• Nenhum resultado encontrado

2.3 O DIREITO FUNDAMENTAL AO DEVIDO PROCESSO LEGAL

2.3.1 Histórico

O devido processo legal tem o seu berço ainda na idade média, na era feudal alemã. À época, iniciada a dinastia franca de Conrado II, e com a pretensão de obter certa estabilidade política e jurídica, é editado por este imperador o primeiro decreto em maio de 1037. Neste, cuidava-se do direito feudal e das regras de transmissão da terra, da propriedade.

48

NERY JR. Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. Ob. Cit., p. 137.

49

Dentre as normas fundamentais previstas neste decreto, destaca-se, para o presente estudo, a primeira delas, segundo a qual nenhum homem poderia ser privado de sua terra senão pelas leis do império50.

O decreto feudal germânico se põe, então, como o verdadeiro berço de um princípio do devido processo legal previsto em um ordenamento. A sua previsão no direito inglês, na Magna Carta, em 1215 – ao qual é conferido todo o crédito acerca da sua existência – nada mais é do que uma cópia daquilo que já era previsto anteriormente.

Essa transportação do princípio do devido processo legal, do nascente direito germânico para o direito inglês, deveu-se às fortes ligações políticas e familiares que uniam aqueles povos. O sistema feudal inglês adveio da conquista normanda.

Nesse contexto, o direito feudal inglês é importado conjuntamente com as normas de Conrado II, dentre as quais se destaca o Decreto Feudal de 1037.

Assim é que, a previsão da Magna Carta inglesa de 1215 não contém, necessariamente, uma inovação, mas uma verdadeira transposição daquele princípio germânico já inserido na realidade jurídica inglesa51.

A Magna Carta não continha previsões de direitos humanos, mas apenas versava sobre a relação entre rei e barões, em sua vasta maioria. Entretanto, o autor inglês Frank Barlow destaca que uma das suas principais cláusulas estava inserida no capítulo trinta e nove, prevendo, exatamente, a necessidade de um processo devido para que fossem aplicadas normas de privação de direitos52.

Sendo assim, não se pode conferir à Magna Carta inglesa a importância histórica que comumente encontramos, haja vista que não trouxe, no seu texto, algo original para a evolução do devido processo legal. De igual sorte, não contemplava uma efetivação de direito humanos, porque o processo legal fora previsto unicamente para as relações entre o Rei e os barões53. Não havia inovação, pois o poder de se impor contra o tirano – contra o próprio rei que agisse de forma contrária à lei – não era encontrado no texto inglês, mas poderia ser

50

PEREIRA, Ruitemberg Nunes. O princípio do devido processo legal substantivo. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 20: “Segundo a primeira ordenança do Imperador, nenhum homem seria provado de um feudo sob o domínio do Imperador ou de um senhor feudal (mesne lord), senão pelas leis do império (laws of empire) e pelo julgamento de seus pares (judgement of his peers).”

51

Ob. Cit., p. 23.

52

O texto original segue transcrito: “No freeman shall be arrested, or kept in prision, or disseised, or outlawed, or banished, or in any way brought into ruin – and we will not act against him – unless by the lawful judgement of his peers or by the law of the land.” In The feudal kingdom of England. 4th Ed. New York: Longman, 1988, p. 421.

53

PEREIRA, Ruitemberg Nunes. O princípio do devido processo legal substantivo. Ob. Cit., p. 53. O autor referencia que, opostamente ao que se observa nas notas de muitos doutrinadores, a demonstração histórica dá conta de que o devido processo legal tem origem germânica, tanto na sua faceta de devido processo legal substantivo, quando na faceta de devido processo legal procedimental.

subtraído do texto germânico, que impunha ao rei o respeito aos direitos individuais e, em geral, à lei54.

O princípio do devido processo legal é transportado para os Estados Unidos pela colonização inglesa no continente norte-americano. Aliás, historiadores noticiam que a cláusula do due process é primeiramente utilizada no território americano com vistas a desvencilharem-se do domínio britânico.55 O devido processo legal compõe a realidade estadunidense, inicialmente, como um princípio em face dos poderes soberanos. Aparece positivado, inicialmente, na First Virginia Charter, ou Declaração de Direitos da Virgínia.

Nos Estados Unidos, o devido processo legal atinge o seu ápice com advento da

Emenda V, haja vista que a Constituição americana então vigente (aquela de 1787), no seu

texto original, optou pela expressão “Law of the land”, não se valendo da expressão devido processo legal.

Neste momento, a sua previsão ainda não era substantiva, mas a previsão propriamente do nome “devido processo legal” permitia ilações de que a sua aplicação se restringia ao processo, e, assim, não contemplava a ideia de um devido processo legal substantivo. Esse conceito surge em momento posterior, com o advento de julgamentos que levaram à interpretação, pelas cortes americanas, dos limites do devido processo legal.

No direito brasileiro, foi positivado com a previsão expressa do inciso LIV do art. 5o da Constituição Federal, que contém a seguinte redação: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.

Além da previsão constitucional expressa, não se pode olvidar que o direito ao devido processo legal encontra-se previsto na Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 de dezembro de 1948, nos arts. 10 e 1156.57

Esta previsão também se encontra na Convenção Europeia de salvaguarda dos Direitos do Homem e das liberdades fundamentais, no art. 6º, §1º58. A doutrina francesa

54

PEREIRA, Ruitemberg Nunes. O princípio do devido processo legal substantivo. Ob. Cit. P. 54.

55

Ob. Cit. P. 99/100

56

Art. 10: Toda pessoa tem direito, em plena igualdade, a uma audiência justa e pública por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir de seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele. Art. 11. 1. Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa. 2. Ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão que, no momento, não constituíam delito perante o direito nacional ou internacional. Tampouco será imposta pena mais forte do que aquela que, no momento da prática, era aplicável ao ato delituoso.

57

Importa para o presente estudo mencionar – dado o corte epistemológico dos capítulos subsequentes – que a doutrina francesa esclarece que, na França, a Declaração Universal dos Direitos do Homem não é uma norma de observância obrigatória, mas apenas um objetivo a ser atendido. CADIET, Loïc, dir. Dictionaire de la justice. Paris : Presses Universitaires de France, 2004, p. 1093.

chama a atenção para o fato de que, dada esta previsão, é imperioso o atendimento a esta regra no direito processual francês59. Cadiet60 sustenta ainda que, em ordenamentos – ainda que europeus – cujas constituições comportam um texto mais completo, no que concerne aos direitos fundamentais processuais, a convenção tem pouca aplicação. Em países como a França, por outro lado, o texto constitucional carece de complementação a ser realizada pelo diploma europeu. A observância da convenção é obrigatória, sobretudo se considerado que o descumprimento do devido processo legal pode levar, para os países, a condenação pela Corte de Strasbourg61.