2. O JORNALISMO E A PROBLEMÁTICA DOS GÊNEROS
2.1 GÊNEROS DO DISCURSO
Todas as esferas da atividade humana, por mais variadas que sejam, estão sempre relacionadas com a utilização da língua. Não é
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No original: “Genres can be seen as constituting a kind of tacit contract between authors and readers” e “[...] are not simply features of texts, but are mediating frameworks between texts, makers and interpreters”. (Tradução nossa).
de surpreender que o caráter e os modos dessa utilização sejam tão variados como as próprias esferas da atividade humana, o que não contradiz a unidade nacional de uma língua. A utilização da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos), concretos e únicos, que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da atividade humana. O enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de cada uma dessas esferas, não só por seu conteúdo (temático) e por seu estilo verbal, ou seja, pela seleção operada nos recursos da língua – recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais –, mas também, e sobretudo, por sua construção composicional. Estes três elementos (conteúdo temático, estilo e construção composicional) fundem-se indissoluvelmente no todo do enunciado, e todos eles são marcados pela especificidade de uma esfera de comunicação. Qualquer enunciado considerado isoladamente é, claro, individual, mas cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos gêneros do discurso. (BAKHTIN, 1992, p.279)
É a partir dessa definição de Bakhtin que iniciamos a discussão sobre os
gêneros. Dela podemos depreender que todo o tipo de texto já faz parte de um
gênero do discurso e, conforme Maingueneau, é o seu uso nas diferentes instâncias
da sociedade que determina suas variações (cf. MAINGUENEAU, 2001, p.59). A
coerção que o tipo de gênero exerce sobre um determinado texto é tão importante
na sua construção e recepção que Tzvetan Todorov chega a afirmar que eles
“funcionam como ‘horizontes de expectativa’ para os leitores, como ‘modelos de
escritura’ para os autores” (1980, p.49).
Para Todorov,
numa sociedade, institucionaliza-se a recorrência de certas propriedades discursivas, e os textos individuais são produzidos e percebidos em relação à norma que esta codificação constitui. Um gênero, literário ou não, nada mais é do que essa codificação de propriedades discursivas (TODOROV, 1980, p.48).
Estas moldariam, então, tanto a esfera da produção da mensagem quanto a sua
recepção.
Numa abordagem semelhante, Maingueneau afirma que a utilização dos
gêneros é necessária por uma questão de “economia cognitiva”, pois eles fazem
parte de uma competência genérica que permite ao ouvinte/leitor identificar o texto e
situá-lo:
graças ao nosso conhecimento dos gêneros do discurso, não precisamos prestar atenção constante a todos os detalhes de todos os enunciados que ocorrem à nossa volta [...] podemos nos concentrar apenas em um número pequeno de elementos (MAINGUENEAU, 2001, p.64).
Portanto, o conhecimento do gênero é apontado pelo autor como uma competência
necessária à comunicação, figurando ao lado das competências lingüística (domínio
da língua) e enciclopédica (conhecimentos adquiridos pessoal e socialmente). Ela é
necessária tanto para uma conversa informal quanto para a redação de uma
dissertação acadêmica: “cada enunciado possui um certo estatuto genérico, e é
baseando-se nesse estatuto que com ele lidamos” (ibidem, p.44).
Para que um texto encontre êxito na escolha do gênero a ser utilizado,
Maingueneau aponta cinco condições que devem ser levadas em consideração:
“uma finalidade reconhecida”, “o estatuto de parceiros legítimos”, “o lugar e o
momento legítimos”, “um suporte material” e “uma organização textual” (ibidem,
p.66-68). As cinco condições aproximam-se muito, e algumas devem ser
especialmente destacadas aqui pela sua preocupação com a instância da recepção.
As definições de qual o objetivo e de quem é o destinatário da mensagem, por
exemplo, são preocupações que também se encontram em Bakhtin: “é sob uma
maior ou menor influência do destinatário e da sua presumida resposta que o locutor
seleciona todos os recursos lingüísticos de que necessita” [grifo no original]
(BAKHTIN, 1992, p.326). Tal escolha “depende do modo que o locutor percebe e
compreende seu destinatário, e do modo que ele presume uma compreensão
responsiva ativa” (ibidem, p.324).
O lugar e o momento legítimos referem-se a situações mais contextuais,
extradiscursivas, que são fundamentais para dar legitimidade ao discurso e que
convocam um conhecimento genérico do leitor. O autor cita, como exemplo, as
seguintes situações, que considera como “lugares normalmente ilegítimos” em
relação aos respectivos gêneros: “suponhamos que um padre reze uma missa numa
praça pública ou que um professor dê uma aula em um bar” (MAINGUENEAU, 2001,
p.66). Porém, o autor chama atenção para o fato de que “as noções de ‘momento’
ou de ‘lugar’ de enunciação exigidas por um gênero de discurso não são evidentes”
(ibidem, p.67) e também são determinadas pela finalidade do discurso.
Sobre o suporte material, Todorov e Maingueneau concordam. O primeiro
afirma que “o material impõe suas coerções às obras” (TODOROV, 1980, p.30), e o
segundo completa: “uma modificação do suporte material de um texto modifica
radicalmente um gênero de discurso” (MAINGUENEAU, 2001, p.68). Portanto, para
ambos, o texto é formado pelo todo e é inseparável do seu suporte.
A “organização textual” à qual Maingueneau se refere pode ser
aproximada à idéia de estrutura textual que Chandler apresenta quando afirma que o
“gênero provê uma importante estrutura de referência que ajuda os leitores a
identificar, selecionar e interpretar os textos” (1997)
22. A partir dessa perspectiva, o
autor percebe os gêneros como um “tipo de molde mental” (mental template),
através do qual são apresentados os fatos cotidianos. Segundo Maingueneau,
dominar um gênero do discurso é ter uma consciência mais ou menos clara dos modos de encadeamento de seus constituintes em
22 No original: “Genere provides an important frame of reference which helps readers to identify, select
diferentes níveis: de frase a frase, mas também em suas partes maiores (ibidem).
Ele cita como exemplos de modos de organização a dissertação, o provérbio, mas
também as conversas em famílias, as saudações e despedidas.
A partir dessas condições, que poderíamos chamar “coerções”,
determinantes para o êxito na utilização de um gênero do discurso, percebemos que
ele está intimamente relacionado com o contexto no qual se insere, o que nos
permite uma aproximação com a perspectiva proposta pelos pesquisadores dos
Cutural Studies. Como afirmou Raymond Williams em Marxismo e literatura, é
preciso levar em consideração, ao se tratar de gêneros, “a existência de relações
sociais e históricas claras entre determinadas formas literárias e as sociedades e
períodos nos quais foram originadas ou praticadas”, tanto quanto “a existência de
continuidades indubitáveis nas formas literárias através e além de sociedades e
períodos com os quais têm essas relações” (WILLIAMS, 1979, p.182). Jesús-Martín
Barbero também reforça essa idéia quando diz que
o gênero é um estratagema da comunicação, completamente enraizado nas diferentes culturas, por isso, geralmente, não podemos entender o sentido dos gêneros senão em termos de sua relação com as transformações culturais na história e com os movimentos sociais (BARBERO, 1995, p.65).
Essa aproximação com diversos “universos culturais” (BARBERO, 1995,
p.64) é a principal contribuição apontada por Daniel Chandler para explicar a
preferência por uma análise genérica dos textos da comunicação. Conforme o autor,
a “análise de gênero situa os textos dentro de contextos textuais e sociais,
sublinhando a natureza social da produção e leitura dos textos” e “tanto quanto
localizar textos dentro de contextos culturais específicos, a análise de gênero serve
para situá-los em uma perspectiva histórica” (1997)
23.
Porém, é ainda essa ligação muito próxima com a sociedade onde estão
inseridas que levanta diversas críticas às análises genéricas, visto que essas não
possuem uma classificação rígida e estão em constante processo de transformação.
Os gêneros, entendidos como “fenômeno histórico” (cf. CHANDLER, 1997; GOMES,
2002; PARRATT, 2003), mudam rapidamente e, por isso, “[...] a tipologia clássica
resulta insuficiente para ‘acomodar’ a enorme quantidade de variantes que estão
aparecendo continuamente fruto de sua própria transformação” (PARRATT, 2003)
24.
Essa estreita ligação entre gênero e o contexto sócio-histórico em que se
encontra explica os diferentes gêneros que nascem ao longo dos anos, tais como a
epopéia, as tragédias, os romances ou, em se tratando de meios de comunicação,
as revistas semanais, os talk-shows e os fait divers.
As tipologias dos gêneros de discurso se contrapõem, desse modo, às tipologias comunicacionais por seu caráter historicamente variável [...] Poderíamos, assim, caracterizar uma sociedade pelos gêneros de discurso que ela torna possível e que a tornam possível. (MAINGUENEAU, 2001, p.61).
E Todorov complementa: “como qualquer instituição, os gêneros evidenciam os
aspectos constitutivos da sociedade a que pertencem” (1980, p.50).
São justamente essas “continuidades”, no entender de Williams (1979), ou
“formas estáveis”, como afirma Bakhtin (1992), que perduram apesar das
transformações da sociedade, adaptando-se a elas, que nos permitem falar de
gêneros. Apesar das críticas, é possível defender a legitimidade desse estudo
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No original: “Genre analysis situates texts within textual and social contexts, underlining the social nature of the production and reading of texts” e “As well as locating texts within specific cultural contexts, genre analysis also serves to situate them in a historical pespective”. (Tradução nossa)