• Nenhum resultado encontrado

Utilização das ações possessórias

No documento Coleção Jovem Jurista 2010 (páginas 144-148)

CARLA RIBEIRO TULL

V. EFEITOS E LIMITES DA TUTELA DO POSSUIDOR DE BENS PÚBLICOS

5.3. Utilização das ações possessórias

Finalmente, o principal dos efeitos da confi guração da situação possessória diz respeito aos mecanismos que o ocupante pode utilizar para a defesa da sua posse face à eventual violação. Tais mecanismos importam no acionamento do Poder Judiciário por meio das ações possessórias, classifi cadas em reintegração de posse, manutenção de posse e interdito proibitório168.

Nestas ações, previstas como efeitos da posse pelo art. 1.210, caput, do Có- digo Civil, discute-se tão somente a ofensa promovida à situação do ocupante,

167 Após o julgamento do Agravo Inominado, a autarquia estadual interpôs embargos de declaração, alegando a necessidade de sanar contradições e aclarar omissões. Na ocasião do julgamento, asseverou o Desembargador Relator que, na verdade, não se cuidava de violação aos dispositivos impugnados, mas sim da necessidade de realização de interpretação sócio-fi nalística, de modo a não legitimar a desídia da Administração Pública. Vejamos trecho do seu voto que aborda a questão: “O recurso sub examen, sob o

palio de trazer esclarecimentos ao julgado impugnado, pretende, de forma oblíqua, reeditar nesta sede matéria já discutida e objetivamente demonstrada através das razões constantes do Acórdão proferido no sentido da sublimação dos efeitos sócio-econômicos da detenção de quase duas décadas do bem, sobre o tecnicismo cego da perquirição acerca do elemento anímico (boa-fé) ou natureza do título a que ocupava a coisa pública (mera detenção), não se afi gurando razoável o enriquecimento sem causa do ente público que, por sua desídia, dera azo à investimentos comprovados por quase duas décadas pelo particular. Inexistem, portanto, os alegados vícios de julgamento que, a toda evidência, refl etem o simples inconformismo do embargante, não havendo que se falar, outrossim, em qualquer violação aos dispositivos pré-questionados, mas sim interpretação sócio- fi nalística (Art. 5º, LICC) dos dispositivos aplicáveis, motivo pelo qual deve ser improvido o recurso”. (TJRJ,

EDcl no Ag. Inominado em Ap. Cível nº. 08042/2008, Rel. Des. Orlando Secco, j. em 19.08.08, DJ 05.09.08, unânime).

168 A classifi cação é feita pelo próprio Código de Processo Civil em seus artigos 926 e 932, transcritos a seguir: Art. 926: “O possuidor tem direito a ser mantido na posse em caso de turbação e reintegrado no de esbulho”.

sendo a pretensão formulada com base na posse e não na existência de título jurídico, o que mais uma vez revela a autonomia entre a posse e a propriedade. Por tal razão, o Código de Processo Civil, em seu art. 923, dispõe que pendente processo possessório, é defeso intentar ação de reconhecimento de domínio169.

De acordo com Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald:

A tutela possessória pressupõe uma situação anterior de poder fático sobre o bem, tenha sido ela emanada de um ato-fato (ocupação do bem); de um direito real (usufruto) ou obrigacional (locação), ou mesmo do próprio di- reito de propriedade. Em qualquer dos casos, o titular da relação jurídica fundamentará a pretensão com base na posse que afi rma exercer e não na qualidade de seu título. O jus possidendi é matéria estranha e alheia a este discussão, abstraindo-se do exame da lide possessória a discussão acerca do direito subjacente ao que aconteceu no mundo dos fatos170.

Aqui também o critério da melhor posse deverá ser aferido no caso concre- to, conquanto a mesma seja destinada à promoção da função social e à efetivi- dade do princípio da dignidade da pessoa humana. Nesta situação, o particular que ocupa bem público atendendo a essa fi nalidade – ainda que à míngua de título jurídico –, poderá valer-se dos interditos para a defesa de sua posse (posse

ad interdicta), inclusive face ao Poder Público. Repudia-se, portanto, a caracte-

rização da detenção.

Por outro lado, se em algum momento o Poder Público esteve na posse do imóvel, igualmente poderá valer-se das ações possessórias. Porém, a ca- racterização da posse do ocupante e o conseguinte afastamento da detenção podem limitar a possibilidade de utilização da liminar prevista no art. 928

Art. 932: “O possuidor direto ou indireto, que tenha justo receio de ser molestado na posse, poderá impetrar ao juiz que o segure da turbação ou esbulho iminente, mediante mandado proibitório, em que se comine ao réu determinada pena pecuniária, caso transgrida o preceito”.

169 Em igual sentido, dispõe o art. 1.210, §2º, do Código Civil, in verbis: “Não obsta à manutenção ou reintegração na posse a alegação de propriedade, ou de outro direito sobre a coisa”. Assim também, o Enunciado de nº. 79 da I Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal acerca do art. 1.210 do Código Civil: “A exceptio proprietatis, como defesa oponível às ações possessórias típicas, foi abolida pelo Código Civil de 2002, que estabeleceu a absoluta separação entre os juízos possessório e petitório”. 170 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson, op. cit., p. 111. E aduzem os autores: “Enfi m, é

de se discordar de qualquer manifestação quanto à uma eventual inconstitucionalidade do art. 1.210, §2º, do Código Civil, pelo suposto argumento de restrição ao direito subjetivo de propriedade. Pelo contrário, entendemos que há evidente interesse público na preservação da autonomia entre a posse e a propriedade, pois a fi nalidade da norma é justamente tutelar a função social da posse, que não é privativa da pessoa do proprietário. A experiência social e cultural demonstra que a posse é comumente exercitada por pessoa carecedora de propriedade, que não pode ter o seu trabalho, sustento e moradia abruptamente interrompidos, com base em simples contraposição de uma propriedade alheia”. (p. 115).

do Código de Processo Civil171 por parte da Administração Pública. Isso por-

que, sendo a posse do particular de mais de ano e dia (posse velha), o Poder Público não poderia pleitear a concessão da medida liminar, devendo a ação seguir pelo rito ordinário. Forçoso reconhecer, todavia, que, com a reforma do Código de Processo Civil, a Administração poderá se valer da regra para a concessão da tutela antecipada do art. 273, cumpridos os seus requisitos172.

Com efeito, negar a tutela possessória ao ocupante de bem público implica negar-lhe o direito de defender-se de ações ilegítimas intentadas pelo titular que não conferiu função social a sua propriedade. Por tal mo- tivo, a melhor posse só poderá ser defi nida no caso concreto, conforme realize as fi nalidades constitucionais. Isto é o que de fato legitima perante o ordenamento jurídico a atuação do ocupante, o que transcende ao mero fato de se ter em mãos um título jurídico. Como observado por Marcos Alcino de Azevedo Torres, “a propriedade sem função social perde a garantia

do sistema e dentre estas garantias está a de reivindicar a coisa”173. Trata-se de

ponderar valores em comparação, sendo certo, nas palavras do autor, que “o

instituto jurídico que serve à vida, proporcionando alimentos e moradia, garan- tindo vida digna, prepondera sobre qualquer outro como valor superiormente reconhecido”174.

CONCLUSÃO

Por todo o exposto, pudemos concluir que os bens públicos também es- tão sujeitos à observância da função social da propriedade, motivo pelo qual o seu descumprimento gera uma perda de legitimidade desse direito perante o ordenamento jurídico. Desta forma, não sendo observada a função social da propriedade pública, abre-se espaço para o surgimento de uma posse originária, autônoma, exercida por terceiro que não o titular, que se revela pelo apossa- mento propriamente dito.

Esta posse merecerá tutela, por sua vez, conquanto seja utilizada como instrumento de efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana, alçado

171 Código de Processo Civil, art. 928: “Estando a petição inicial devidamente instruída, o juiz deferirá, sem ouvir o réu, a expedição do mandado liminar de manutenção ou de reintegração; no caso contrário, determinará que o autor justifi que previamente o alegado, citando-se o réu para comparecer à audiência que for designada.

Parágrafo único: Contra as pessoas jurídicas de direito público não será deferida a manutenção ou a reintegração liminar sem prévia audiência dos respectivos representantes judiciais”.

172 ARAUJO, Barbara Almeida, op. cit., p. 179. 173 TORRES, Marcos Alcino de Azevedo, op. cit, p. 348. 174 Idem. Ibidem.

à categoria de princípio fundamental da República, pelo art. 1º, III, da Cons- tituição brasileira de 1988.

Deste modo, vislumbramos que os particulares que ocupam bens públi- cos independentemente de título jurídico poderiam receber tutela jurisdicional para a sua situação jurídica, ao passo em que dessem função social ao imóvel por eles ocupado, utilizando-o para a garantia dos seus direitos fundamentais. Neste sentido, procuramos trazer à baila os fundamentos capazes de respaldar a situação possessória deste particular, como forma de reverter o entendimento jurisprudencial que o defi ne como mero detentor.

Com efeito, fi cou demonstrado que a jurisprudência do Superior Tribu- nal de Justiça e dos Tribunais Regionais Federais do país ainda se fi lia à no- ção de posse como mera visibilidade do domínio, em apego ao princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse particular e ao princípio da legalidade estrita. Por tal razão, nega-se a reconhecer a legitimidade da situa- ção possessória do particular, caracterizando-a como mera detenção, mesmo diante de omissão da Administração Pública no que diz respeito ao aspecto funcional de sua propriedade.

Tal entendimento, contudo, na linha dos fundamentos abordados durante este estudo, não é compatível com a releitura dos institutos de Direito Civil à luz da Constituição da República e tampouco favorece a efetividade do princí- pio da dignidade da pessoa humana. Afi nal, o intérprete só poderá dizer qual situação jurídica deve prevalecer no caso concreto valendo-se da técnica de pon- deração de interesses. Do contrário, caso não realize um diagnóstico da situação de fato – identifi cando, por exemplo, se o particular garantia função social à sua posse, se o Poder Público manteve-se inerte durante muito tempo, ou se a posse estava sendo utilizada para a garantia do chamado mínimo existencial –, haverá fortes indícios de que sua análise estará lastreada nos dogmas de Direito Administrativo a que nos referimos.

Portanto, é imperiosa a necessidade de revisão da jurisprudência e da dou- trina clássica, para que se passe a dar suporte, ao revés, à posse que garanta a sa- tisfação das necessidades humanas, de que são exemplo a moradia e o trabalho. Esta parece ter sido a escolha do constituinte quando elevou a dignidade hu- mana ao patamar de fundamento da República. Consequentemente, qualquer interpretação que ignore tal escolha axiológica deve ser repudiada, sob pena de legitimar-se uma omissão inconstitucional.

No documento Coleção Jovem Jurista 2010 (páginas 144-148)

Outline

Documentos relacionados