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Capítulo I – E a igreja se fez empresa: conceito e funcionamento da igreja empresarial

1.2 A gênese da igreja empresarial

A história do cristianismo pode ser explicada de muitas maneiras, que englobam uma série de fatores que não serão tratados aqui, como a intervenção divina, a fé e as revelações. A exclusão destes atributos espirituais no presente tópico visa apenas manter o foco na igreja empresarial, inserida no mercado religioso. Aspectos mercadológicos como concorrência, monopólio e inovação são utilizados para explicar brevemente a trajetória cristã até o final do século XX, gênese da igreja empresarial.

A concorrência de outras opções religiosas, como o judaísmo e o paganismo, contribuiu para que o cristianismo buscasse uma identidade própria rapidamente. Expulsos das sinagogas e perseguidos pelos pagãos, os cristãos souberam aproveitar sua mensagem única para se expandir dentro do mundo romano. E foi uma ascensão digna de nota. Da crença dos martirizados nas arenas, o cristianismo se tornou a religião oficial do Império Romano em menos de quatrocentos anos de existência. O imperador Constantino instituiu a liberdade de religião para o cristianismo em 313 d.C. Doze anos depois, presidiu o primeiro Concílio da cristandade, realizado em Nicéia. Stark (2006, p.231) atribui este sucesso ao compromisso dos primeiros cristãos:

O cristianismo não cresceu em decorrência de um milagre ocorrido no mercado (embora muito de milagre deva ter ocorrido), ou porque Constantino disse que devia, ou mesmo porque os mártires lhe conferiram credibilidade. Cresceu porque os cristãos constituíam uma intensa comunidade, capaz de gerar a “invencível obstinação” que tanto desagradava Plínio, o Moço, mas que resultou em imensas

recompensas religiosas. E os meios fundamentais de seu crescimento foram os esforços conjuntos e motivados do crescente número de fiéis cristãos, que convidavam seus amigos, parentes e vizinhos para compartilhar a “boa nova”.

Apesar de não ser a única causa para o crescimento da religião cristã, é inegável que a política facilitou sua hegemonia. Em 381 d.C., Teodósio oficializou o cristianismo em todo o Império Romano. Estava inaugurado o monopólio17 religioso com a única representante cristã na época, a Igreja

Católica Apostólica Romana.

Foi um longo monopólio, de 113618 anos. Em comparação às empresas

modernas, nenhuma organização conseguiu ter a longevidade da Igreja Católica e tampouco uma situação tão favorável por tanto tempo. Somente nos últimos 500 anos, o catolicismo teve que enfrentar novas situações de mercado: um oligopólio19 compartilhado com os protestantes e, a partir do

século XX, a concorrência monopolista20 com os pentecostais em todo o globo. A Reforma Protestante teve início em 1517, com a fixação das 95 teses de Lutero na catedral de Wittenberg. Seu discurso combatia as indulgências promovidas pelo papa, que prometiam até a libertação do inferno em troca de dinheiro e penitências. Ao invés das obras, Lutero propôs um sistema de salvação baseado exclusivamente na fé individual. Essa inovação buscava eliminar o processo de barganha empreendido pelos fiéis com a igreja, com os santos e, em última instância, com Deus. Calvino daria mais um passo ao propor que a salvação era fruto da predestinação divina, independente das atitudes do indivíduo. De forma geral, a racionalização típica dos reformadores tentou banir definitivamente o misticismo da prática cristã.

Para a configuração do mercado, o mais importante resultado da Reforma foi a quebra do monopólio católico pelos protestantes. Não que o catolicismo medieval não tivesse concorrentes: o paganismo, a bruxaria e o

17 Monopólio puro: somente uma empresa fornece um certo produto ou serviço em determinado país ou região (KOTLER, 2000, p.242).

18 Diferença entre 1517, início da Reforma Protestante, e 381, ano da oficialização do cristianismo no Império Romano.

19 Oligopólio: uma pequena quantidade de (geralmente) grandes empresas que fabricam produtos que variam de altamente diferenciados a padronizado (KOTLER, 2000, p.242). A Reforma Protestante possibilitou o aparecimento, em um primeiro momento, das igrejas Luterana, Calvinista e Anglicana.

20 Concorrência monopolista: muitos concorrentes são capazes de diferenciar suas ofertas no todo ou em parte (KOTLER, 2000, p.242). É o que acontece atualmente com o pentecostalismo e o neopentecostalismo.

satanismo ofereciam uma concorrência direta à crença cristã. Contudo, estes eram produtos de um “mercado negro”, marginalizado e segregado pela sociedade. Mesmo a presença do judaísmo e a expansão do islamismo não derrubaram o monopólio da Igreja Católica, antes uniram a cristandade em um propósito único de aniquilação do concorrente. A inovação da Reforma foi trazer uma proposta com a mesma validade cristã do catolicismo. Ou melhor, os reformadores apresentaram seu conteúdo como sendo o verdadeiro cristianismo, esquecido há muito tempo pelas indulgências e pela corrupção que assolavam a Igreja Católica.

É necessário dizer que nem tudo foi conquistado simplesmente pela racionalidade protestante. Novamente, o contexto político favorecia uma mudança no mercado religioso. Parte dos príncipes europeus estava descontente há muito tempo com o poderio e a intervenção do catolicismo em seus reinos. Uma nova religião, mas ainda assim cristã, era o subterfúgio ideal para fortalecer a monarquia, aumentar as riquezas através da espoliação de mosteiros e resgatar territórios21.

Além de influenciar o campo político, a teologia protestante favoreceu a consolidação de um novo modelo econômico. Max Weber trabalhou as justificativas calvinistas para a busca da riqueza, entendida como uma forma de glorificar a Deus. A obtenção sacralizada do lucro foi uma importante contribuição para o avanço do sistema capitalista, o palco ideal para a igreja empresarial. Entretanto, a mesma teologia reformada barrou uma importante quebra de paradigma para o mercado. Deus sempre foi o centro do pensamento reformado: absolutamente soberano em seu controle da criação, Deus escolheu os salvos e os caídos antes mesmo da fundação do mundo. Aos homens, restava apenas saber se eram predestinados para a salvação ou para a danação. Enfim, a teologia reformada não oferece ao homem o atributo da escolha, caráter imprescindível para o funcionamento do mercado moderno.

21 Inclusive, o termo secularização vem justamente da prática de tornar as sacras terras pertencentes à Igreja Católica em seculares, ou seja, submetidas ao poder temporal. “Desde 1410, as terras da ordem Prussiana (Prússia, Livônia, Curlândia e Estônia) eram um feudo da Polônia. O grão-mestre Albrecht Von Brandenburg recusou-se a prestar o juramento de vassalo, o que em 1519 levou a uma guerra contra a Polônia. Nessa situação, Lutero aconselhou o grão-mestre a secularizar as terras da ordem” (LENZENWEGER; STOCKMEIER; BAUER & et al., 2006, p.226).

Outra mudança importante no mercado aconteceu com o nascimento do Estado laico. A liberdade de culto assegurada nas jovens constituições garantia a sobrevivência legal dos missionários protestantes e das suas comunidades nos países dominados até então pelo catolicismo. Sem a regulação da religião pela esfera estatal, o mercado religioso tornou-se verdadeiramente livre. Entretanto, os protestantes não atingiram um crescimento expressivo dentro da maioria destes países. Vários fatores podem ser listados, como a rigidez dos modelos teológicos, a falta de percepção dos elementos da religiosidade local e até o reduzido número de missionários. O fato é que não foram os protestantes, com a alcunha de históricos, que modificaram definitivamente o mercado religioso.

Foi o pentecostalismo que lançou as bases para a indiscriminada proliferação de agências de salvação, o que contribuiu para o pluralismo religioso. Imerso em um século XX totalmente conquistado pela modernidade, o pentecostalismo teve que lidar desde o início com a concorrência religiosa. Movimento de negros e pobres, não era bem visto por católicos e protestantes devido a suas extravagantes manifestações espirituais e sua teologia, baseada na atualidade dos dons do Espírito Santo. Rapidamente, vários cismas ocorreram em virtude da ênfase na revelação e no carisma pessoal em detrimento à tradição.

Além disso, o livre-arbítrio, pregado nos púlpitos pentecostais, mudou o eixo de escolha da salvação. Não é mais Deus quem escolhe os salvos, mas os homens que escolhem a salvação. O pentecostalismo lançou o consumidor religioso moderno, soberano em seu poder de decisão. Ainda assim, a teologia pentecostal apresentava um entrave relevante. O ascetismo, herdado do puritanismo, não permitia que este consumidor tivesse muitas escolhas além da sua salvação. O distanciamento do mundo impediu os pentecostais de tomarem várias opções de consumo, constituindo-os uma classe à parte para a maioria das empresas e da mídia. Tampouco a igreja pentecostal poderia se contaminar com estratégias que não fossem reveladas diretamente pelo Espírito Santo.

A configuração atual do mercado só foi atingida com o surgimento do neopentecostalismo, no final do século XX. Ainda voltado a pobres e marginalizados, este movimento não buscou retirá-los do mundo, mas inseri-los

na sociedade de consumo com suas promessas milagrosas. A igreja neopentecostal foi a primeira a adotar o modelo empresarial para se expandir. Paulatinamente, estruturas mais conservadoras, mas com ambição para o crescimento, passaram a se inspirar neste modelo.

Encontram-se duas forças agindo em toda a história do mercado religioso: a secularização e o pluralismo. Muitos teóricos, como Steve Bruce e Peter Berger, defendem que todos os fatores da secularização ocidental surgiram ou foram fortalecidos com a Reforma Protestante. Os reformadores, a exemplo dos profetas do Antigo Israel, buscaram retirar o misticismo da vida cristã. E com ele, outros elementos primordiais para a vida religiosa foram abandonados na prática protestante, como apontado por Berger (2004, pp.124- 125):

Simplificando-se os fatos, pode-se dizer que o protestantismo despiu- se tanto quanto possível dos três mais antigos e poderosos elementos concomitantes ao sagrado: o mistério, o milagre e a magia. [...] O católico vive em um mundo no qual o sagrado é mediado por uma série de canais – os sacramentos da Igreja, a intercessão dos santos, a erupção recorrente do “sobrenatural” em milagres – uma vasta continuidade de ser entre o que se vê e o que não se vê. O protestantismo aboliu a maior parte destas mediações. Ele rompeu a continuidade, cortou o cordão umbilical entre o céu e a terra, e assim atirou o homem de volta a si mesmo de uma maneira sem precedentes na história. [...] Um céu onde não há mais anjos está aberto à intervenção do astrônomo, e eventualmente, do astronauta. A Reforma Protestante ainda teria outra consequência muito importante. A conquista violenta pela liberdade de culto levou a um descrédito da missão pacificadora e civilizadora do cristianismo, que foi substituído pela ciência como agente responsável por um futuro melhor:

A religião não mostrara o caminho para sair do inferno da guerra. Antes, a disputa religiosa pela verdade única foi um fator importante na Guerra dos Trinta Anos. A paz só podia ser concluída deixando-se a fé de lado. O cristianismo se mostrara incapaz de paz. Com isso, decididamente perdera credibilidade, de modo que cada vez menos formava o vínculo decisivo religioso, cultural, político e social da Europa. Assim, contribuíra para o processo de desligamento da religião, de secularização, de crescente mundanismo que determinaria de modo decisivo o caráter da nova era – a modernidade. Uma nova cultura secular estava se formando (KÜNG, 2002, p.177).

Steve Bruce é um dos defensores do paradigma da secularização, segundo o qual este fenômeno é irreversível e enfraquece a dinâmica religiosa. Bruce (2010, p.127) apresenta brevemente as fontes de secularização em 6 esferas (em negrito), constituídas por diversos fatores (em itálico). As citações a seguir, tanto de Bruce como de outros autores, expõem os aspectos mais relevantes do paradigma para esta dissertação:

1. Racionalização (R)

Monoteísmo (R1), Racionalidade (R2), Ciência (R3), Tecnologia (R4)

Tão grande processo histórico no desenvolvimento das religiões – a eliminação da magia do mundo, que começara com os antigos profetas hebreus e juntamente com o pensamento científico helenístico - repudiou todos os meios mágicos para a salvação como sendo superstição e pecado atingindo aqui [dentro do calvinismo] sua conclusão lógica (WEBER, 2001, p.88).