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Função social da posse

No documento Coleção Jovem Jurista 2010 (páginas 122-125)

CARLA RIBEIRO TULL

IV. FUNDAMENTOS DA TUTELA DO POSSUIDOR DE BENS PÚBLICOS

4.3. Função social da posse

Estabelecida a premissa de que a propriedade deve ser vislumbrada como um direito voltado à realização do projeto constitucional, também a posse, como instituto autônomo em relação àquela, deve orientar-se pela busca à sa- tisfação do seu aspecto funcional.

Afi rma-se, pois, que a função social se dirige “à reconstrução de qualquer di-

reito subjetivo, incluindo-se aí a posse, como fato social, de enorme repercussão para a edifi cação da cidadania e das necessidades básicas do ser humano”110.

Como apontado no capítulo 2, Savigny e Ihering conduzem o fundamento da tutela possessória a elementos externos à posse111. No primeiro caso, protege-

-se a posse para garantir a integridade contra os atos de violência, enquanto que, no segundo, fundamenta-se a proteção na defesa imediata da propriedade.

Contudo, atualmente, esses fundamentos tornam-se insufi cientes para a garantia da tutela da situação possessória, especialmente pela necessidade de fi ltragem constitucional dos institutos jurídicos. Sobre a necessidade de revisão dos fundamentos da proteção possessória introduzidas por Savigny e Ihering, manifestam-se Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald:

Não é mais possível compartilharmos das concepções de Savigny e Ihering, apesar do mérito de ambas em procurar um fundamento autônomo para a proteção possessória. A posse não é protegida em razão da proibição à violên- cia; pelo contrário, por se proteger a posse é que se evita a violência. Aliás, toda a ordem jurídica em sua essência deseja evitar a violência, não se trata de uma peculiaridade capaz de justifi car isoladamente a tutela da posse. No mais, proteger a posse como forma de zelar pela propriedade não passa de uma forma de amesquinhar a posse e relegar o seu aspecto social112.

Assim, o fundamento para a tutela da posse é, em última análise, a própria busca pela concretização do postulado da dignidade da pessoa humana, permi- tindo o desenvolvimento de sua personalidade através da garantia ao mínimo existencial, revelada pela possibilidade de acesso aos bens.

Enfi m, o próprio conceito de função social da posse é construído com base em seus fundamentos, porquanto é estabelecido “pela necessidade social, pela

necessidade da terra para o trabalho, para a moradia, ou seja, para as necessidades básicas que pressupõem a dignidade do ser humano”113. Logo, o aspecto funcio-

110 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson, op. cit., p. 38. Vide nota 72 supra. 111 Idem. Ibidem.

112 Idem. Ibidem, p. 38-39.

113 MOTA, Mauricio; TORRES, Marcos Alcino. “A Função Social da Posse no Código Civil”. In: ________. (coord.). Transformações do direito de propriedade privada. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009, p. 35.

nal – assim como no direito de propriedade – integra o próprio conteúdo da posse, sendo certo que a apropriação dos bens é determinada pelas necessidades humanas. Por tal razão, afi rma-se que não é possível defi nir a função social da posse de forma apriorística, sob pena de limitarmos o seu exercício. Esta há de ser defi nida diante da realidade casuística e no escopo do que é imprescindível ao ser humano114.

A Constituição de 1988 e o Código Civil de 2002 não contemplaram ex- pressamente a função social da posse em seus textos, o que, entretanto, não tem o condão de negar a proteção possessória àquele que atua em relação ao bem de modo a maximizar a sua funcionalidade. Isto porque, a despeito da previsão normativa, os valores e princípios consagrados pelo ordenamento jurídico estão voltados à concretização de uma sociedade livre, justa e solidária, bem como à erradicação da pobreza e da marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais.

Ressalte-se, por oportuno, a lição de Francisco Cardozo Oliveira:

De qualquer modo, assim como o texto constitucional atribuiu valor jurídi- co ao fato da posse quando, por exemplo, reconheceu o direito do possuidor a adquirir o domínio (artigos 183 e 191) é certo que, implicitamente, tu- telou também a função social da posse, que está integrada a essência fática da posse e que a qualifi ca pela fi nalidade de atendimento das necessidades humanas115.

Também é possível aferir da leitura do Código Civil que este, ainda que implicitamente, contém manifestações da chamada teoria sociológica da posse. Nesse sentido, cite-se, por exemplo, o art. 1.238, parágrafo único116, o qual

privilegia a concretização do aspecto funcional, ao passo que permite seja con- cedido ao possuidor de má-fé e sem justo título o benefício da redução do prazo para a usucapião, a partir do momento que confere função social a sua posse117.

114 OLIVEIRA, Francisco Cardozo. Hermenêutica e Tutela da Posse e da Propriedade. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 246.

115 Idem. Ibidem, p. 247.

116 Código Civil de 2002, art. 1.238: “Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis.

Parágrafo único. O prazo estabelecido neste artigo reduzir-se-á a dez anos se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo”. 117 Marlene de Paula Pereira lembra ainda os seguintes dispositivos do Código Civil como exemplos da

consagração da função social da posse: art. 1.228, §4º, que versa sobre a desapropriação indireta judicial em prol do possuidor que concede função social à posse, e; art. 1.210, §2º, que impede a exceção de domínio em sede de ações possessórias. (PEREIRA, Marlene de Paula, op. cit., p. 163).

Dessa forma, a função social serve como critério de interpretação da disci- plina proprietária que deve balizar a atuação dos aplicadores do direito, no es- copo de promover uma interpretação conforme os princípios constitucionais118.

Não por outro motivo, deve-se dar especial atenção para os casos de con- fl ito entre uma propriedade sem função social e uma posse com função social. Na hipótese da ocupação de bens públicos por particulares, estamos tratando da posse em si mesma, isto é, daquela que não se assenta em qualquer origem formal ou legal, de modo que, ausente qualquer título jurídico de aquisição da posse, esta nasce como fato independente e autônomo119.

Por esta razão, destaca Marcos Alcino de Azevedo Torres que não é razoável considerar haver vício na aquisição da posse do titular que não cumpre a função social da propriedade, pois esta aquisição se dá de forma originária120. Chega-se

a falar em uma espécie de “posse fática” ou “posse natural” para explicar o fenô- meno em que um indivíduo assume o poder fático sobre a coisa, independente de qualquer relação jurídica, sendo sufi ciente que legitimamente seja capaz de usar de maneira efetiva o bem121.

Nas situações de confl ito, teremos, constantemente, de um lado, o direito constitucional à propriedade que nunca foi informado pela função social e, de outro, o possuidor que confere ao bem a referida qualidade, sendo, portanto, sua situação também amparada pelo ordenamento (art. 5º, XXIII). Como ve- remos a seguir, não é pelo fato de a propriedade ser pública que tem o Estado, então titular, autorização para não observar os mandamentos do constituinte. Dessa maneira, se o titular do direito é omisso no que tange à sua destinação constitucional – ainda que este titular seja o Poder Público – deve-se, diante do caso concreto, privilegiar a situação do ocupante que promove a funcionalidade do bem, por exemplo, pela moradia ou cultivo. O proprietário deve arcar com as consequências do descumprimento do dever constitucional, dentre as quais a perda do direito de reivindicar a coisa, mormente se o retorno ao status quo

ante faz com que o ocupante à míngua de título jurídico seja privado do acesso

ao mínimo existencial.

118 PERLINGIERI, Pietro. Perfi s do direito civil. Introdução ao Direito Civil Constitucional. Trad. De Maria Cristina de Cicco, 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 227-228.

119 TORRES, Marcos Alcino de Azevedo, op. cit., p. 301. Segundo Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald: “Há ainda uma terceira esfera de posse (...). Cuida-se de uma dimensão possessória que não se

localiza no universo dos negócios jurídicos que consubstanciam direitos subjetivos reais ou obrigacionais. Trata- se de uma posse emanada exclusivamente de uma situação fática e existencial, de apossamento e ocupação da coisa, cuja natureza autônoma escapa do exame das teorias tradicionais. É aqui que reside a função social da posse”. (FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson, op. cit., p. 37).

120 TORRES, Marcos Alcino de Azevedo, op. cit., p. 317.

Assim, a despeito do direito de propriedade ser considerado como direito fundamental pelo art. 5º, XXII, CRFB/88, este só ganhará tal contorno ao passo em que respeite o princípio da função social. Partindo dessa premissa, sustenta Fábio Konder Comparato:

(...) é preciso verifi car, in concreto, se se está ou não diante de uma situação de propriedade considerada como direito humano, pois seria evidente contra- -senso que essa qualifi cação fosse estendida ao domínio de um latifúndio improdutivo, ou de uma gleba urbana não utilizada ou subutilizada, em cidades com sérios problemas de moradia popular122.

Na qualidade de elemento interno, a função social da posse, quando não observada pelo titular da propriedade, dá lugar à posse autônoma que confere ao bem a referida qualidade. Por evidente, a tutela de uma ou outra situação só será possível diante do caso concreto, tendo-se sempre em vista o princípio da proporcionalidade, que servirá de norte ao intérprete para dizer qual das situações garante maior concretude aos valores constitucionais e, portanto, merece prevalecer.

No documento Coleção Jovem Jurista 2010 (páginas 122-125)

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