAL, Constituição... Vol. I, art. 103.º, anotação VII.

607

Problema que tratado por SANCHES,J.L.SALDANHA, O grau de determinabilidade exigível nas autorizações legislativa.

"Fisco", 15; também abordado no AcTC n.º 358/92 de 11/11/1992; uma antiga querela que DOURADO,ANA PAULA, O Princípio

da Legalidade Fiscal... pp. 85, resume afirmando que “as leis de autorização são linhas de conduta [e que] não criam uma fon- te de direito aplicável às regras que pretende reger”.

608 Cfr. M

ARTINS,ELISABETE LOURO, O Ónus de Prova... pp. 60-61.

609

Cfr. DOURADO,ANA PAULA, O princípio da legalidade fiscal na constituição... coord. ou Perspectivas Constitucionais... Vol. II, pp. 440-443, não se afigurando pertinente, no delimitado âmbito deste estudo, maiores alusões à controvérsia em torno do conceito. Para tal, cfr. pp. 440-474 e DOURADO,ANA PAULA, O Princípio da Legalidade Fiscal... pp. 225-356.

133

para desenvolvimento regulamentar ou discricionariedade administrativa. Devendo o destinatário da norma – uma pessoa média – ser capaz de a interpretar, de discernir o seu alcance e conseguir, com alguma certeza, prever qual será o seu direito ou obriga- ção tributária, assuma ela a natureza de dívida (quantificação) ou de alguma forma de cooperação ou participação no procedimento e o processo tributário.

Se tal conteúdo se revelar parco, como LEITE DE CAMPOS faz questão de realçar, o

art. 103.º, n.º 3 da CRP consagra um claro e efectivo “direito de resistência quanto aos

impostos inconstitucionais e também quanto aos impostos ilegais em termos de liqui- dação e de cobrança”610-611.

Mais complexa e controversa é a questão sobre os elementos da lei tributária que estão efectivamente abrangidos pela reserva de lei. Não sendo esse o objecto desta dissertação, essa antiga querela doutrinal e jurisprudencial (apesar de quase

sempre se cingir a questões meramente formais612) não deixa de ter relevância para o

debate sobre as presunções, pois da discussão sobre as fronteiras entre imposto e taxa podem ser retirados ensinamentos para procurar esclarecer a amplitude e os limites das disposições sobre presunções em matéria tributária previstas no art. 73.º da LGT.

610 Cfr. C

AMPOS,DIOGO LEITE DE, As três fases de princípios... "ROA", pontos 4, 9 e 12.

611

O disposto neste art. 103.º n.º 3 é alvo de acentuada controvérsia interpretativa, pela aparente dificuldade de compa- tibilização deste direito de resistência com o privilégio de execução prévia da Administração Tributária, conforme alertam

CANOTILHO,J.J.GOMES e MOREIRA,VITAL, Constituição... Vol. I, art. 103.º, anotação VIII; Vide ainda MIRANDA,JORGE e MEDEIROS,

RUI, Constituição Portuguesa Anotada, Vol. II, anotação ao art. 103.º, ponto 2.3.4. 2006, que realçam que se está “aqui peran-

te uma garantia abrangente que faz com que a preterição das regras sobre criação de impostos envolva tanto inconstituciona- lidade formal e orgânica quanto material”, ideia “justamente suportada pelo primeiro termo de identificação do direito de resistência aqui consagrado – impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição –, distinto do segundo termo, mais restrito – impostos que tenham natureza retroactiva – [e distinto ainda do] terceiro termo, [que se reconduz] à questão da tipicidade/legalidade fiscal”; Vide ainda, especificamente sobre o tema, MESQUITA,MARIA MARGARIDA CORDEIRO, Direito de

Resistência e Ordem Fiscal, CTF, 1989.

612

Cfr. MIRANDA,JORGE e MEDEIROS,RUI, Constituição Portuguesa Anotada, Vol. II, pp 852-854: “A discussão em torno do

princípio da legalidade e a sua relação com outras figuras tributárias que não os impostos pode implicar – como tantas vezes implica – juízos de (in)constitucionalidade essencialmente formais, que questionam e resolvem, para usar uma expressão de

NABAIS,JOSÉ CASALTA, “mais a forma (lato sensu) ou a “embalagem” dos impostos do que o seu conteúdo ou justiça”; assim

dando eco das preocupações de NABAIS,JOSÉ CASALTA, Jurisprudência do Tribunal Constitucional em Matéria Fiscal - Por um

Estado Fiscal Suportável - Estudos de Direito Fiscal, Vol. I, Coimbra: Almedina, 2005. p. 476, que responsabiliza as entidades ou

sujeitos processuais que suscitam a intervenção do TC em sede de fiscalização de constitucionalidade, e que lança a questão:

134

2. A taxa, a contribuição e o imposto; as prestações efectivas, presumi-

Documentos relacionados