• Nenhum resultado encontrado

3 O GERENCIAMENTO PROCESSUAL FRANCÊS

3.2 A CONTRATUALIZAÇÃO E O PROCESSO: O GERENCIAMENTO PROCESSUAL FRANCÊS

3.2.1 Fundamentos e justificativas

Dado o movimento de contratualização do direito, como um todo, estudado nas linhas precedentes, tem-se que, com o processo, não poderia ser diferente. A inovação que atingia todo o direito público, com a onda de contratualização das relações sociais, também atingiu o serviço público da jurisdição, e, sendo assim, atingiu a sua figura mais preciosa, o processo. O Estado não poderia ficar inerte ao desatendimento de princípios que deveriam ser determinantes no cumprimento desta atividade: a eficiência e a celeridade (duração razoável).

163

BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Convenções das partes sobre matéria processual. Ob. Cit. p. 92.

164

BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Convenções das partes sobre matéria processual. Ob. Cit. p. 90.

165

CANELLA, Maria Giulia. Gli accordi processuali francesi volti alla “regolamentazione collettiva” del processo civile. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, Milano, Giuffrè, anno LXIV, n. 2. p. 550.

O procedimento consiste numa organização de meios cuja combinação destes, no tempo e no espaço, tem a finalidade de elaboração de uma regra: a sentença166. Durante toda a evolução do processo houve uma busca pela simplificação do procedimento que permitisse a aceleração da relação processual, a fim de permitir a satisfação das exigências da lei e da boa entrega de prestação jurisdicional167.

O resultado da contratualização do processo importou na “proceduralização”168. Esta é a nomenclatura que encontramos na doutrina para este fenômeno: proceduralização, que consiste na ascensão dos princípios de processo, no direito francês, para onde a contratualização é analisada como a extensão dos princípios contratuais.

Pode-se dizer que a contratualização e o procedimento possuem uma ligação quase sistemática, dado que a contratualização consiste em um modo alternativo de produção de uma norma. O processo, por sua vez, tem a finalidade de produção de uma norma, a sentença.

Podemos encontrar, na visão de Pascal Lokiec169, virtudes da contratualização, que enumera o autor em duas: primeiramente, o contrato coloca em adequação a criação e a aplicação da normas em face dos contratantes, em contraste com a norma imposta, que, pela sua definição, não é produzida por quem as aplica; em segundo lugar, o contrato permite a contextualização da norma produzida, oposto à norma heterônoma, que é produzida e aplicada fora de contexto.

Vistas essas premissas, tem-se que a contratualização dos litígios na França não era uma novidade, afinal, vinham crescendo as soluções convencionadas dos litígios de massa (como ocorrem nas demandas que versam sobre direitos ligados a contratos de seguro170). Ou seja, já havia, no direito processual francês, a prática de contratualização, até então limitada às demandas que versavam sobre contratos de seguro.

O termo contratualização do processo, mais que à forma, refere-se ao envio do feito ao procedimento contratual171. A racionalidade que subtrai da contratualização – encarregada de fazer valer a os interesses das partes presentes – explica a atração deste modo de decidir e a legitimidade onde se respalda a norma.

166

CADIET, Loïc. Construire ensemble des débats utiles.... Ob. Cit. P. 107.

167

CADIET, Loïc. Le process civil à l’épreuve de la complexité. Ob. Cit., p. 75.

168

A nomenclatura é encontrada no texto de LOKIEC, Pascal. Contractualization et recherche d’une légitimité procédural. Ob. Cit. P. 96.

169

LOKIEC, Pascal. Contractualization et recherche d’une légitimité procédural. Ob. Cit. P. 101.

170

O exemplo é fornecido por CADIET, Loïc. Propos Introductif: “faire lien”. Ob. Cit. P. 171.

171

O direito francês carecia de uma importante mudança: dar maior ênfase à fase de negociações no processo172. Porque sem uma fase conciliatória não há como dar corpo à ideia de contratualização do processo. Importa esclarecer que se diz “contratualizar”, na França, porque não se limita a dar poderes ao juiz para o direcionamento – gerenciamento – do processo, mas a uma aproximação do juiz com as partes, com o fito de que, com cooperação, solucionem sobre os atos de procedimento. Note-se que o conceito de contratualizar o processo é diverso daquele de apenas gerenciá-lo. O juiz se aproxima das partes. A cooperação que emana da ideologia de contratualização implica alargar a possibilidade de conciliação.

Isso porque as partes deveriam conciliar, ao menos, no que concerne à tomada de uma decisão: a decisão de contratar entre si. Esta deliberação deveria advir das próprias partes.

Deve-se ao fato de que a existência de um litígio material entre as partes não é suficiente para impedir que elas consigam manejar um meio de regulamentar também o andamento do processo173. A consciência de que a divergência entre as partes se deve exclusivamente ao direito material é crucial para o sucesso da contratualização do processo.

Veja-se que a lide é o mérito, mas poderá haver concordância sobre o processo. Nada impede. As partes podem, certamente, conciliar sobre o mérito de sua demanda. Mas não é somente a solução material do litígio que pode ser matéria de conciliação; também os diferentes procedimentos, ainda que não sejam necessariamente judiciários, podem ser convencionados, pois permitem igualmente atingir a solução do litígio, ou seja, a solução judiciária sobre o litígio174.

Disso subtrai-se que a contratualização do modo de regulamentação dos litígios envolve não apenas os modos de regulamentação judiciária, mas também os modos de regulamentação extrajudicial. Mais que isso, a filosofia contratual ultrapassa o quadro dos procedimentos para, progressivamente, atingir diretamente a administração da justiça175.

No processo judicial, por sua vez, a contratualização se mostrou, assim, como um instrumento de estruturação da relação processual, ou um instrumento de gestão, informa Cadiet176. Assim, a utilização da ideologia contratual no processo supõe uma racionalidade no

172

LOKIEC, Pascal. Contractualization et recherche d’une légitimité procédural. Ob. Cit. P. 101.

173

CADIET, Loïc. Construire ensemble des débats utiles.... Ob. Cit. p. 107.

174

CADIET, Loïc. Propos Introductif: “faire lien”. Ob. Cit. p. 177.

175

CADIET, Loïc. Propos Introductif: “faire lien”. Ob. Cit. p. 173.

176

sentido de assegurar a consideração, nesta relação, do interesse das partes presentes, para o desenvolvimento das formalidades do procedimento.

Por isso que este pensamento impõe duas conclusões distintas: a primeira de que o contrato é estabelecido como base para as relações processuais futuras e, assim, mostra-se como um instrumento de estruturação das relações; a segunda conclusão de que o contrato intervém para regulamentar as relações existentes sem modificar suas estruturas, servindo como um instrumento de gestão. Ou seja: aplica-se tanto para as relações presentes, como para as relações futuras.

Essa dualidade – instrumento de estruturação ou de gestão – permite hesitar sobre a aplicação da contratualização dos modos de regulamentação do litígio. O juiz o fará sempre e de forma adequada onde o contrato se opera, a priori, como um instrumento de solução do litígio ou como um instrumento de gestão da instância. Assim, pode ser utilizado para a solução material do litígio ou para a gestão do procedimento utilizado.

Consequentemente, de um lado, os contratos relativos aos litígios são instrumentos de gestão do contencioso – solucionam o conflito de direito material. De outro, tem-se o processo, assim como o contrato, também como uma técnica de organização das pretensões jurídicas dos jurisdicionados . Cadiet177 afirma, então, que na contratualização há tanto gestão, quanto estruturação, para a regulamentação dos conflitos.

Essa conclusão decorre do fato de que o juiz assume o papel de gestor do processo, com a missão clara de adaptar o procedimento à complexidade da causa, uma vez que, consideradas as características do direito material, o juiz determinará a marcha processual, como “um regente de uma orquestra”. Nessa atividade, o juiz realiza uma avaliação de custo benefício dos atos processuais, sem que, com isso, viole o devido processo legal – as regras do jogo.

A análise do magistrado acerca da ação implicará uma observação prévia das características da demanda, para então definir o seu curso, de forma flexibilizada, realizando adaptação e flexibilização das normas de procedimento, em companhia e com a cooperação das partes. Isso permite concluir que não há violação do devido processo legal: as partes participam da formação das regras do jogo.

As reformas legislativas que possibilitaram o incremento da figura contratual no processo foram diversas178. O processo gerencial demanda um trabalho comum das partes, que atuam em conjunto, atendendo à gestão e direção do juiz.

177

CADIET, Loïc. Propos Introductif: “faire lien”. Ob. Cit. p. 176.

178

Tradicionalmente, a legalidade do processo era analisada simplesmente sob o prisma material, o que transformava o processo em um conjunto de formas a serem observadas.

O atual procedimento contratual tem a sua legitimidade plasmada em outros parâmetros. Afasta-se da legalidade pura e simples e da observância de normas irredutíveis (formalidade) e, seguindo esta linha de raciocínio, será legítimo desde que atenda ao contrato que respeite a ordem pública e os bons costumes, que seja a expressão da vontade das partes, mas, sobretudo, que seja adotado segundo um procedimento justo, como resultado de uma deliberação racional.