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Funcionamento do sistema de referência e contra-referência – visão dos profissionais

CAPÍTULO V – Avaliação dos Efeitos e Impacto do Programa Saúde da Família

2. Impacto do Programa Saúde da Família

2.1 Funcionamento do sistema de referência e contra referência (acessibilidade/ integralidade)

2.1.2 Funcionamento do sistema de referência e contra-referência – visão dos profissionais

Ao entrevistarmos os profissionais de saúde sobre como eles veem o PSF na rede de serviços e o sistema de referência e contra-referência, percebemos que nos municípios de pequeno e médio porte, o Programa é considerado por eles a porta de entrada do sistema. Porém, os profissionais da zona rural relataram que acreditam que o PSF seja, na maior parte das vezes, utilizado como porta de entrada por esta população. No entanto, devido as limitações e dificuldades para o usuário conseguir atendimento nestas localidades, eles acabam procurando os hospitais também como primeira opção. Nos municípios de grande porte, o PSF também é considerado pelos profissionais a porta de entrada do sistema, mas a carência de médicos e a presença de outros serviços que oferecem atendimentos básicos, fazem com que a procura pelo PSF não se torne prioritária. Ou seja, nestes municípios é mais fácil perceber a busca por outros serviços.

Referir o usuário do PSF para qualquer outro nível do sistema, foi colocado por todos os profissionais como uma grande dificuldade do Programa. Nos municípios menores (pequeno e médio portes) a dificuldade é maior quando os serviços são para a alta complexidade, por que tem de encaminhar para municípios maiores. Nos municípios de grande porte, as dificuldades são potencializadas porque nestes a rede de serviço é maior e mais complexa, então aquilo que os municípios de pequeno e médio porte não conseguem demandar são encaminhados para os municípios de grande porte. E nestes é onde ocorre o desaguadouro dessa demanda e onde as queixas dos

profissionais em relação à dificuldade de encaminhar são inúmeras. Assim, percebemos que o aumento da oferta de serviços de atenção básica para municípios de pequeno e médio porte, com coberturas de 100%, e ainda a expansão do PSF nos municípios de grande porte resultaram em aumento da demanda por encaminhamentos a especialistas e também serviços de mais alta complexidade, o que repercutiu de forma negativa como um aumento da demanda destes serviços nas grandes cidades, gerando um impacto

negativo.

Sobre à referência às especialidades, algumas formas de organização e funcionamento do Programa em alguns municípios tem diminuído as dificuldades encontradas para referenciar. No município de Acari, por exemplo, alguns médicos que estão no PSF são especialistas como pediatra, ginecologista e obstetras e eles atendem também como referência. Ou seja, o médico da equipe I é pediatra, e um dos seus dias de atendimento é reservado para atender os usuários referenciados de outras unidades de PSF do município de Acari. Assim, as referências para pediatria, ginecologia e obstetrícia em geral, são resolvidas dentro do próprio Programa entre os profissionais médicos que atuam nas equipes.

Nestes casos, eles afirmam que há contra-referência, pois como todos se conhecem e se encontram regularmente em reuniões na Secretaria de Saúde, então têm como discutir sobre algum caso específico e dar as informações pertinentes. Mas não de forma escrita ou formal, pois seria uma contra-referência direta ao próprio colega que encaminhou o usuário.

Em Acari, existe o cadastro único, onde as famílias registram-se na Secretaria de Saúde e recebem um número e, com esse número, são atendidas em todos os serviços de saúde, incluindo o PSF. Então, a primeira “referência” dá-se de um Programa para outro. Ou seja, um profissional “encaminha” para receber um parecer por um colega do PSF que possui tal especialidade.

Por outro lado, Acari possui pactuações e parcerias com outros municípios, principalmente através da AMSO (Associações dos Municípios do Seridó), que reúne cidades como Caicó e Currais Novos, que são municípios de médio porte e que oferecem uma gama de serviços especializados que suprem a necessidade destes municípios circunvizinhos para alguns serviços especializados.

A dificuldade, de fato enfrentada nos serviços de referência em Acari, está relacionada a serviços de alta complexidade como seria o caso de exames como

tomografia, ressonância, internações em UTI etc, pois demandam encaminhamentos para a cidade de Natal, e neste contexto, as dificuldades são maiores.

Em Taipu, a oferta de serviços é mais limitada e existem algumas especialidades que atendem no município, e os demais serviços são oferecidos por municípios como Ceará-Mirim e João Câmara, que são de pequeno porte e também com uma capacidade de serviços limitada, o que demanda um maior número destes encaminhamentos para a capital do Estado. E, consequentemente, maiores dificuldades para marcação e realização destas consultas e exames.

No próprio município, tanto em Acari quanto em Taipu, são oferecidos alguns serviços especializados, tais como cardiologia, otorrinolaringologista, ultrassonografia, etc. Quanto a estes encaminhamentos, não há demora nem complicações para o atendimento.

Nos municípios de Canguaretama e Santa Cruz a realidade dos serviços de referência e contra referência são um pouco diferentes, mas também semelhantes em alguns aspectos, tais como: demora na marcação para especialistas, principalmente quando estes não são oferecidos pelo próprio município e ausência de contra referência. As diferenças estão mais relacionadas ao grau das dificuldades do que mesmo com a ausência delas. Canguaretama foi um dos municípios onde foram maiores as reclamações sobre o sistema de referência do que em Santa Cruz. Os profissionais relatam que há uma demora, mas também um atendimento de certa forma satisfatório se comparado a outros municípios de mesmo porte.

Ainda em termos de dificuldades para encaminhar e mais ainda, as dificuldades de relação entre os diversos níveis, foram marcantes também as colocações dos profissionais no que se refere à relação do PSF, principalmente com o hospital. Em Canguaretama, há quem afirme que as dificuldades são ainda maiores por que o Hospital Estadual tem uma gestão política que difere da gestão municipal e isso tem implicado também na recusa e/ou no mau atendimento às referências vindas do Programa.

Em Mossoró e Natal, os profissionais apontaram uma série de dificuldades para ter o PSF realmente como estratégia e uma delas diz respeito ao sistema de referência e contra referência. É unânime entre eles, afirmar que é um sistema de marcação bastante moroso e que a contra-referência não existe e relatam não conhecer, principalmente o médico, o quantitativo de vagas que a unidade de saúde detêm para cada tipo de procedimento ou consulta ao especialista. Ainda afirmam que solicitam, mas que a

demora é muito grande, e que muitos pacientes desistem de esperar. Contudo, também podemos verificar que na fala, em especial das enfermeiras mais antigas, é evidente que antes o PSF tinha menos dificuldades do que hoje, também no que se refere à marcação de consultas especializadas. A realidade de ambos os municípios é praticamente a mesma. E os profissionais relatam também que enquanto estão no PSF eles conseguem dar alguma resolutividade, no entanto, quando necessitam dos outros níveis do sistema, isso fica inviável, na maioria das vezes.

No tocante à contra-referência é unânime o relato de que ela não existe, não havendo, dessa forma impacto algum. Os profissionais apenas têm uma ideia do que aconteceu quando o próprio usuário relata o atendimento, ou quando apresenta a medicação que para ele foi prescrito. A ausência de contra-referência, denuncia claramente a ausência de interlocução entre os serviços e a falta de continuidade da assistência ao usuário do serviço público. Sobre esse sistema, alguns relatos dos profissionais:

Se funciona? Funciona, mas demora. Muitos médicos são daqui, mas tem umas especialidades que têm que ir para outros municípios. Quando tem que ir para outros municípios, geralmente Natal, aí é que demora mais um pouco. E os exames de rotina estão demorando demais. Eu acho que os especializados estão chegando mais rápido do que os de rotina. Não demora para marcar para fazer não, mas eles demoram para receber o resultado, está demorando até 3 meses. (E.02.06)

Aqui em Santa Cruz assim, como o município é grande, tem uma boa organização, é muito bem organizado o município. A gente consegue, por exemplo, exames de baixa complexidade, a gente pede numa semana, na outra já está aqui, às vezes na mesma semana o paciente já trás. Exames de média e alta já demoram mais um pouquinho, mas não demoram muito o absurdo que a gente vê não. Tem outros municípios que a gente vê passar um ano. Aqui não demora. (M.05.03)

Além das dificuldades impostas para o encaminhamento dos usuários aos serviços especializados, observamos também o relato dos profissionais no que se refere à falta de articulação e de trabalho integrado entre unidades de saúde e hospitais. O que também foi colocado pelos usuários, como barreiras para a acessibilidade aos hospitais:

O hospital daqui vê os postos como urgência, então a gente está remando contra a maré. Então aqui sempre tem urgência. No dia do hiperdia, no dia de pré-natal, no dia de atendimento geral, sempre aparece. E no dia que você negar atendimento e disser que é para ir para o hospital, ele manda de volta dizendo que é para eles irem para o postinho, como eles sempre dizem. O hospital se nega a atender gestante com uma urgência, com pico hipertensivo. Às vezes eu estou só aqui, o médico não está, e tem que mandar mesmo, o obstetra de lá manda de volta. Então como é que a gente vai trabalhar isso com a população, se o hospital que é quem tem que cuidar das urgências manda de volta? Muitas vezes a gente recebe desaforo dos médicos de lá por conta disso. (...) É terrível. Primeiro: daqui para o hospital eles

não gostam de atender, de jeito nenhum. Tudo eles mandam voltar para o posto. “Vá para o postinho. Vá para o postinho”. Com relação às especialidades não tem contra referência não. Eu é quem oriento “Olhe você vai para o médico, e é para mandar ele fazer isso... Você diga a ele que ele mande tudo por escrito”. Pelas especialidades não vem nada por escrito. (E.02.03)

É um jogo de joga para cá, joga para lá. Eu digo que é urgência eles mandam para cá. Eu digo que grávida sangrando é urgência e é para ir para lá. Mas eles mandam voltar. (M.02.05)

Os resultados negativos decorrentes do Programa, faz o profissional crer que não está “fazendo” como PSF, mas sim reproduzindo práticas antigas dentro de uma nova roupagem e revelam a ausência de impacto quando afirmam que, quando as ações decorrem da equipe do Programa e os problemas podem ser solucionados lá mesmo, as coisas acontecem. Porém, quando sai do poder de atuação destas equipes, o usuário não encontra continuidade, não encontra resolutividade e a atenção ao usuário fica prejudicada:

Eu acho assim que, na minha opinião, a gente... apesar da gente não trabalhar, não fazer PSF mesmo... Na minha opinião, eu vejo como estratégia, mas muito pouco funciona como estratégia... Na teoria é, mas muito pouco funciona como estratégia. Mas eu acho que dá para funcionar em algumas coisas como estratégia. Por exemplo, no caso da gestante, eu acho que funciona bem direitinho, a gente faz a captação precoce da gestante, inicia o pré-natal, o enfermeiro solicita todos os exames, pede HPV... Mas se é de alto risco, aí eu tenho que encaminhar para o pré-natal de alto risco. Aí eu vou e encaminho lá para o AMI, a Assistência Materno-Infantil aí ela é atendida pelo médico de lá. Nesse momento eu vejo que ela funciona mesmo como estratégia, a gente está promovendo saúde e contribuindo para reduzir a taxa de mortalidade infantil e materna... mas quando chega a questão do parto, eu já não vejo com bons olhos, por quê? Porque nós só temos uma referência... só temos uma Maternidade em Mossoró e é referência para toda essa região. Que é Disx-sept Rosado. Eu acho que você já viu em noticiário... Então lá... é um caos... É muita gestante, para poucos profissionais, a sobrecarga de trabalho para eles é muito alta... Aí fica aquela briga, as prefeituras dizendo que repassou o dinheiro para eles, e eles dizendo que não repassou... E vai gestantes de outros municípios para lá, aí é aquela dificuldade para ser atendida... (E03.04)

É preciso considerar que, com a ampliação do acesso na atenção básica, as pessoas vão mais ao serviço de saúde, mesmo não estando com alguma doença. Ou seja, devido ao serviço estar mais próximo, por haver uma maior conscientização da necessidade de cuidar da saúde, e por estes serviços serem historicamente difíceis de ter acesso, a população hoje procura mais assistência médica. E isso tem provocado uma sobrecarga de serviços incompatível com a demanda atualmente existente nos municípios, principalmente os de grande porte, onde são efetivamente, os desaguadouros de todos os outros municípios para os serviços de maior complexidade.

É importante registrar que os municípios que possuem serviços mais especializados e em geral realizam contratos com os demais municípios para oferecer esse tipo de serviço, repassando recursos financeiros para cobrir estas despesas. No entanto, os consórcios intermunicipais de saúde apresentam algumas dificuldades como o não cumprimento dos acordos e repasses que implicam em complicações para o atendimento dos usuários. Neste estudo, não aprofundamos essa discussão por entender que foge do foco da pesquisa, mas alguns obstáculos aqui apontados podem revelar relações com o funcionamento destes contratos.

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