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3 INTERPRETAÇÃO MUSICAL

3.2 Fidelidade e liberdade na interpretação musical

No momento da interpretação musical de uma obra, o interprete deverá estar atento aos limites de interferência que são possíveis em uma música, pois o mesmo poderá realizar mudanças em relação às ideias da obra. Entretanto, isto poderá acontecer mesmo que o músico busque realizar uma performance de forma fiel em relação ao que está escrito em uma partitura, e embasado nas ideias do autor. Esta interferência pode estar relacionada tanto à experiência do intérprete, quanto a questões relacionadas ao momento da performance, portanto, “Não é possível manter a essência de uma obra, mas sim revelá-la a partir das diversas leituras que cada executante imprime em sua interpretação” (APRO, 2006, p. 29).

O intérprete pode buscar realizar uma execução embasada nas informações que a partitura lhe oferece, buscando a fidelidade interpretativa, como também, acrescentar as ideias de acordo com as intenções do compositor, caso se tenha o contato com o mesmo. Isto se torna uma possibilidade, principalmente, quando se busca realizar uma execução fiel da obra. Em relação ao compositor e o intérprete, Abdo (2000, p. 22) destaca que:

Sintonizar-se com essa presença do autor em sua obra é uma possibilidade permanente para o intérprete, que só precisa introduzir-se no próprio tecido composicional, ouvindo e interpretando as solicitações e sugestões que a própria obra lhe faz. Por meio desse diálogo íntimo, fundamentalmente, e não através do recurso a dados externos, o intérprete pode colher a obra em sua verdade própria e, ao mesmo tempo, como memória viva e indelével de quem a fez.

Durante a preparação interpretativa de uma determinada obra, muitos problemas poderão ocorrer, interferindo de maneira determinante em relação ao resultado final da performance. Para os trabalhos composicionais atuais, equívocos interpretativos poderão acontecer, caso não haja o contato do músico com o compositor que, através de suas sugestões, pode oferecer uma compreensão mais fidedigna a respeito da obra a ser trabalhada. Mesmo o compositor colocando informações nas partituras e dialogando com o intérprete, esse processo pode não ser suficiente para mediar as informações necessárias entre o intérprete e o compositor na busca por uma interpretação fiel.

Os próprios teóricos defensores da ala da ‘fidelidade na interpretação’ não conseguem estabelecer o limiar entre participação imparcial e personalidade do intérprete, embora a maioria empenhe-se na tarefa de ressaltar que tal participação constitui um problema a ser eliminado ou, pelo menos, restringindo. Entretanto, apesar de este ter sido um ideal estético- interpretativo vigente em quase todo o decorrer do século XX poucos teóricos lançaram-se na tarefa de defender tal conservadorismo. Percebem- se, inclusive, contradições internas nos discursos dos autores que defendem tal posicionamento (APRO, 2006, p. 30).

Mesmo aqueles que buscam a fidelidade reconhecem que, no momento da performance, pode ocorrer interferências na execução musical, ou seja, todas as intenções do autor ao escrever uma obra, como também as ideias transmitidas tanto pela partitura quanto em um possível contato com o intérprete, podem ser modificadas. Alguns realizam mudanças de acordo com suas próprias ideias, ou até mesmo, por não ter vivência na execução de um determinado gênero / estilo musical. Também, devemos levar em consideração as falhas técnicas que podem ocorrer no momento da apresentação, tais como: o mal funcionamento do instrumento, falhas de notas, escolha equivocada de uma determinada posição, no caso do trombone, entre outros fatores. A respeito destas possíveis mudanças que podem ocorrer no momento da performance, Lima, Apro e Carvalho (2006, p. 15) ressaltam que:

[...] a execução musical também pode ser modificada por fatores externos que surgem no momento em que se realiza a execução. As condições acústicas de uma sala de concerto, a emoção do intérprete no ato da

execução, os problemas advindos de uma corda de violão mal ajustada ao dedo, e até o erro recorrente, são situações nas quais o instrumentista tem pouco ou nenhum controle e interferem prontamente no resultado final da execução. Dessa forma, sob o ponto de vista da sensorialidade, as escolhas dos executantes processam-se em qualquer nível de consciência, até mesmo nas escolhas inconscientes que ele assumiu em razão das inúmeras variáveis que coabitam no universo interpretativo.

Toda experiência musical adquirida pelo intérprete irá influenciar no resultado final da performance, fazendo com que cada interpretação se torne única. Mesmo que diversos intérpretes busquem o máximo de referências e inferências ao autor da obra, jamais irão realizar performances idênticas, ou da forma que o compositor interpretaria. Apro (2004, p. 48) ao falar de fidelidade e liberdade em relação ao intérprete, destaca que:

Afirmações do tipo: ‘não existe relação entre intérprete e obra’, ‘a interpretação é algo de fora’, ‘a interpretação não é mais do que uma cópia da obra’, ‘a obra é apenas o ponto de partida para uma interpretação criativa’ etc. demonstram que, de um lado, há um equivocado respeito pela obra e, de outro, as diferentes leituras são sempre expressões de um novo intérprete. [...] A fidelidade é um dever, através do qual o executante procura penetrar no âmago da obra para poder traduzí-la [sic] em sua própria essência, enquanto a liberdade é, de fato, intransponível, pois a personalidade não representa obstáculo, ao contrário, trata-se da própria iniciativa pessoal do intérprete, a qual não pode ser renunciada (afinal, ninguém é capaz de sair de si mesmo ou de substituir o autor).

Ainda sobre fidelidade e liberdade na interpretação, Abdo (2000, p. 23, grifos do autor) diz que:

Feitas essas considerações, o que enfim se deve esperar, filosoficamente falando, de qualquer execução/interpretação musical? Tratando-se de uma relação dialética, na base da qual estão pólos orgânicos, constitutivamente multifacetados, plurissêmicos e inexauríveis, o que, em suma, se pode esperar desse tipo de atividade é, ao mesmo tempo e inseparavelmente, a revelação da obra em uma de suas possibilidades e a expressão da pessoa que interpreta, condensada em um de seus múltiplos pontos de vista. Nada mais falso e absurdo do que esperar coisa diversa, seja desconhecendo a natureza pessoal do ato interpretativo e pregando uma ‘reevocação’ fiel e impessoal, uma réplica, enfim, do significado concebido pelo compositor; seja ignorando a plurissemanticidade constitutiva da obra de arte e pretendendo uma única interpretação correta; seja pregando uma execução tão pessoal e original que se sobreponha à obra, forçando-a a dizer o que ela não quer ou mais do que quer dizer, como se fosse a pessoa do executante, o centro primeiro das atenções e a obra um mero pretexto para a sua expressão.

Portanto, o intérprete deve estar atento às principais ideias do compositor, buscando o maior nível de compreensão da obra, como também, saber que, mesmo buscando uma total fidelidade interpretativa, o resultado final refletirá as diversas experiências vivenciadas pelo músico. Muitas interferências poderão ocorrer tanto no processo de preparação de uma obra, quanto no momento da performance que, neste último caso, o intérprete pode não ter controle das possíveis modificações. Assim, o principal papel do intérprete é saber lidar com as informações disponíveis em uma partitura e, a partir disto, criar uma interpretação que respeite as ideias do autor, sem deixar de lado sua personalidade como músico.

A interpretação acontece, portanto, quando subsiste um equilíbrio entre o objeto respeitado e a atividade do intérprete, que interroga, descobre e revela a obra, num processo simultâneo de construção e desenvolvimento. A marca pessoal do intérprete está sempre atrelada à essência da obra, em forma de fidelidade ativa, e não passiva (ou em forma de liberdade respeitosa, e não arbitrária). Uma reformulação adequada a esta controvérsia seria a de que o intérprete não deve renunciar sua personalidade, nem pretender expressar-se unicamente a si mesmo. A fidelidade é aquela na qual o executante usa de todos seus potenciais para revelar uma obra, ao passo que todo esforço de impessoalidade é inútil, pois não existem duas execuções absolutamente idênticas (APRO, 2004, p. 48).

Assim, podemos observar que são diversos os desafios existentes ao se interpretar uma obra, e o músico deve buscar, ao máximo, compreender as informações contidas na partitura, além de estar atento as diferentes possibilidades interpretativas. Dessa forma, devemos levar em consideração os sinais grafados na partitura que revelam as intenções do compositor, tendo a consciência que a experiência musical do intérprete poderá influenciar, de maneira significativa, no resultado final da execução instrumental / vocal.