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A compreensão predominante acerca da responsabilidade civil foi construída na perspectiva de reconhecimento de sua função restituitória, sendo-lhe também atribuída, normalmente, função preventiva. Essa concepção civilista tradicional coaduna-se com a ideologia que impregnou os ordenamentos jurídicos modernos. O patrimônio individual era, com efeito, o foco das formulações jurídicas.

A integral reparação patrimonial dos prejuízos sofridos pelo sujeito, nesse contexto, despontava como finalidade suficiente da responsabilidade civil.

Coerentemente com os influxos políticos do período, firmou-se o entendimento no sentido da inadmissão de existência de um caráter punitivo nas sanções civis, em decorrência da rígida separação entre o público (esfera da punição estatal) e o privado (esfera da reparação pelo particular) que, à época, intentava-se sedimentar. MARIA CELINA BODIN DE MORAES salienta que essa separação assumiu importante dimensão para a afirmação da autonomia privada por parte da ideologia liberal burguesa437.

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Constituição da Organização Internacional do Trabalho, Preâmbulo: “Considerando que a paz para ser universal e duradoura deve assentar sobre a justiça social (...)”.

437 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos a Pessoa Humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 201.

A evolução histórica, todavia, veio a revelar a insuficiência da tradicional concepção da responsabilidade civil em face do modelo de sociedade que emergia a partir de meados do século XX. Com efeito, obtempera PIETRO PERLINGIERI:

Técnicas e institutos nascidos no campo do direito privado tradicional são utilizados naquele do direito público e vice-versa, de maneira que a distinção, neste contexto, não é mais qualitativa, mas quantitativa. Existem institutos em que é predominante o interesse dos indivíduos, mas é, também, sempre presente o interesse dito da coletividade e público; e institutos em que, ao contrário, prevalece, em termos quantitativos, o interesse da coletividade, que é sempre funcionalizado, na sua íntima essência, à realização de interesses individuais e existenciais do cidadão438.

De um lado, desenvolveu-se verdadeiro movimento internacional de valorização do ser humano pelo só fato de sua existência. A preocupação com a dignidade humana ganhou espaço nas discussões internacionais e nas formulações jurídicas das décadas que se seguiram. Diversas Constituições ocidentais passaram a explicitar a proteção à vida humana como elemento basilar dos ordenamentos jurídicos. A Carta Brasileira de 1988, por exemplo, já em seu primeiro artigo elenca como fundamento da República a dignidade da pessoa humana, reconhecendo expressamente, ainda, a possibilidade de reparação dos danos morais, em seu artigo 5º, incisos V e X439, tese antes altamente controvertida na doutrina e na jurisprudência.

De outro lado, a configuração do sistema capitalista adquiriu proporções jamais alcançadas na história. A ideologia capitalista firmou-se muito mais do que como modelo de produção de bens em massa, mas como modelo de relações sociais em

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PERLINGIERI, Pietro. Perfis de Direito Civil. 2 ed. Tradução de Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 54. Afirmam, por sua vez, PABLO STOLZE e RODOLFO PAMPLONA FILHO que a tradicional distinção entre direito público e direito privado “em verdade, não tem, na prática jurídica, a relevância que muitos doutrinadores lhe emprestam, uma vez que o direito deve ser encarado em sua generalidade, sendo qualquer divisão compartimentalizada apenas uma visão útil para efeitos didáticos (...)” (GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. vol I: parte geral. 12. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 72). A seu tempo, discorrendo acerca do papel da responsabilidade civil em face das transformações sociais, SALOMÃO RESEDÁ assevera que a “manutenção da dicotomia entre o direito público e o privado representa um atraso no caminhar evolutivo da norma jurídica perante a sociedade. Hoje, o que se deve ter em destaque é o objetivo de garantir a efetiva proteção à pessoa e, consequentemente, à sociedade” (RESEDÁ, Salomão. A função social do dano moral. Florianópolis: Conceito Editorial, 2009, p. 274).

439 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;

massa. A industrialização de diversas nações, os avanços tecnológicos e a elevação dos níveis de consumo geraram um quadro social de reiterada repetição de danos. Danos ambientais de grave magnitude, assim como danos a grupos cada vez mais extensos de consumidores e trabalhadores, tornaram-se freqüentes na contemporaneidade440.

Cumpre, assim, empreender uma renovação na compreensão da responsabilidade civil441, eis que os institutos jurídicos não podem legitimamente manter-se incompatíveis com a realidade social em função da qual existem.

Considerando as transformações sociais ocorridas, FERNANDO NORONHA constata:

Ampliação dos danos suscetíveis de reparação, objetivação e coletivização da responsabilidade civil: em conseqüência dos três fenômenos, mas em especial da objetivação e da coletivização, a responsabilidade civil neste momento passa por verdadeira revolução. São nítidos os contrastes com a responsabilidade civil que herdamos do século XIX.442

Neste diapasão, é imperioso o reconhecimento da função punitiva da responsabilidade civil. Não admitir a necessidade de atribuição de caráter punitivo

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

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Exemplo emblemático, citado por DÉBORA C. HOLENBACH GRIVOT, é o caso Ford Corporation versus Grimshaw, ocorrido nos Estados Unidos da América. Nele, apurou-se que a empresa automobilística fabricara certo modelo de veículo instalando o reservatório do carburador em seu lado posterior, o que representava a economia do equivalente a U$ 15,00 por carro. Todavia, isso também significava a elevação do risco de explosão do automóvel em determinadas circunstâncias. Ciente de tais dados, a Ford Corporation determinou a realização de cálculos a fim de mensurar se a economia resultante das especificações da localização do componente seria superior aos gastos com eventuais demandas propostas em decorrência dos acidentes previstos. Obtida resposta positiva, o projeto foi aprovado e executado. No caso citado, aplicou-se a função punitiva da responsabilidade civil na condenação da empresa, como meio de reprovação de sua conduta. (GRIVOT, Débora Cristina Holenbach. A função punitiva da responsabilidade civil - Breves apontamentos para contribuir com o desenvolvimento do instituto. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11623&p=3. Acesso em 07 de junho de 2010).

441 Neste sentido, LUIS GUSTAVO G. C. DE CARVALHO assevera que a “rígida concepção antes examinada, que preconizava a dicotomia direito público-interesse privado e pena-reparação, não é mais recomendável diante de novas categorias de direito que vão se impondo como realidade incontestável.” (CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. Responsabilidade por Dano Não-Patrimonial a Interesso Difuso (Dano Moral Coletivo) in Revista da EMERJ, v. 3, n. 9, 2000, p. 31). Pondera, ainda, ANDRÉ GUSTAVO CORRÊA DE ANDRADE que: “O ‘paradigma reparatório’, calcado na teoria de que a função da responsabilidade civil é, exclusivamente, a de reparar o dano, tem-se mostrado ineficaz em diversas situações conflituosas, nas quais ou a reparação do dano é impossível, ou não constitui resposta jurídica satisfatória, como se dá, por exemplo, quando o ofensor obtém benefício econômico com o ato ilícito praticado, mesmo depois de pagas as indenizações pertinentes, de natureza reparatória e/ou compensatória; ou quando o ofensor se mostra indiferente à sanção reparatória, vista, então, como um preço que ele se propõe a pagar para cometer o ilícito ou persistir na sua prática.” (ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Indenização Punitiva in Revista da EMERJ, v. 9, nº. 36, 2006, p. 136).

em sanções aplicadas em decorrência de condutas dotadas de elevado grau de reprovação social significa ignorar as novas configurações das relações sociais e a noção de solidariedade presente nos ordenamentos ocidentais contemporâneos. Implica, ademais, desprezar a idéia de eficiência como parâmetro legítimo a ser utilizado na responsabilidade civil, temática que será especificamente abordada em seção adiante.

Vale, aqui, desenvolver dois esclarecimentos.

O primeiro diz respeito à natureza jurídica da responsabilidade civil, questão já debatida no tópico 6.2. Consoante declinado naquele momento, não se deve confundir natureza jurídica com função. Ainda na atualidade, persiste a responsabilidade civil como sanção, isto é, como conseqüência lógico-normativa de certa conduta. A atribuição de uma finalidade ou função punitiva em momento algum afasta esta natureza sancionatória ou converte todo o sistema em um modelo de pena (espécie do gênero sanção). A aproximação que se verifica relativamente ao Direito Criminal (rectius: ao Direito Público) refere-se ao reconhecimento, à responsabilidade civil, de uma função tradicionalmente atribuída somente àquele, não a uma transmutação da natureza jurídica do instituto.

O segundo esclarecimento é de ordem terminológica. A expressão “punitive damages”, oriunda dos países de commom law, tem sido traduzida para o português de diversas maneiras. Uma delas é “danos punitivos”, fórmula que, como denuncia SALOMÃO RESEDÁ, é flagrantemente equivocada, tendendo a indicar que o “ordenamento estaria imprimindo um peso ainda maior ao sofrimento da vítima, na medida em que sobre ela incidiria uma punição pelo dano experimentado”443. Há quem opte, então, por empregar o termo “indenização punitiva”, a exemplo de

ANDRÉ GUSTAVO DE ANDRADE444. A fragilidade da alternativa, entretanto, reside

em sua raiz lingüística, “indemnis”, que significa retirar ou afastar o dano, ou, dito de outro modo, reparar445, noção que não se coaduna com a idéia de aplicação de uma

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NORONHA, Fernando. Desenvolvimentos contemporâneos da responsabilidade civil. RT-761, Março de 1999 – 88º ano, p. 40.

443

RESEDÁ, Salomão. A Função Social do Dano Moral. Florianópolis: Conceito Editorial, 2009, p. 260.

444

ANDRADE, André Gustavo. Dano moral & indenização punitiva: os punitive damages na experiência do commom law e na perspectiva do direito brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

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GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. v. III: Responsabilidade Civil. 9 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 406.

punição. Partindo de fundamento diverso, prefere RESEDÁ valer-se da expressão “teoria do desestímulo”, sob o argumento de que o que prepondera em condenações dessa espécie é o “caráter desestimulador do instituto”446 e não propriamente uma intenção punitiva.

Há, ainda, quem utilize a expressão “sanção extraordinária”447. Qualquer das duas últimas fórmulas mencionadas (“teoria do desestímulo” ou “sanção extraordinária”) parece revelar a contento a noção contida na expressão “punitive damages”, razão pela qual serão também utilizadas neste trabalho.

Esclarecidas estas questões, importa avançar no exame da assunção de uma função punitiva da Responsabilidade Civil no direito brasileiro, abordando-se resistências doutrinárias e aspectos relativos a sua instrumentalidade. Para tanto, convém analisar, ainda que sucintamente, a atual realidade de sua aplicação nos Estados Unidos da América, nação em que o instituto alcançou considerável desenvolvimento. Esta é a proposta da seção seguinte.

6.6 PUNITIVE DAMAGES NA EXPERIÊNCIA DOS ESTADOS UNIDOS DA