• Nenhum resultado encontrado

O processo de “absolutização da propriedade”

No documento Coleção Jovem Jurista 2010 (páginas 92-96)

CARLA RIBEIRO TULL

I. A OCUPAÇÃO DOS BENS PÚBLICOS NO BRASIL

1.2. O processo de “absolutização da propriedade”

A expressão “absolutização da propriedade”22 é utilizada para designar as

transformações pelas quais passa o instituto até ser concebido como direito ab- soluto, onde o foco não é mais a coisa em si, mas sim o sujeito e os poderes que ele passa a exercer sobre a coisa.

A introdução das relações capitalistas de produção, repercutiram, no que tange à terra, na exigência da propriedade privada absoluta e na possi- bilidade de sua mercantilização. Nesse contexto, são as Leis de Terras (Lei 601/1850) e Hipotecária (Lei 1.237/1864 e seu Regulamento, Decreto 3.453 de 26 de abril de 1865), que propiciam que a terra seja vislumbrada como mercadoria23.

Afi rma-se, assim, que a Lei de Terras buscou conferir um estatuto jurídico à propriedade privada: adequou-a às novas exigências econômicas e fomentou a colonização, instituindo o registro, o conceito de terras devolutas, a proibição de aquisição por modo diverso da compra e, fi nalmente, a Repartição Geral

21 Nas palavras de Raymundo Faoro: “A Lei de Terras de 1850 é, antes de tudo, uma errata aposta à nossa

legislação das sesmarias [...] Errata com relação ao regime das sesmarias, a Lei de 1850 é, ao mesmo tempo, uma ratifi cação formal do regime das posses. Graças à lei, a propriedade particular se extremou da terra devoluta, gozando a primeira, além de um título certo para garantia de sua empresa, de um registro paroquial, embrião capaz de separar o senhor da terra do mero pretendente ao usucapião. Para o futuro as terras públicas só seriam adquiridas por meio da compra, com a extinção do regime anárquico das ocupações”. (FAORO,

Raymundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. 3ª ed. São Paulo: Globo, 2001, p. 466).

22 A expressão é de Roberto Smith. (SMITH, Roberto. Propriedade da terra e transição: estudo da formação da propriedade privada da terra e transição para o capitalismo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, co-edição MCT/CNPq, 1990, p. 237 e seguintes). Segundo o autor, “a absolutização da propriedade da terra pode

ser considerada como importante ruptura da estrutura hierarquicamente remontada de deveres, obrigações, honra e lealdade, circunscrita à propriedade feudal. As trajetórias constitutivas dos Estados absolutistas evidenciam, histórica e assincronicamente, a centralização do poder do rei e a desvinculação da propriedade de seus traços feudais, abrindo-lhe a possibilidade de adquirir forma mercantil, livre de quaisquer outros atributos que não os da condição de mercadoria”. (p. 340-341)

das Terras Públicas24. Essa foi a maneira encontrada para que as terras devolu-

tas fossem retomadas pelo Estado, sem, contudo, desconstituir posses de terra “legítimas”, isto é, posses que cumpriam com os requisitos do cultivo e da uti- lização para a moradia habitual, antes da edição da Lei nº. 601, de 1850. Nesse sentido, anota Roberto Smith:

“Após a regulamentação da Lei de Terras, assiste-se a uma inversão na conduta do Estado em relação à identifi cação e demarcação da proprie- dade. O Estado passa a assumir a iniciativa de discriminar e demarcar suas terras, denominadas ‘devolutas’, quando o encaminhamento ante- rior era aquele pelo qual cabia inicialmente ao proprietário privado comprovar e identifi car suas terras, considerando-se devolutas as terras remanescentes” 25.

Em resumo, a situação que se operou no ordenamento jurídico brasileiro foi a seguinte: antes de 1822, vigorava o regime de concessão de terras pelas sesmarias; em 1822, com a extinção do regime das sesmarias, foi a posse origi- nária (“regime das posses”) que autorizou a aquisição de terras até 1850; com a edição da Lei de Terras, em 1850, buscou-se regularizar a situação jurídica do patrimônio imobiliário brasileiro. Destarte, previu-se a compra e venda das terras devolutas, a revalidação das sesmarias que cumpriram o encargo do cultivo e da moradia e, fi nalmente, a legitimação das posses em que fora observada a função social26.

Nesse momento, começam a ser traçados os limites entre o domínio públi- co27 e o particular. Indispensável mencionar, nesse contexto, que a regulamen-

tação da Lei de Terras (Decreto imperial nº. 1.318, de 30 de janeiro de 1854), instituiu o sistema de registro das terras, conhecido como “Registro do Vigário”.

Tal sistema registral foi assim denominado em função de ser controlado pelas paróquias da Igreja Católica – única Instituição existente em muitos locais do interior do país –, sendo destinado à regulamentação das ditas “terras possu- ídas”. Essa regulamentação restringia-se ao mero levantamento estatístico, não

24 Idem. Ibidem, p. 134. A autora anota que, segundo a Lei de Terras, a Repartição Geral das Terras Públicas seria responsável por “dirigir a medição, divisão e descripção das terras devolutas, e

sua conservação, de fi scalisar a venda e a distribuição dellas, e de promover a colonisação nacional e estrangeira”.

25 SMITH, Roberto. op. cit., p. 350-351. 26 MELO, Marco Aurélio Bezerra de, op. cit., p. 23.

servindo como título comprobatório do domínio28, muito embora a realidade

tenha imposto esse entendimento29.

Somente em 1890, foi instituído, facultativamente, o registro de terras conhecido como Registro Torrens, no qual passou-se a registrar o título de pro- priedade e não o ato que o transfere30.

Outrossim, com o advento da Lei de Terras, o critério do cultivo passa paulatinamente a ser relegado a segundo plano, de modo que não era mais pos- sível que o Estado retomasse as terras somente em razão da ausência do referido critério, salvo nos casos de expropriação mediante indenização prévia.

28 Em recente decisão, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que o registro paroquial ou ato de medição da terra não são sufi cientes para legitimar a posse de imóvel. Conforme noticiado em 24/06/09, “Não há direito de propriedade decorrente do registro paroquial, assim como, para legitimar

posse de lote de terra, é necessário, além da medição do imóvel, o cultivo, a moradia habitual do respectivo posseiro e as demais condições explicitadas na Lei de Terras de 1850. O entendimento é da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) ao julgar questão em que o ocupante da Ilha do João da Cunha, localizada no município de Porto Belo (SC), requeria que lhe fosse reconhecido o domínio pleno sobre o imóvel para isentar-se do pagamento anual da taxa de aforamento. Segundo os autos, o autor da ação alega ser o proprietário da ilha desde 16/4/1953, conforme escritura pública de compra e venda, passada em cartório e registrada no Registro de Imóvel. Em junho de 1990, julgando abusiva a taxa de aforamento cobrada anualmente sobre o imóvel, encaminhou petição à Delegacia do Patrimônio da União do estado para que houvesse o reconhecimento do domínio pleno sobre a ilha e, por consequência, a exoneração quanto ao pagamento do imposto. O pedido foi indeferido no âmbito administrativo, pois não estava provada a cadeia sucessória e a alienação das terras pela União. O órgão superior manteve a decisão e acrescentou que o registro feito por João da Cunha, primeiro proprietário da ilha, no livro do vigário em Porto Belo para legitimar a propriedade era um simples cadastro. O ocupante da área recorreu alegando que a Lei de Terras (Lei 601 de 18 de setembro de 1850) legitimou a posse de João da Cunha sobre a terra em litígio e que ele teria levado o imóvel ao registro paroquial, o qual, segundo o autor da ação, comprova a titularidade do domínio. O juízo da 4ª Vara da Circunscrição Judiciária de Florianópolis julgou improcedente o pedido. O ocupante da ilha recorreu ao STJ, alegando que houve violação da Lei de Terras, uma vez que, em seu artigo 7º, a exigência de medição destinava-se apenas às terras continentais se compatível com os recursos da época. Sustenta, ainda, que o registro paroquial valida o registro de propriedade e não tem caráter meramente cadastral ou estatístico. A Quarta Turma, por unanimidade, não acolheu o recurso especial, seguindo as considerações do relator, ministro Luis Felipe Salomão. Ele afi rmou que a cadeia dominial do imóvel não é completa porque haveria nos autos apenas indícios de que João da Cunha tentou proceder à legitimação de sua posse. Concluiu também que o registro paroquial carece de força oponível à determinação do legislador e não tem o poder de atribuir o domínio ao ocupante da terra, pois não confere à publicidade inerente aos registros imobiliários. O relator destacou que a origem das propriedades particulares no Brasil parte das doações de sesmarias e de ocupações primárias. Portanto, para se transformar em domínio pleno, deveriam essas terras passar por uma revalidação ou legitimação, conforme previsto na Lei de Terras. Ressaltou que, para tal legalização, seria necessário, além da medição, o cultivo da terra, a moradia habitual do respectivo posseiro, bem como as demais condições exigidas no artigo 5º da lei em análise. Quanto à questão de o registro paroquial dar direito de propriedade, o ministro Luis Felipe Salomão salientou que, por qualquer ângulo que se analise a questão, seja considerando-o apenas como cadastro estatístico ou simplesmente meio de prova do fato da posse, não há como lhe conferir o alcance pretendido, pois esse registro não tem a virtualidade de completar a cadeia dominial, viciada desde a origem”. In: Notícias STJ. Disponível em

www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp. area=398&tmp.texto=92564. Acesso em: 18/08/09 (grifos nossos).

29 VARELA, Laura Beck, op. cit., p. 149-151. 30 SMITH, Roberto. op. cit., p. 336-337.

Outro marco importante no processo de absolutização da propriedade é a Lei Hipotecária (Lei 1.237/1864), a qual corroborou a possibilidade de mer- cantilização da terra, na medida em que a propriedade imobiliária pôde consti- tuir garantia de crédito. Dentre outras coisas, o referido diploma legal e seu Re- gulamento (Decreto 3.453 de 26 de abril de 1865), instituíram o registro para a transcrição dos títulos de transmissão de imóveis inter vivos e de constituição de ônus reais como requisito para a sua oponibilidade em relação a terceiros31.

A publicidade era, então, característica a possibilitar a oponibilidade erga

omnes do instituto. Pouco a pouco, deixa de ser uma mera formalidade, pois

com a criação do registro de imóveis pelo Código Civil de 191632, a transcrição

imobiliária passa a ser o modo para adquirir a propriedade, em contraposição à simples tradição.

Somente o abandono da efi cácia inter partes dos atos praticados atinentes ao direito de propriedade, possibilita a consolidação do referido direito como absoluto. Assim, fi rma-se, à luz das contribuições francesa33 e alemã34, bem

como da doutrina brasileira do século XIX, um direito inviolável, ilimitado, exclusivo e natural35.

31 VARELA, Laura Beck, op. cit., p. 174-175.

32 Diz-se que o Código Civil de 1916 criou o registro de imóveis em sentido amplo, pois limitou-se a aperfeiçoar o sistema já criado pela reforma hipotecária de 1864. Deve-se ressaltar, nesse contexto, que antes do surgimento do Código Civil, o Decreto-federal nº. 451-B e o Decreto nº. 955-A, ambos de 1890, criaram o chamado Registro Torrens. Neste, havia a obrigatoriedade de transcrição das alienações de terras públicas e dos imóveis urbanos situados na Capital Federal. Todavia, todos os imóveis suscetíveis de hipoteca ou de ônus reais poderiam ser registrados. O registro assegurava ao proprietário um título dominial, o que garantia o seu “direito” a uma propriedade absoluta. Em 1895, porém, foi o Registro Torrens declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal, mas após o advento do Código Civil de 1916, o Decreto de 31 de dezembro de 1917 reafi rmou o instituto. Para mais detalhes, ver VARELA, Laura Beck, op. cit., p. 190-192.

33 No que tange à contribuição francesa, o Código Napoleônico de 1804 considerava a propriedade um fato econômico de utilização exclusiva da coisa. No contexto do movimento revolucionário burguês, o direito de propriedade integrava o espaço de liberdade e privacidade do indivíduo, primando-se pela mínima ingerência estatal que restringia-se à garantia da segurança do cidadão. Nas palavras de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, “O código francês voltou-se para a tutela da esfera patrimonial dos

sujeitos. Mais do que o código das pessoas, torna-se o código das coisas”. (FARIAS, Cristiano Chaves de;

ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, pp. 173-174). 34 Por outro lado, nas palavras de Laura Beck Varela: “O resultado da construção oitocentista, tendo como pon-

to culminante a contribuição da Pandectística, é uma concepção de propriedade como instituição social, ponto de chegada histórico, valor ético-social absoluto, revestido de uma fórmula unitária e abstrata”. (VARELA,

Laura Beck, op. cit., p. 214-215). [§903 do BGB: “O proprietário de uma coisa pode, sempre que a lei ou o direito de um terceiro não se opuser, dispor da coisa à sua vontade e excluir outros de qualquer in- tromissão”]. Ainda nas conclusões da autora, essa concepção alude às restrições legais ao direito subjetivo e ao interesse social ou coletivo (p. 231).

35 Conforme ressalta Laura Beck Varela, “(...) o direito de propriedade passa agora a ser

caracterizado, pela doutrina, como ‘poder de vontade’, como direito natural do homem sobre as coisas, em cujo conteúdo não cabem deveres e limitações. Tendo como valor central a liberdade, as únicas limitações a este direito natural decorrem do respeito à

A experiência brasileira foi marcada, assim, pela transição dos bens do do- mínio público para o privado, com o esforço gradativo de diferençar essas duas esferas proprietárias. Com a vitória nesse sentido, consolidou-se o poder da elite local, ensejando a formação dos grandes latifúndios36. É nesse cenário de

extremada separação que se inicia esse estudo, mas agora ciente da quebra do mito de que a propriedade pública sempre fora bem intocável e impassível de apropriação por particulares.

No documento Coleção Jovem Jurista 2010 (páginas 92-96)

Outline

Documentos relacionados