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O período colonial e a legislação das Sesmarias: desmistificando a intangibilidade da propriedade pública

No documento Coleção Jovem Jurista 2010 (páginas 87-92)

CARLA RIBEIRO TULL

I. A OCUPAÇÃO DOS BENS PÚBLICOS NO BRASIL

1.1. O período colonial e a legislação das Sesmarias: desmistificando a intangibilidade da propriedade pública

“Nem sempre a propriedade fora entendida como le droit absolu et sacré. Se assim não o fora, muito bem poderá não o ser”1.

1 Essa foi uma das percepções da professora Laura Beck Varela quando do seu estudo de mestrado sobre o direito de propriedade no Brasil. (VARELA, Laura Beck. Das sesmarias à propriedade moderna: um estudo de história do Direito brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 236).

Neste sentido, procurar-se-á demonstrar que a propriedade pública nem sempre foi bem impassível de apropriação por particulares. Ao contrário, re- tomando-se a origem histórica do direito de propriedade no Brasil, torna-se bastante claro que essa ocupação foi possível e até mesmo estimulada.

A “descoberta” do Brasil foi resultado do processo de expansão marítima de Portugal, iniciado no século XV2. Dessa forma, as sesmarias, como “espécie de

privilégio ou concessão dominial régia”3, quando incorporadas ao ordenamento

jurídico brasileiro, foram inspiradas pela experiência de Portugal, muito embora as motivações para a sua implantação em ambos os países tenham sido distintas.

1.1.1. As sesmarias no Direito Português

A introdução das sesmarias portuguesas, por meio da Lei de D. Fernando I, de 1375, esteve atrelada à necessidade de combater as crises de abastecimento, demográfi ca e de mão de obra, as quais tiveram início com o período da cha- mada “Grande Peste” européia (1348-1350). Para superar esse contexto, seria necessária a promoção da agricultura e a criação de mecanismos para a fi xação dos indivíduos no campo, evidenciando-se, por conseguinte, a preocupação com a função social da propriedade imobiliária4.

Desta forma, a sesmaria seria concedida sobre bens abandonados ou nunca antes cultivados (bens incultos5), com a fi nalidade de que o indivíduo os culti-

vasse, para a produção de gêneros alimentícios, dentro do prazo fi xado pela lei ou pela carta de adjudicação, buscando-se, com isso, conduzir a crise instaura- da à situação de estabilidade. Criou-se, destarte, a obrigatoriedade do cultivo, princípio que, em tese, obrigou os senhores de terras a cultivá-las, aforá-las ou arrendá-las, sob pena de retirada do bem e sucessiva concessão a quem cumpris- se a função para o qual foi criado o instituto6.

Posteriormente, foram as sesmarias incorporadas às Ordenações Régias, onde sofreram diversas transformações, mas não perderam o fundamento do cultivo e a caracterização de propriedade não-absoluta. Nesse sentido, ressalte- -se o princípio da razoabilidade na concessão sesmarial, o qual induzia que “o tamanho das terras dadas deveria ser proporcional à capacidade de aprovei-

2 Para mais detalhes sobre o processo de expansão marítima de Portugal, ver: FAUTO, Boris. História concisa

do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, Imprensa Ofi cial do Estado, 2002, p. 9-14.

3 VARELA, Laura Beck, op. cit., p. 18.

4 MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Legitimação de Posse: dos imóveis urbanos e o direito à moradia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 14-15.

5 Interessante ressaltar que “os bens, quando incultos, em tese ‘retornavam’ ao patrimônio da Coroa – eram

‘devolvidos’, daí advindo o termo ‘terras devolutas’ –, já que o rei, por direito de (re)conquista, tinha o domínio eminente sobre todo o território e podia dar terras de sesmaria”. (VARELA, Laura Beck, op. cit., p. 24-25).

tamento do benefi ciado”7. Igualmente, condenava-se a subutilização da terra,

estabelecendo a lei critérios para que esta fosse considerada de fato lavrada, maneira pela qual preencheu-se o conteúdo do domínio sesmarial português8.

1.1.2. As sesmarias no Brasil

No Brasil, diferentemente, as sesmarias surgem como mecanismo de pro- moção à colonização do território9. Após o apossamento formal das terras,

tornava-se necessária a ocupação do solo, a fi m de impedir a invocação, por outras nações, do princípio do uti possidetis, como forma de contestar o pri- vilégio exclusivo sobre as terras. Deste modo, as capitanias hereditárias foram outorgadas por Dom João III aos capitães-mores, que recebiam uma Carta de Doação que lhes outorgava poderes inerentes ao domínio, dentre os quais o de conceder sesmarias10.

Ademais, o ponto de partida não é uma propriedade do tipo feudal, como no modelo português, mas sim uma propriedade pública, integrante do patri- mônio da Coroa11. Ambas as experiências, entretanto, retratam a propriedade

jurídica não absoluta, bem diferente do modelo proprietário que seria desenvol- vido a partir do século XIX12.

Desta forma, desde as primeiras cartas régias de doações de capitanias hereditárias, em 1530, já se verifi ca a transposição das sesmarias para o Bra- sil. Todavia, tendo sido concebida para uma realidade diversa, qual seja, a de combater as crises originadas com a Peste que assolou a Europa, as sesmarias brasileiras ganharam novas características13, de que é exemplo a doação de

7 VARELA, Laura Beck, op. cit., p. 55. 8 Idem. Ibidem, p. 60.

9 Conforme anota Boris Fausto, “A maior ameaça à posse do Brasil por Portugal não veio dos espanhóis e

sim dos franceses. A França não reconhecia os tratados de partilha do mundo, sustentando o princípio do uti possidetis, segundo o qual era possuidor de uma área quem efetivamente a ocupasse. Os franceses entraram no comércio do pau-brasil e praticaram a pirataria, ao longo de uma costa demasiado extensa para que pudesse ser guarnecida pelas patrulhas portuguesas. (...) Considerações políticas levaram a Coroa portuguesa à convicção de que era necessário colonizar a nova terra. A expedição de Martim Afonso de Sousa (1500-1533) representou um momento de transição entre o velho e o novo período. Tinha por objetivo patrulhar a costa, estabelecer uma colônia através da concessão não-hereditária de terras aos povoadores que trazia (São Vicente, 1532) e explorar a terra tendo em vista a necessidade de sua efetiva ocupação. Há indícios de que Martim Afonso ainda se encontrava no Brasil quando D. João III decidiu-se pela criação das capitanias hereditárias. O Brasil foi dividido em quinze quinhões, por uma série de linhas paralelas ao Equador que iam do litoral ao meridiano de Tordesilhas, sendo os quinhões entregues aos chamados capitães-donatários”. (FAUSTO, Boris, op. cit., p.18).

10 MELO, Marco Aurélio Bezerra de, op. cit., p. 11-13. 11 VARELA, Laura Beck, op. cit., p. 72-73.

12 O surgimento de um novo modelo de propriedade, absoluta e incondicionada, é o que dá nome ao “processo de absolutização da propriedade”, que será objeto de estudo do próximo item deste trabalho. 13 A título de curiosidade ressalte-se que “sesmeiro” ganha novo signifi cado, passando a designar aquele que

terrenos nunca cultivados (terras virgens da ocupação portuguesa). Destar- te, as sesmarias, que confi guravam apenas uma das formas dominiais no ordenamento português, passam a ser, no Brasil, a regra quanto à forma de apropriação do território14.

Também é preciso salientar que a política mercantilista, baseada no la- tifúndio, na agricultura voltada à exportação e na utilização de mão-de-obra escrava, também foi fator que infl uenciou o modo pelo qual se desenvolveu a propriedade sesmarial brasileira. Neste contexto, o escravo, enquanto fi gura de instrumentalização da produção, ganha enorme importância, chegando a ser mais cobiçado que a própria posse de terras, já que estas eram doadas gratuita- mente pela Coroa portuguesa.

Havia previsão15, inclusive, para que terras fossem concedidas especial-

mente para a produção de açúcar, antecedida da construção de engenho. Para tanto, o pretendente às terras (sesmeiro) deveria comprovar a posse de escravos, posto admitir-se ser este um fator a viabilizar a monocultura. A necessidade do cultivo direciona-se, assim, para a cultura do açúcar voltada à exportação.

Explica-se, com isso, a formação dos grandes latifúndios, os quais eram importantes para a lavoura voltada à exportação, já que a dinâmica do sistema colonial permitia a utilização da terra para atividades não mercantis, bem como ensejava a necessidade de grande estrutura para o funcionamento dos engenhos de açúcar e o rápido esgotamento dos solos16. Não obstante existir previsão

legal para o dever de cultivo e de concessão limitada à possibilidade de apro- veitamento da terra pelo sesmeiro, verifi cou-se a apropriação, pelo instrumento das sesmarias, de áreas de enorme extensão, afastando do acesso à terra grande parcela da população17.

Oportuno salientar que a possibilidade de doação de extensas áreas para atender os interesses dos latifundiários permitiu que as terras fossem demarca-

portuguesas, em que sesmeiro signifi cava o distribuidor e o fi scal das terras que eram objeto da concessão. (VARELA, Laura Beck, op. cit., p. 76-77).

14 Idem. Ibidem, p. 73-75.

15 Regimento de Tomé de Souza – Regimento dos Provedores da Fazenda Del Rei Nosso Senhor nas Terras do Brasil, de 1548. Para mais detalhes, ver VARELA, Laura Beck, op. cit., p. 80.

16 A respeito do tema ver: CASTRO, Hebe Mattos de. Ao sul da história. São Paulo: Brasiliense, 1987 apud VARELA, Laura Beck, op. cit., p. 87-90.

17 Conforme observa Marco Aurélio Bezerra de Melo, “o regime sesmarial aplica-se para terras incultas e foi

utilizado em Portugal prestigiando a funcionalização da propriedade, benefi ciando, outrossim, os pequenos agricultores em minifúndios produtivos. No Brasil, esse modelo jurídico interessante, lamentavelmente acabou por consolidar latifúndios. Outro dado importante é que em Portugal o sesmeiro que não desse função social à propriedade era punido com a perda do bem, sanção que não se viu aplicar no Brasil”. (MELO, Marco

das sem haver fi dedignidade quanto aos seus limites. Essa imprecisão, entretan- to, é completamente incompatível com a realidade da propriedade absoluta que seria iniciada a partir do século XIX.

Apesar dessas características do sistema sesmarial brasileiro, não é pos- sível afi rmar que a Coroa, pelo menos do ponto de vista jurídico-legal, não se esforçava em limitar os poderes dos concessionários. Na verdade, o dever de cultivo sempre se fez presente e deveria, inclusive, ser fi scalizado pelas autoridades, as quais, em verifi cando o descumprimento do referido dever, anotavam a necessidade de reversão das terras ao Estado e a futura doação a quem de fato as cultivasse18.

Posteriormente, com a Provisão de 20 de outubro de 1753, limitou-se, em todo o território brasileiro, o tamanho das sesmarias concedidas, que deveriam ser de três léguas quadradas. Todavia, mais uma vez, a existência de um instru- mento legal não impediu a formação dos latifúndios fundados em favorecimen- tos pessoais.

Igualmente, houve determinação da Coroa portuguesa, por meio da Carta Régia de 23 de novembro de 1698, para que houvesse a medição e demarcação das terras concedidas, o que, porém, não foi verifi cado na prática.

Desta forma, o cenário da segunda metade do século XIX não foi outro senão um “grande número de sesmarias não demarcadas, nem registradas, nem

confi rmadas19” e o número signifi cativo de “simples posses, prática comum de aquisição da terra, que se fi rmou paralelamente aos complexos trâmites burocráticos exigidos para as doações sesmariais”20.

Diante da desordem quanto à ocupação das terras, foi preciso repensar a maneira pela qual seria estruturado o sistema de distribuição territorial. Em consequência, o regime sesmarial foi extinto pela Resolução nº. 76 de Dom Pedro I, de 17 de julho de 1822, resultado do contexto de expansão da econo- mia cafeeira e do movimento que culminou na Independência. A partir daí, tornou-se modo para a aquisição do domínio, a mera posse ou ocupação com fi nalidade de desenvolver cultura efetiva. Institucionaliza-se, assim, verdadeiro

18 Nesse sentido, Regimento dos Provedores da Fazenda del Rei Nosso Senhor nas Terras do Brasil, de 1548; Provisão de 25 de outubro de 1571; Alvará de 21 de agosto de 1587; Alvará de 8 de dezembro de 1590; Carta Régia de 16 de março de 1682; Alvará de 5 de janeiro de 1785. (VARELA, Laura Beck, op.

cit., p. 91-92).

19 A confi rmação foi o procedimento instaurado pela Carta Régia de 23 de novembro de 1698, em que “impunha-se a confi rmação das doações por el-Rei, que parece ter sido pouco obedecida. Difundiu-

se, paralelamente, a prática do capitão-mor doar as sesmarias e, após, o sesmeiro pedir a confi rmação ao governador-geral”. (VARELA, Laura Beck, op. cit., p. 97-98).

costume jurídico, o que mais tarde viria a ser um desafi o a ser combatido pela Lei de Terras de 1850 21.

Importante ressaltar que o cultivo e, muitas vezes, a morada habitual, ga- rantiam aos posseiros a sua permanência nas terras, ainda que sobre as mesmas recaíssem sesmarias antes concedidas. Deste modo, verifi ca-se a importância que já assumiu uma espécie de “função social” exercida pelo particular para a legitimação da ocupação de bens públicos no Brasil.

No documento Coleção Jovem Jurista 2010 (páginas 87-92)

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