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Função cardiovascular

No documento Bioquímica clínica em geriatria (páginas 111-115)

3 – PROCESSO BIOLÓGICO DE ENVELHECIMENTO

4 – ALTERAÇÕES METABÓLICAS RELACIONADAS COM A IDADE

4.4 Função cardiovascular

Existe uma série de fatores que ligam o envelhecimento à insuficiência cardíaca e que gradualmente reduzem a quantidade de reserva funcional do coração, até ao ponto de ser mais provável a falência do órgão (Strait & Lakatta, 2012).

Com a idade ocorrem alterações estruturais e funcionais, nomeadamente, os vasos sanguíneos tornam-se mais rijos, a parede do ventrículo esquerdo torna-se mais fina (dentro de limites normais) e aumenta a fibrose, conduzindo à disfunção diastólica, aumento da pós-carga e insuficiência cardíaca, mas com a fração de ejeção preservada. Estas alterações são responsáveis pelo desenvolvimento da hipertensão arterial, hipertrofia ventricular e pelo comprometimento da capacidade de adaptação do coração às situações de sobrecarga. Devido às modificações no endotélio, a vasodilatação diminui progressivamente com a idade, conduzindo ao aparecimento de doenças cardiovasculares. Embora o débito cardíaco se mantenha normal quando em repouso, em exercício a frequência cardíaca máxima nos idosos é menor do que nos indivíduos jovens, contribuindo para a redução da capacidade física e associando-se a uma maior morbilidade e mortalidade nos idosos (Strait & lakatta, 2012; Wajngarten, 2010).

Uma das principais causas de morte por doença vascular, em todo o mundo, é a arteriosclerose e resulta de danos vasculares, que culminam num afinamento

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progressivo e perda de resistência das paredes dos vasos. A aterosclerose refere-se especificamente ao afinamento das paredes das artérias, devido a placas caracterizadas pela acumulação de gordura (placas de ateroma), na camada íntima e acumulação de tecido adiposo, na camada subíntima. Embora a aterosclerose não seja necessariamente concomitante ao envelhecimento, em muitos países há dados que associam o envelhecimento às alterações do endotélio vascular e ao aumento da aterosclerose. Como consequência, há maior risco de comprometer o suprimento vascular dos órgãos vitais, incluindo o coração (doença coronária), o cérebro (doença vascular cerebral) e órgão periféricos, tais como, os rins e membros inferiores (Herrington et al., 2016; Mathers, 2012; Wajngarten, 2010).

A incidência de doenças cardiovasculares aumenta com a idade e é uma das principais causas de morte nos países desenvolvidos. A nível populacional, são aplicadas tabelas de risco maioritariamente baseadas na fórmula de Framingham, que consiste num algoritmo para estimar o risco individual e para cada género, de desenvolver doença cardiovascular, tendo os 75 anos como limite de idade (Franklin & Wong, 2013). O risco continua a ser avaliado acima dos 75 anos, mas é calculado utilizando os valores do risco associado à faixa etária dos 65-74 anos (Pasupathi et al., 2009).

4.4.1 Marcadores bioquímicos da função cardíaca

Os primeiros marcadores bioquímicos utilizados na avaliação da lesão do miocárdio foram os marcadores enzimáticos alanina aminotransferase (AST), lactato desidrogenase (LDH) e creatinina cinase (CK), que embora estejam associados a danos nos miócitos, têm baixo valor de diagnóstico pela sua falta de especificidade tecidular (Pasupathi et al., 2009). Surgiram posteriormente os marcadores séricos mioglobina e isoenzima MB da creatinina cinase (CK-MB), que melhoraram a especificidade na avaliação da lesão do miocárdio e diminuíram o tempo para o diagnóstico (Rains et al., 2014).

A troponina é o biomarcador de eleição na deteção de lesão do miocárdio. As troponinas cardíacas I e T (cTnl, cTnT) têm sido consideradas o Gold standard, no diagnóstico do enfarte agudo do miocárdio (EAM), pela sua elevada sensibilidade e especificidade quando ocorrem lesões nos miócitos. A cinética de libertação precoce das troponinas, após o enfarte agudo do miocárdio, é semelhante ao CK-MB. No entanto, dos marcadores cardíacos atuais, as troponinas são as mais específicas do tecido cardíaco e oferecem uma maior janela temporal de diagnóstico (Pasupathi et al., 2009).

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Em doentes com EAM, qualquer elevação das troponinas cardíacas é indicativo de danos no miocárdio. Com a implementação de testes com limites de deteção mais sensíveis, elevações mínimas da troponina tornaram-se detetáveis, mesmo em indivíduos sem sinais de isquemia e aparentemente saudáveis. Os estudos que estabeleceram a troponina como o padrão para o diagnóstico do EAM envolveram indivíduos jovens, com uma probabilidade elevada e preestabelecida de EAM (Morrow et al., 2000; Rains et al., 2014). Apesar de já terem sido publicados alguns estudos efetuados na população idosa, os resultados não são consensuais e o valor diagnóstico dos ensaios de troponina permanece por determinar para este subgrupo da população (Rains et al., 2014).

No estudo DHS (Dallas Heart Study), efetuado nos Estados Unidos, que incluiu 3557 doentes com idades entre 30-65 anos submetidos à avaliação dos níveis de troponina T cardíaca (cTnT), encontraram apenas 1% dos indivíduos adultos jovens com níveis de troponina detetáveis (Wallace et al., 2006).

Um estudo prospetivo suíço, PIVAS (Prospective Investigation of the Vasculature in Uppsala Seniors), testou os níveis de troponina I cardíaca (cTnI) em 1005 indivíduos com 70 anos de idade, sem história de doença coronária arterial instável. Os autores verificaram o aumento dos níveis de cTnl em 21.8% dos indivíduos, sendo que, os fatores preditivos foram o género masculino, a presença de fatores de risco cardiovascular e a função sistólica ventricular alterada (Eggers et al., 2008; Zethelius et al., 2006).

Um outro estudo, efetuado por Eggers e colaboradores (2013), avaliou 940 homens com 71 anos de idade, dos quais 379 tinham diagnóstico de doença coronária arterial e 561 eram, aparentemente, saudáveis. Foram determinados os níveis de cTnT, por ensaios ultrassensíveis (hs-cTnT), tendo sido encontrados níveis detetáveis em 92,8% dos indivíduos. Neste estudo, os níveis de cTnT foram associados ao risco de doença cardiovascular e preditivos de eventos adversos nos homens que tinham maior prevalência de doença cardiovascular, indicando um valor prognóstico baixo nos indivíduos sem história de doença cardíaca (Eggers et al., 2013). Num outro estudo efetuado pelo mesmo grupo, efetuou-se o follow-up numa população com mais de 70 anos em que se observou que os níveis de hs-cTnI aumentavam gradualmente ao longo do tempo e eram, em média, 45% mais elevados nos mesmos indivíduos 5 anos mais tarde (Eggers et al., 2013a).

Mais recentemente, o estudo MESA (Multi-Ethnic Study of Atherosclerosis), publicado em 2017, avaliou 6814 indivíduos de ambos os sexos, incluindo 4 etnias diferentes com idades entre os 45 e os 84 anos e consistiu na determinação de Troponina T de alta sensibilidade (hs-cTnT), com um follow-up de 10 anos. Os autores concluíram que

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pequenas elevações de hs-cTnT estão associadas à incidência de insuficiência cardíaca na população geral, por mecanismos ainda não determinados. Este estudo demonstrou ainda um aumento linear de hs-cTnT em função da idade, com um aumento de 4 vezes da quarta década para a oitava década de vida. Este estudo relacionou a determinação de hs-cTnT com a identificação de indivíduos em risco de desenvolver insuficiência cardíaca ou outra doença do foro cardíaco, podendo ser um parâmetro bioquímico útil nas estratégias de prevenção dos indivíduos em risco, nomeadamente dos mais idosos (Seliger et al., 2017).

Os péptidos natriuréticos são hormonas natriuréticas, produzidas pelos miócitos e inicialmente identificadas no cérebro. A libertação destas neuro-hormonas equilibra os efeitos do sistema renina-angiotensina-aldosterona, da endotelina e da ativação simpática, causando vasodilatação e natriurese. Em resposta à tensão ou dilatação crescente da parede do miocárdio é libertada uma pró-hormona, cuja clivagem na circulação, liberta o péptido natriurético tipo B (BNP) e o seu fragmento N-terminal mais estável (NT-proBNP). A concentração plasmática de ambos está elevada em doentes com disfunção ventricular esquerda sistólica e diastólica e são, frequentemente, usados no diagnóstico clínico de insuficiência cardíaca (Marques, 2009).

Apesar dos níveis de NT-proBNP e BNP estarem elevados numa grande variedade de situações associadas à disfunção cardíaca, tais como, embolismo pulmonar, sepsis e enfarte agudo do miocárdio, eles emergiram como indicadores precoces de prognóstico da mortalidade, após um evento coronário agudo. Muito recentemente, a concentração sérica dos péptidos natriuréticos foi relacionada com o risco de eventos cardiovasculares e morte em pessoas assintomáticas, mas a sua importância na prática clínica é ainda discutível (Rains et al., 2014). Sabe-se que a concentração plasmática de NT-proBNP e BNP aumenta em idades avançadas, e que a idade parece ser a variável independente mais importante para explicar os níveis plasmáticos de NT-proBNP e BNP, não se sabendo ainda por que razão ocorre este aumento. As primeiras pesquisas sugeriram como possível explicação, alterações na estrutura cardíaca (ex.: o aumento da massa ventricular esquerda ou o aumento do volume atrial esquerdo) e a redução da depuração renal dos péptidos natriuréticos, que ocorre com a idade (Raymond et al., 2003). No entanto, num estudo com mais de 700 indivíduos, sem história clínica de doença cardíaca, renal, pulmonar ou diabetes, sem medicação cardíaca e com função cardíaca normal, verificou-se que a idade se manteve como um fator preditivo independente dos níveis séricos de BNP. Nesta população, os níveis de BNP aumentaram com a idade e foi mais elevado em mulheres do que em homens, no subgrupo de indivíduos com doença cardiovascular

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desconhecida ou doença coronária estrutural indetetável. A influência dos fatores pré- analíticos como a idade e o género nos valores séricos de BNP, no subgrupo de indivíduos normais, sugere que devem ser considerados quando se faz a interpretação clínica deste parâmetro analítico (Redfield et al., 2002).

A aterosclerose está associada a um processo inflamatório, como tal, os marcadores de inflamação têm vindo a ser investigados como potenciais ferramentas da predição do risco cardíaco. Muitos estudos sugerem que a determinação da proteína C reativa por métodos ultrassensíveis (hs-CRP) pode ser útil na predição do risco cardiovascular. No entanto, este marcador apresenta grande limitação, devido à elevada variação intraindividual da sua concentração plasmática, que pode conduzir a uma má classificação do risco e, por outro lado, faltam estudos dos valores de referência na população idosa (Pasupathi et al., 2009; Rifai & Ridker, 2001; Strait & Lakatta, 2012).

A Mioglobina é um marcador de lesão cardíaca com baixa especificidade, uma vez que está presente não apenas no miocárdio, mas também nas células dos músculos esqueléticos. Dessa forma, qualquer dano nos músculos esqueléticos, também, causa um aumento plasmático da sua concentração (Pasupathi et al., 2009). Um estudo realizado em Itália comparou a variabilidade biológica da mioglobina entre 18 indivíduos idosos aparentemente saudáveis (idades 74-97 anos) e 14 indivíduos jovens (idades 25-31 anos), de ambos os sexos. Embora seja uma amostra pequena, os resultados mostraram valores de mioglobina mais elevados na população idosa do que na população jovem. Os autores defendem que este aumento não é justificado pela diferença na massa muscular, uma vez que esta tende a diminuir com a idade, por uma menor atividade física no subgrupo dos mais idosos, mas poderia estar relacionado com a diminuição da função renal. Este estudo mostrou que a variação intraindividual não é diferente entre os indivíduos idosos e os jovens, e que essa variação se mantém constante ao longo do tempo. A imprecisão dos métodos analíticos, na determinação da mioglobina, é idêntica na população jovem e na população idosa, não sendo uma causa para justificar as diferenças encontradas nos dois grupos (Anesi et al., 2000).

No documento Bioquímica clínica em geriatria (páginas 111-115)