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O tratamento conferido à posse pelo Código Civil de

No documento Coleção Jovem Jurista 2010 (páginas 104-106)

CARLA RIBEIRO TULL

II. O ESTÁGIO DO PENSAMENTO JUSCIVILISTA SOBRE A FUNÇÃO SOCIAL DA POSSE E DA PROPRIEDADE

2.2. A teoria subjetiva (Savigny) e objetiva (Ihering) da posse e o tratamento conferido à posse pelo Código Civil de

2.2.3. O tratamento conferido à posse pelo Código Civil de

A posse foi tratada no Código Civil de 2002 no Livro III (Do Direito das Coisas), Título I (Da Posse), antecedendo a disciplina dos Direitos Reais (Títu- lo II) e do Direito de Propriedade (Título III).

A despeito de a teoria objetiva reduzir a posse a uma condição inferior ao instituto da propriedade, negando sua autonomia, parece ter sido essa a opção do legislador brasileiro no Código Civil de 2002. De acordo com o art. 1.196, “considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade”. Tal dispositivo refl ete a aff ectio

tenendi, haja vista que classifi ca o possuidor como aquele que exterioriza algum

dos poderes do proprietário, independentemente da titularidade do bem. A doutrina clássica civilista, igualmente, procura conceituar a posse a par- tir das contribuições das teorias de Savigny e Ihering, que, como já dito, partem dos elementos que compõem o instituto para formular uma defi nição.

De acordo com Caio Mário, entretanto, as divergências teóricas entre Sa-

vigny e Ihering, não assumem tanta relevância prática, de modo que inclusive

as legislações têm tolerado implicações de ambas67. Sobre o conceito de posse,

manifesta-se o autor:

A posse, em nosso direito positivo, não exige, portanto, a intenção de dono, e nem reclama o poder físico sobre a coisa. É relação de fato entre a pessoa e a coisa, tendo em vista a utilização econômica desta. É a exteriorização da conduta de quem procede como normalmente age o dono. É a visibilidade do domínio (Código Civil, art. 1.196)68.

de ceder a um direito superior, como o de propriedade, não signifi ca que seja um direito pessoal. Trata-se de uma limitação que não é incompatível com o direito real. O que importa para caracterizar a este é o fato de se exercer sem intermediário. Na posse, a sujeição da coisa à pessoa é direta e imediata. Não há um sujeito passivo determinado. O direito do possuidor se exerce erga omnes. Todos são obrigados a respeitá-lo. Só os direitos pessoais têm essa virtude. Verdade é que os interditos se apresentam com certas qualidades de ação pessoal, mas nem por isso infl uem sobre a natureza real do jus possessionis. Destinados à defesa de um direito real, hão de ser qualifi cados como ações reais, ainda que de tipo sui generis”. (GOMES, Orlando, op. cit., p.

42-43). No mesmo sentido, a lição de Caio Mário sobre o tema: “Caracterizada como direito, vem depois

a discordância quanto à tipifi cação deste. Sem embargo de opiniões em contrário, é um direito real, com todas as suas características; oponibilidade erga omnes, indeterminação do sujeito passivo, incidência em objeto obrigatoriamente determinado, etc.” (PEREIRA, Caio Mário da Silva, op. cit., p. 27).

67 De acordo com o autor, a diferença substancial entre as teorias de Savigny e Ihering reside na distinção entre os conceitos de posse e detenção: “Neste ponto reside a diferença substancial entre as duas escolas, de

Savigny e Ihering: para a primeira, o corpus aliado à aff ectio tenendi gera detenção, que somente se converte em posse quando se lhes adiciona o animus domini (Savigny); para a segunda, o corpus mais a aff ectio tenendi geram posse, que se desfi gura em mera detenção apenas na hipótese de um impedimento legal (Ihering)”

(PEREIRA, Caio Mário da Silva, op.cit., p. 21-22). 68 Idem. Ibidem, p. 22.

Para Sílvio Rodrigues, “a posse, como mera situação de fato, vai ser protegida

pelo legislador, não só porque aparenta ser uma situação de direito, como para evi- tar que prevaleça a violência”69. Reconhece, ainda, que a posse se distingue da

propriedade, pois esta última, “seria a relação entre a pessoa e a coisa, que assenta

na vontade objetiva da lei, implicando um poder jurídico e criando uma relação de direito”, enquanto a posse “consiste em uma relação de pessoa e coisa, fundada na vontade do possuidor, criando mera relação de fato”70. Neste sentido, o conceito

de posse do autor parece aproximar-se ao defendido por Savigny.

Orlando Gomes, por seu turno, vislumbra a posse como o “estado de fato

correspondente ao direito de propriedade”71. Por conseguinte, seria hipótese de de-

tenção o estado de fato a que não corresponde nenhum direito. Apesar de existir uma grande difi culdade na diferenciação dos institutos da posse e da detenção, o autor reconhece a importância da distinção, já que à primeira se atribuem efeitos jurídicos, o que não ocorre com a segunda.

Entretanto, ainda que positivada a teoria objetiva no Código Civil de 2002, e sendo este o entendimento de alguns doutrinadores, vêm sendo de- senvolvidas novas diretrizes para a conceituação do instituto da posse, que não estaria mais associada à concepção puramente liberal, de modo a unicamente atuar na defesa dos interesses proprietários. A posse seria mais que isso, e aliada à função social, tornar-se-ia instrumento apto a garantir direitos constitucio- nais, de que é exemplo a moradia. Isso só é possível, no entanto, se a função social for entendida como elemento integrante do domínio e não como mero limitador externo à atuação proprietária.

Diante disso, é inconcebível, atualmente, que se vislumbre a posse como instituto hierarquicamente inferior à propriedade. A posse não é mera visibili- dade do domínio, mas sim instrumento de concretização de valores e direitos fundamentais72. A função social da posse é, assim, meio de reinterpretar esse

instituto “de acordo com os valores sociais nele impregnados, como um poder fático

de ingerência socioeconômica sobre determinado bem da vida, mediante a utiliza- ção concreta da coisa”73.

69 RODRIGUES, Silvio. Direito civil: Direito das Coisas, volume 5. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 16. 70 Idem. Ibidem.

71 GOMES, Orlando, op. cit., p. 31.

72 Nas palavras de Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias: “Atualmente, a ciência jurídica volta o

olhar para a perspectiva da fi nalidade dos modelos jurídicos. Não há um interesse tão evidente em conceituar a estrutura dos institutos, mas em direcionar o seu papel e missão perante a coletividade, na incessante busca pela solidariedade e pelo bem comum. Enfi m, a função social se dirige não só à propriedade, aos contratos e à família, mas à reconstrução de qualquer direito subjetivo, incluindo-se aí a posse, como fato social, de enorme repercussão para a edifi cação da cidadania e das necessidades básicas do ser humano”. (FARIAS, Cristiano

Chaves de; ROSENVALD, Nelson, op. cit., p. 38). 73 Idem. Ibidem, p. 39.

Malgrado a doutrina da teoria sociológica da posse venha reconhecendo a transcendência do instituto e a necessidade de sua releitura à luz dos princí- pios constitucionais, certo é que a doutrina administrativista e a jurisprudência ainda se mostram reticentes quanto a maiores inovações. Nesse contexto, des- tinaremos o próximo capítulo para o exame das decisões que não conferem ao particular ocupante de bem público nenhum tipo de proteção possessória, o que, em última análise, revela a importância do tema e a necessidade de revisão da doutrina administrativista e civilista clássica.

III. A NEGATIVA DA TUTELA POSSESSÓRIA AOS OCUPANTES DE BENS PÚBLICOS

No documento Coleção Jovem Jurista 2010 (páginas 104-106)

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