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Os trabalhos neuropsicológicos demonstraram sem sombra de dúvida a im­ portância de estruturas do lobo temporal e do diencéfalo para a memória de longo

prazo declarativa (memória semântica e episódica). J á lesões frontais não causam a amnésia global que resulta de lesões naquelas áreas. No entanto, prejuízo em tarefas de memória foi atestado em diversos estudos. Por exemplo, a extirpação ou lesão do lobo frontal produz déficit de desempenho em tarefas que requerem julgamento mnemónico de recência, isto é, do julgamento da ordem temporal de eventos (Jano wsky et al., 1989; Milner et al,, 1991), assim como em tarefas sujei­ tas à interferência (D elia Rocchetta e Milner, 1993). A aprendizagem de asso­ ciações condicionais arbitrárias entre estímulos e respostas também se encontra comprometida (Petrides, 1985; 1990). Neste caso parece que o problema reside na dificuldade de selecionar, dentre um conjunto de respostas que competem en­ tre si, aquelas que são apropriadas para os diversos estímulos (Petrides, 1997). Ainda na década de 1930, verificou-se que danos ao lobo frontal podem produzir déficits de memória em primatas, nos paradigmas clássicos de resposta retardada e alternação retardada (Jacobsen, Wolfe e Jackson, 1935; Jacobsen e Nissen, 1937). A tarefa de alternação retardada requer que o sujeito selecione um de dois objetos em múltiplas tentativas sendo a resposta correta aquela que corresponde ao objeto ou ao local que não foi escolhido anteriormente. E ntre uma tentativa e outra há um intervalo de retenção. E ssa linha de pesquisa ini­ ciada com primatas teve continuidade desde a década de 1950 até os dias atuais, tendo revelado que o CPF dorsolateral parece ser crítico para a alternação espa­ cial retardada (B utters e Pandya, 1969; M iller e O rbach, 1972; Mishkin, 1957; Mishkin et al., 1969) embora não o seja para a alternação retardada de objetos (Mishkin et aL., 1969), enquanto que1 o córtex órbito-frontal está envolvido em ambas as tarefas (M iller e O rbach, 1972). E m humanos, estudos com portadores de lesão na região órbito-frontal indicaram que essa área é importante para o de­ sempenho em testes de memória principalmente em condições que propiciam alta interferência (Stuss et aL, 1982), o que é o caso de tarefas de alternação em que a memória de tentativas anteriores, que são irrelevantes para a tentativa atual, competem com esta última, impedindo o desempenho correto.

A participação do lobo frontal na memória também tem sido posta em evidência com estudos recentes de neuroimagem (veja F letcher e Henson , 2001, para revisão).

O córtex pré-frontaL parece ser a região cerebral na qual se realiza o con­ trole executivo que governa as manipulações necessárias à codificação e recupe­ ração da informação, isto é, as manipulações que constituem a memória de longo prazo. E ssa conclusão deriva dos freqüentes achados de ativação de regiões frontais esquerdas durante a fase de codificação de informações, enquanto que regiões frontais direitas são ativadas durante a recuperação (Allan et aL., 2000; B uckner et aL., 1998 a; b; K irchhoff et aL, 2000; N yberg et al., 1996; R ugg et aL., 1996; W agner et aL., 1998).

Algumas das preocupações dos pesquisadores atualmente são procurar áreas do córtex frontal e de outras regiões cerebrais específicas para a memó­

N E U R O P S IC O L O G IA H O J E

ria episódica e de desvendar as relações entre memória operacional e memória de longo prazo com o auxílio de técnicas de neuroimagem (B raver et aL, 2001; N yberg, 2002).

E m resumo, o lobo frontal representa papel extremamente importante nas funções de memória, tanto na memória operacional como foi destacado anterior­ mente, como na memória de longo prazo declarativa/episódica. N esta última, o córtex pré-frontal participa das atividades de codificação e de recuperação, possivelmente pela alocação apropriada de recursos atencionais, julgamento tem­ poral e espacial, seleção de estímulos, inibição de interferências e outras funções executivas.

Interação entre as regiões temporais mediais e frontais ocorrem segura­ mente, possivelmente em paralelo e bidirecionalmente, formando um sistema de memória declarativa/episódica. O papel de estruturas diencefálicas ainda parece obscuro. Interagindo com o sistema frontotemporal, eventos com carga emocio­ nal acionam a amígdala que, por sua vez, modula os processos de formação da memória declarativa/episódica (F ernandez e T endolkar, 2001).

M e m ó r ia e p is ó d ic a e m e m ó r ia s e m â n t ic a

A memória contém tanto informações de conhecimento geral como infor­ mações sobre acontecimentos específicos. E sta distinção veio a ser conhecida como a diferença entre memória semântica e memória episódica, lançada por E ndel T ulving em artigo de 1972, e depois aprofundada em livro de 1983.

Nas palavras de T ulving (1983, p. 21), “memória episódica é um si)tema que recebe e armazena informação dobre eventos ou episódios temporaimente datados, e a s rela­ ções têmporo-espaciais entre eles” (...), ao passo que(...) “memória semântica é a memória necessária para o uso da linguagem. E um dicionário mental, o conhecimento organizado que uma pessoa possui a respeito de palavras e outros símbolos verbais, seu significado e referentes, a respeito de relações entre eles, e a respeito de regras, fórmula s e algoritmos para a manipulação dos símbolos, conceitos e relações E le ainda acrescenta na sua caracte­ rização de memória episódica e memória semântica: "como as pessoas são capazes de se lembrar tanto de eventos não-significativos como significativos, os eventos podem ser ar­ mazenados no sistema episódico em termos de suas propriedades perceptíveis apenas, embora o importante pa pel que o sistema semântico desempenha no armazenamento e na evocação de informações da memória episódica também tenha que ser presumido em fa ce de muitas evidências relevantes. O ato de evocação de informação tanto do sistema se/ nântico como do si)tema episódico constituiria um evento que poderia ser registrado no armazenamento epi­ sódico e, assim, mudar seu conteúdo. Propriedades perceptivas dos sinais de entrada não são registrados na memória semântica, apenas seus referentes cognitivos”. E ainda: o sistema episódico é "provavelmente muito susceptível de transformação e perda de informação”, ao pa sso que a evocação de informação do sistema semântico deix aria inalterado o seu con­

M E M Ó R IA E A M N É S IA

teúdo(...), e que, “em gera i, o d is tema demântico émenod dusceptível à perda de informação do que o d is tema episódico”.

Cerca de dois terços de século antes de T ulving, diferenciação semelhante já havia sido claramente exposta por B ergson, um conceituado filósofo francês de fms do século X IX e começo do século X X :

A lembrança da lição, enquanto aprendida de cor, tem todas ad características de um hábito. Como o hábito, ela é adquirida pela repetição de um mesmo edforço. (...)E la arma- zenou-de(..i) num didtema fecha do de nwvimentod automáticod que de dueedem na mesma ordem e ocupam o medmo tempo.

Ao contrário, a lembrança de ta l leitura partieular, a degunda ou a terceira, por ex emplo, não tem nenhuma das características do hábito. Sua imagem imprimiu-de neces- dariamente de imediato na memória, já que as outrad constituem, por definição, lembranças diferentes. E como um acontecimento de minha vida; contém, por eddência, uma data, e não pode, conseqüentemente, repetir-de. (...)

(..^L evando a té o fim esda distinção fundamental, poderíamod representar-nod duas memórias teoricamente independented. A primeira registraria, dob forma de imagens — Lem­ branças, todod os acontecimentod de nodsa vida cotidiana à medida que de dedenrolam (...) atribuiria a cada fato, a cada gesto, deu lugar e dua data. (...)nela nod refugiaríamod todas as vezes que remontamos, para a í buscar uma certa imagem, a encodta de nodda vida pasdada. (...) à medida que as imagens, uma vez percebidas, de fix am e de alinham nesda memória, od movimentod que as continuam modificam o organismo, criam no corpo dispodições novas para agir. A sdim de forma uma ex periência de uma ordem bem diferente e que de depodita no corpo, uma dérie de mecanismod inteiramente rnonladod(...) Tomamod consciência desdes mecanismod no momento em que eted entram em jogo, (...) é ainda uma memória, mas uma memória profundamente diferente da primeira, dempre voltada para a ação, asdentada no presente (...)” (B ergson, 1999; p. 85 e seguintes; edição original de 1896).

Apesar de o conceito de hábito de B ergson apresentar mais semelhança com o conceito de memória de procedimento, o seu conceito de memória contém todos os elementos presentes na memória episódica de T ulving. A memória para o filósofo retém a informação de episódios particulares, insere-se num tempo e lugar específicos, ou seja, é contextualizada; e trata-se, além disso, de um acon­ tecimento pessoal, vivenciado, e, como todo momento vivido, não é repetível. Ao contrário, o hábito distingue-se pela repetição em sua origem mesma, pela automaticidade, e por manifestar-se pelos seus efeitos.

TAX I ON OM I A DA M EM ÓRIA

O estudo de pacientes amnésicos forçou a ampla aceitação, embora longe de ser unânime, da noção de que a memória não é uma entidade única, mas composta de múltiplos sistemas. E sta é uma abordagem relativamente recente, refletindo em grande medida o desenvolvimento da moderna neuropsicologia, que enfatiza a relação cérebro-mente e cérebro-comportamento.

Uma das primeiras distinções foi entre memória declarativa e memória de procedimento, dissociadas tanto funcionalmente como anatomicamente (Cohen, 1984; Squire, 1986).

A memória declarativa é a habilidade de armazenar e recordar ou reco­ nhecer conscientemente fatos e acontecimentos; a lembrança pode ser declarada, isto é, trazida à mente verbalmente como uma proposição, ou não verbalmente como uma imagem (Saint-Cyr et aL, 1988; Squire, 1986). E ste tipo de memória está afetado em pacientes amnésicos.

A memória de procedimento é a capacidade de adquirir gradualmente uma habilidade percepto-motora ou cognitiva através da exposição repetida a uma atividade específica que segue regras constantes. E sta capacidade é implícita e independe da consciência, só podendo ser aferida pelo desempenho do paciente (Saint-Cyr et al., 1988; Squire, 1986). Pacientes amnésicos preservam este tipo de memória.

O utra diferenciação enco ntrada freqüentem ente contrapõe memória im plícita à memória explícita. Segundo S chac ter (1987 b ), a memória im­ plíc ita se revela quando “ex periências prévias fa cilita m o desempenho de uma tarefa que não requer recupera ção intenciona l ou consciente daquelas ex periências; a memória ex plícita é revelada quando o desempenho de uma tarefa requer recuperação consciente das ex periências préviaj". Ainda segundo este autor, os conceitos de memória explícita e implícita são descritivos e referentes à experiência psicológica do sujeito na hora da evocação. E les não implicam na existência ou não de sis­ temas independentes de memória. Apesar das intenções do autor, no entanto, estes termos têm sido freqüentemente usados como sinônimos de memória declarativa e não-declarativa (sendo a memória de procedimento uma varie­ dade desta), respectivamente, e não faremos distinção entre os conceitos no presente trabalho.

O termo memória implícita, por ser mais genérico que memória de pro­ cedimento, permite acomodar melhor, nesta categoria, o efeito de pré-ativação que pode ser observado após uma única exposição ao estímulo. E stas diversas variantes de conceituação e principalmente de terminologia têm gerado certa confusão na literatura. Uma tentativa de estabelecer uma taxionomia para a memória, tentando acomodar várias destas divisões em um sistema coerente, levou ao quadro representado graficamente na F igura 4, derivada de Squire e Z ola-Morgan (1991) e modificada para inserir a memória operacional. Com suas falhas, omissões e uma certa arbitrariedade, ela oferece um sistema útil de classificação, tanto por dar um sentido geral à miríade de manifestações da memória, como por sua propensão heurística e valor didático.

A memória declarativa ou explícita incluiria as memórias episódica e se­ mântica. A memória não-declarativa ou implícita abrigaria um conjunto díspar de memórias, compreendendo habilidades (motoras, perceptuais e cognitivas), pré-ativação, condicionamento clássico, habituação, sensitização e tudo que foi aprendido mas que só pode ser aferido pelo desempenho (Squire, 1986). E stes diversos tipos de memória pertenceriam à memória de longo prazo, contraposta à memória de curto prazo, abarcadas pela memória operacional.