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NOTA INTRODUTÓRIA

A HISTÓRIA URBANA COMO VALORIZAÇÃO DO NÃO-URBANO: SUBURBANIZAÇÃO CLÁSSICA

2.1 A FORMAÇÃO DE UMA MENTALIDADE

No século XVI e XVII, a construção de casas no campo implicava altos custos de manutenção de duas casas, na cidade e no campo, bem como a dificuldade de acesso e a necessidade de um sistema particular de transportes. Por esta razão, ter uma casa no campo tornou-se um privilégio apenas das classes mais abastadas e com maior poder aquisitivo, no caso da Inglaterra de então, invariavelmente a nobreza. Era, de certa forma, o inicio da associação, pela burguesia, de casa de campo/subúrbio à idéia de nobreza.

No século XVIII, consolidou-se, de forma inequívoca, a idéia e importância da casa de campo ou da villa inglesa, tanto como local de lazer e idílio de final de semana como símbolo de status e de desejo de ascensão social. A burguesia sem títulos de nobreza, porém que se enriqueceu de forma relativamente rápida e, com a revolução industrial, passou a adquirir símbolos de status, dentre os quais estava a construção de casas de campo.

Iniciou-se, desta forma, a etapa seguinte no processo de suburbanização inglês. Não mais eram casas isoladas em grandes propriedades rurais, mas a construção destas casas numa pequena cidade, próxima à grande cidade. Entretanto, algumas características das villas eram mantidas, como a de estar isolada do vizinho, ser um símbolo de status, ter um jardim e principalmente, trazer para o meio rural todo o conforto de uma moradia urbana (FIG. 28).

FIGURA 28 - Battersea Rise house, construída c. 1770 na região oeste de Clapham. Nesta edificação a fachada

ainda remete às villas dos nobres inglesas. Mas os principais elementos da construção de residências de Clapham estão presentes. Casa recuada da rua, afastada dos vizinhos, com jardins circundando e região arborizada. A foto é de 1890 (circa).

Alguns nobres ou proprietários de terras nos arredores de Londres, cientes desta demanda e nela vendo uma possibilidade de ganhos com terras improdutivas, lotearam e criaram bairros ou pequenas vilas suburbanas fora de Londres, destinadas a atender à burguesia recém enriquecida. Foi sob esta ótica que surgiu Clapham.

No início do século XVIII, comerciantes com maiores recursos iniciaram a construção de suas casas de final de semana em Clapham, uma localidade a sudoeste de Londres, localizada cerca de 5 milhas (8 km) de seu centro. Construíram suas residências ao redor de um parque, o Clapham Common (FIG. 29). A dificuldade de transporte e a exigência de um meio particular de deslocamento até a cidade principal — carruagem ou cavalo — estabeleceu uma das premissas da conexão subúrbio/centro da cidade, que se manteve até o século XXI: a dificuldade de implantação (inviabilidade) de sistemas de transporte público ou de massa e a preferência pela ―independência‖ possibilitada pelo meio de transporte privado (FIG. 30). Esta dificuldade de acesso estabeleceu e reforçou uma das características inerentes a este padrão de suburbanização (inglês): a segregação.

FIGURA 29 - Mapa do Clapham Common, Ca.

1800.

Fonte: FISHMAN, 1987, [p. 166]

FIGURA 30 – Clapham, região de Springwell na região

norte do Clapham Commom, onde predominavam grandes residências, gravura Ca. 1800.

Fonte: IDEAL HOMES: SUBURBIA IN FOCUS, 2008

Entretanto, quando a burguesia se mudou para os subúrbios, as referências em termos de arquétipo habitacional mudaram, não sendo mais o modelo aristocrático inspirado na villa italiana. O modelo adotado se aproximava mais do Cottage inglês, que, principalmente no século XIX, se tornaria o padrão de construção suburbano (FIG. 31).

Na construção destas casas no campo, embora ―trouxessem‖ da cidade todos os confortos, houve uma grande diferença em termos da implantação de casas no terreno: passaram a ser locadas isoladas, no meio de terreno, não mais parede/meia com o vizinho. A

separação era feita através de jardins e vegetação, procurando garantir, de certa forma, a privacidade familiar.

FIGURA 31 - Projeto de Cottage para o subúrbio de

Victoria Park, próximo a Manchester.

Fonte: METHODIST INTERNATIONAL HOUSE, 2008.

FIGURA 32 - Detalhe da planta de um cottage inglês

(FIG.29) com indicação da área de trabalho dos empregados com acesso independente a seus aposentos e aos aposentos dos proprietários.

Fonte: METHODIST INTERNATIONAL HOUSE, 2008, modificada pelo autor.

Se o jardim refletia o isolamento da cidade, este isolamento e a larga segregação urbana também se viam refletidas na planta da casa. Nas casas da classe média, os empregados eram isolados das famílias que serviam. Um intricado sistema de escadas externas no fundos das casas e locais separados para cozinhar e para limpeza reduziam ao mínimo o contato, apenas o necessário para uma direta supervisão (FIG. 32). Ironicamente, o mesmo sistema de forças econômicas que fez da mulher da classe trabalhadora uma parte integral do sistema fabril, completou a separação16 da mulher burguesa da desmoralizadora esfera de

trabalho.

Este será o inicio do estabelecimento de outro parâmetro do morador de subúrbio: a convivência se volta primordialmente para a família. Embora localizada em um núcleo urbano, a idéia de comunidade ficou, esssencialmente, associada à família (FIG. 33). Quando o burguês e sua família se estabeleceram, de forma definitiva, nesta casa de subúrbio, o local de trabalho ainda permaneceu na cidade. Desta forma consolidou-se a premissa que o principal vínculo fora do núcleo familiar (comunidade), na vida suburbana, estava na cidade (FIG. 34). A casa passava a ser elaborada para a vida e convívio exclusivo da família. Downing detalha as virtudes desta vida ideal:

16Cumpre-se observar que neste caso foi fundamental a visão de família que era então difundida por pastores e

teólogos evangélicos que viam a família como a base da sociedade e que deveria ser, sempre que possível, mantida isolada do ambiente ―degradante‖ da cidade, que enquadra-se naquilo que teóricos como Fishman (1987, p. 96) chama de ideal vitoriano de domesticidade de autores como William Wiilberforce, Hannah More e as irmãs Beecher, Catherine e Harriet. Para maiores informações ver:

BEECHER, Catherine E. A treatise on domestic economy, for the use of young ladies at home, and at school. New York: Harper & Bros, 1848. 369 p.

BEECHER, Catherine E.; STOWE, Harriet Beecher. American woman's home or principles of domestic science: being a guide to the formation and maintenance of economical healthful beautiful and christian homes. Whitefish, Mt: Kessinger Publishing, 2004 (1869). 264 p.

Nós projetamos estas villas para expressar a vida de uma família de gosto refinado e cultivado, cheia de sentimentos domésticos, amor pelo campo, e gosto pelo rural e pela beleza da natureza – não obstante, um verdadeiro lar americano, no qual tudo está adaptado aos desejos e hábitos da vida de uma família em circunstâncias independentes. (DOWNING, 2006/1850, p.21)

FIGURA 33 – Lar doce lar. Litografia colorida a

mão, publicada por Muller, Co., ca. 1880.

FIGURA 34 - Os frutos da sensatez – Litografia colorida a mão de

Nathaniel Currier (1813-1888), publicada por J.B. Allen, ca. 1848. Legenda constante na gravura: ―Eis o filho da sensatez, com coração jubilante passo a passo, retornando à sua casa, sua parceira parece cheia de sorrisos de boas vindas, ... seus filhos voam para encontrá-lo, e abraçá-lo com seus pequenos braços e com os lábios e o coração lhes abençoando.‖ (Tradução do autor).

Estas duas imagens são significativas da mentalidade de espírito da época, aparecem várias das premissas que norteavam o espírito do século XIX. Na gravura à esquerda (FIG. 33) aparece o interior de uma casa norte- americana. O ambiente é de tranqüilidade e estabilidade. Os rostos de todas as personagens são calmos e serenos, a casa aparenta conforto e certo luxo. Todos se encontram bem vestidos. Na janela à esquerda pode-se perceber uma paisagem campestre. Entretanto, a roupa do pai da família não é de um trabalhador rural, o que pode-se inferir tratar-se de uma residência de subúrbio. Na gravura da direita (FIG. 34) a família também é o foco do tema. No caso é o marido/pai/provedor, retornando do trabalho. Os membros da família aparentam como na outra gravura tranqüilidade e serenidade, estão bem vestidos. A casa localiza-se em um subúrbio, não muito distante do local de trabalho. Observa-se que a cor é aplicada apenas no ambiente familiar (ou muito próximo). A fábrica e mesmo a paisagem natural são coloridos em tons cinza. A cor/vida está no ambiente familiar; esta opção de cores também é adotada na figura 34, embora a paisagem externa seja ―bucólica‖, as árvores, bem como o céu estão em tons esmaecidos e acinzentados. Nas duas gravuras as únicas personagens são os membros da família. Não se vê outras pessoas ou mesmo outras casas, que, eventualmente poderiam aparecer na gravura à direita (FIG. 34). Nesta idéia de ambiente ideal são explicitados a importância da família como a comunidade, a casa e local idílico fora da cidade, a separação total do trabalho (este como um local inadequado ao ambiente familiar) e principalmente, estes fatores como símbolo de paz, harmonia e de posição social na burguesia.

Fonte: THE LIBRARY OF CONGRESS (1), 2008. Fonte: THE LIBRARY OF CONGRESS (2), 2008.

Enquanto a burguesia ascendente construía suas casas no campo, a cidade passava por profundas transformações que vieram no arcabouço da revolução industrial. Assistiram a um crescimento expressivo de sua população e, numa cidade não preparada e com problemas de salubridade, as condições se deterioravam aceleradamente.

Por outro lado, o projeto de uma típica comunidade suburbana pode ser descrito como a união da casa no campo, da villa com todos os confortos de uma morada urbana e das tradições pitorescas, reforçadas pelos conceitos particulares do pensamento evangélico. Os evangélicos nunca se cansaram de repetir que a vida social urbana devia ser rejeitada em

prol da verdadeira recriação divina que havia na vida familiar e no contato direto com a natureza, sua verdadeira razão de ser.

A residência no subúrbio reuniu todos os aspectos que a tornaram atraente à burguesia urbana: casa no campo dentro de uma tradição pitoresca e idealizada, associada à vida no campo, que, no século XIX, consolidou-se como sinônimo de vida saudável, reforçada pelos ideais evangélicos de pureza e de necessidade de se isolar a família dos malefícios da vida urbana.

A estes fatores, agregou-se outro muito interessante em uma sociedade capitalista: terras mais baratas que na região central da cidade possibilitando maior facilidade de aquisição, pelo menor investimento inicial (imobilização), além de ajudar na venda das futuras casas / lotes, pois teriam um preço menor. Este custo menor que poderia atrair as classes com menor poder aquisitivo, tinha na distância uma barreira visto que inexistência de um sistema público e eficiente de transporte exigia de seu futuro morador meios particulares de locomoção.

Embora não se tenha dados históricos do início do processo da mudança definitiva de famílias para Clapham, transformando a residência de finais de semana na principal moradia familiar, em 1790 este processo já aparecia consolidado. Clapham (FIG. 35) tornou- se um verdadeiro subúrbio, perto de uma grande cidade: Londres.

FIGURA 35- Clapham – vista geral da cidade em 1890.

Fonte: UNIVERSITY OF GREENWICH, 2008.

O subúrbio consolidou-se e estabeleceu alguns parâmetros: segregação, isolamento, símbolo de ascensão social. A implantação das casas no terreno, a planta das edificações procuravam sempre um equilíbrio na balança público / privado: cada propriedade era privada, mas todas contribuíam para a conformação da paisagem de casas no campo. Por outro lado, o isolamento da casa criava, ainda que numa escala reduzida, a idéia de um pequeno território do burguês, que poderia fazer com que sua casa obtivesse o destaque

que almejava. Provou ser o perfeito local onde o antigo simbolismo do poder aristocrático poderia ser apropriado pela classe média.

A suburbanização também apelava para pensamentos mais conservadores. Thomas Carlyle acreditava que o crescimento da cidade industrial tinha possibilitado a criação de laços entre os trabalhadores, comunidade e igreja. Mudando os trabalhadores e a classe-média para ―Vilas‖ em regiões próximas a grandes cidades poder-se-ia dar uma volta no relógio (ou melhor expressando, voltar no tempo). Em cidades menores, acreditava-se, mulheres e crianças poderiam estar protegidas da má influência da cidade, com suas casas de prostituição, tavernas e das ―indecências em geral‖.

Lewis Mumford (2004) qualificava o subúrbio como a anti-cidade, sugando a essência das antigas áreas urbanas. Como a maioria das residências e das sedes de grandes empresas mudava-se para a periferia, ele arguia, os subúrbios transformaram cidades de centros criativos em parcelas descartadas e desintegradas da massa urbana.