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Capítulo I – E a igreja se fez empresa: conceito e funcionamento da igreja empresarial

6. Estilo Cognitivo (CS em inglês)

1.5 Os consumidores da igreja empresarial

Dois casos exemplificam a transformação no eixo de poder empreendido pelo mercado, que foi transferido do produtor para o consumidor44. Durante a

época do monopólio católico, a separação entre fiel e igreja se dava unicamente através da excomunhão, prerrogativa unilateral e exclusiva da esfera eclesiástica. Não havia a preocupação com a diminuição do número de fiéis ou mesmo com a opinião pública. Como o dogma católico afirma que fora da igreja não há salvação, a excomunhão era uma tragédia devastadora. Além da negação à vida eterna, o excomungado via-se privado da vida social e até do poder temporal. Um caso emblemático é o do rei germânico Henrique IV, excomungado pelo papa Gregório VII em virtude da nomeação de bispos pelo monarca. Küng (2002, pp.119-120) narra o episódio:

Gregório chocou o mundo excomungando e depondo o rei, suspendendo todos os bispos que o apoiavam e liberando os súditos de seu juramento de fidelidade. No fim, o rei Henrique capitulou. Abandonado por seus bispos e príncipes, atravessou os Alpes no rigoroso inverno de 1077, com sua jovem mulher, seu filho de dois anos e sua corte, e foi se postar descalço, vestido de penitente, na frente do castelo de Canossa no sopé dos Apeninos. Lá, pediu perdão ao papa. A princípio, Gregório não se comoveu, mas, depois de Henrique ter-se penitenciado por três dias, e a pedido de Mathilde, senhora do castelo e abadessa superiora de Cluny, o papa reintegrou Henrique.

Em 2009, um caso bem diferente chocou o Brasil. Após a comprovação do estupro pelo padrasto, uma menina de 9 anos foi submetida a um aborto por uma equipe médica em Pernambuco. A gravidez, de gêmeos, mostrou-se de alto risco para a vida da gestante. Mesmo com o embasamento legal – estupro e risco para a mãe – o arcebispo de Olinda e Recife, dom José Cardoso Sobrinho, resolveu excomungar a equipe médica e a mãe da menina, que pediu pelo procedimento. A revolta de parcela da população foi ainda maior pelo clérigo não ter excomungado o estuprador45. Em todas as suas decisões,

44 Essa transferência de poder não é exclusividade da dinâmica religiosa. Com o aumento do número de concorrentes, a razão de troca favorece sempre o consumidor. O fato é observável em todos os mercados pluralistas.

45 Segundo o arcebispo, em reportagem online do portal G1: “Ele cometeu um crime enorme, mas não está incluído na excomunhão", afirmou Sobrinho. "Esse padrasto cometeu um pecado gravíssimo. Agora, mais grave do que isso, sabe o que é? O aborto, eliminar uma vida inocente”. Disponível em: http://g1.globo.com/Noticias/Brasil/0,,MUL1031860-5598,00- ARCEBISPO+DIZ+QUE+SUSPEITO+DE+VIOLENTAR+MENINA+NAO+PODE+SER+EXCOM UNGADO.html. Acesso em 13 ago. 2010.

o arcebispo foi apoiado pelo Vaticano. Já a equipe médica recebeu apoio da mídia e do presidente da República na ocasião, Luís Inácio Lula da Silva. As declarações dos médicos demonstram como a excomunhão e, consequentemente, o poder eclesiástico estão enfraquecidos. De acordo com o portal G1 (2009)46:

“Graças a Deus estou no rol dos excomungados”, disse a diretora do Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), Fátima Maia. Católica, ela disse ter agido como diretora de um instituto de referência no estado para atendimento à mulher vítima de violência sexual, mas pessoalmente também não tem nenhum arrependimento. “Abomino a violência e teria feito tudo novamente. O Cisam fez e vai continuar fazendo, estamos qualificados para esse tipo de atendimento há 16 anos”.

Católico de batismo, não praticante, o gerente médico do Cisam, Sérgio Cabral, um dos que participaram da interrupção da gravidez de 15 semanas da criança, frisou não ter nenhum problema de consciência. “Estou cumprindo um trabalho perante a população pobre de Pernambuco que só tem o Sistema Único de Saúde para resolver seus problemas”.

Atualmente, a excomunhão parece assustar somente os católicos fervorosos. Para a maioria da população, não é a igreja que decide sobre sua filiação. Se determinada igreja não aceita alguns comportamentos, caros ao indivíduo, deve-se procurar outro fornecedor religioso. E isso não acontece somente com o catolicismo. Por exemplo, existem diversas denominações evangélicas voltadas ao público homossexual, que inclusive já abençoaram uniões de pessoas do mesmo sexo. Só existem igrejas adaptadas “ao gosto do freguês” porque entende-se que a religião é uma questão privatizada. Nenhum texto, mesmo revestido com o sagrado, nenhuma confessionalidade e nenhum Estado estão acima da preferência do indivíduo. Sem dúvida, a Reforma Protestante contribui diretamente para esta mudança: a mesma consciência que serviu para Lutero afirmar sua nova teologia, serve agora para que outras novas teologias sejam alçadas ao status de verdade, mesmo que seja uma verdade particular.

46 Disponível em http://g1.globo.com/Noticias/Brasil/0,,MUL1031521-5598,00- EQUIPE+MEDICA+EXCOMUNGADA+DIZ+QUE+NAO+ESTA+ARREPENDIDA.html. Acesso em 13 ago. 2010.

Que a privatização religiosa é própria da modernidade é um argumento sem discussão. Entretanto, José Casanova postulou, em 199447, que estaria

em curso uma desprivatização da religião, com igrejas mantendo-se relevantes no ambiente público, como a política. Entretanto, essa tendência é alvo de debates e alguns sociólogos já a consideram ultrapassada:

O fato novo, apresentado por ele como uma inflexão significativa a ponto de inaugurar novos tempos, era que a religião como affair privado, individual ou de família, estava saindo de uma sufocação histórica que lhe fora impingida pela modernidade ocidental. Para ele, em palavras minhas, era como se a contemporaneidade religiosa houvesse perdido um componente substancial da definição de sua modernidade, mas tudo bem. Li aquilo vários anos depois de sua publicação. E, claro, diante do chá de sumiço que tomou a teologia da libertação na América Latina depois dos anos de 1980, e do beco- sem-saída de impopularidade em que se meteu o fundamentalismo islâmico com os sucessivos ataques terroristas no final do século, quero crer que não é preciso que seja eu a dizer que o tour de force de José Casanova envelheceu precocemente, ficou datado (PIERUCCI, 2008, p.11).

A privatização apenas é possível em um cenário fortemente marcado pelas três características atuais do mercado: secularização, pluralismo e competitividade. Como explicado anteriormente, esses fatores possibilitam que a razão de troca esteja nas mãos dos consumidores e não das instituições religiosas.

Os efeitos da situação pluralista não se limitam aos aspectos socioestruturais da religião. Elas afetam também os conteúdos religiosos, isto é, o produto das agências religiosas de mercado. [...] Enquanto as instituições religiosas ocuparam uma posição de monopólio na sociedade, seus conteúdos podiam ser determinados de acordo com qualquer saber teológico que parecesse plausível e/ou conveniente para a liderança religiosa. [...] A situação pluralista, todavia, introduz uma nova forma de influências mundanas, provavelmente mais poderosa para modificar conteúdos religiosos do que as antigas formas, como os desejos de reis ou os capitais investidos de classes: a dinâmica da preferência do consumidor (BERGER, 2004, p.156).

A privatização tem como resultado direto a infidelidade religiosa por parte da população. Se um único fornecedor não suprir todas as suas necessidades, o fiel pode contar com duas ou mais igrejas simultaneamente.

47 A fundamentação de José Casanova encontra-se na obra Public religions in the modern world.

Sem compromisso institucional, o consumidor pode se dedicar ao trânsito religioso. Ronaldo de Almeida (2004, p.17) apresenta um relevante resultado: “em um recente survey realizado pelo Centro de Estudos da Metrópole (CEM), na RMSP48 no primeiro semestre de 2003, nada menos do que uma em cada

três pessoas já havia mudado de religião”. Outra pesquisa, de Lísias Nogueira Negrão (2008, p.124), complementa esse quadro:

Pelos levantamentos realizados nos domicílios, verificou-se que 389 dos 1064 moradores que declararam ser religiosos, ou seja, 38% do total, haviam mudado de religião ao menos uma vez. Quanto à não- exclusividade, 122 (11%) declararam participação ou cultivo de crenças de dois ou mais grupos religiosos de referência. [...] Um primeiro aspecto chama a atenção quanto aos religiosos dúplices. Entre eles aparecem as duplicidades já constatadas desde princípios do século passado, ou mesmo antes disso, como a católica/espírita (quarenta casos, ou 10% do total) e a católica/afro-brasileira (nove casos, ou 2%). Mas aparecem também outras duplicidades francamente inusitadas, como a dos católicos/protestantes, com uma frequência tão ou mais alta que as tradicionais (34 casos, ou 9%), além de duplicidades com religiões orientais e esoterismos, e combinações de mais de duas religiões, também com frequência relativamente elevada (31 casos, ou 8%). Pode-se dizer, portanto, que na atualidade as duplicidades não só se mantêm como aumentam e se diversificam.

Para explicar o trânsito religioso, Stark e Bainbridge (2008, pp.288-289) oferecem um conjunto de proposições:

Proposição 230: pessoas com necessidades intensas e insatisfeitas de recompensas relativamente específicas tendem, mais que outras, a tornarem-se buscadores religiosos.

Proposição 231: pessoas com necessidades intensas e insatisfeitas de recompensas relativamente específicas – raras ou inexistentes - tendem, mais que outras, a tornarem-se buscadores religiosos crônicos.

Proposição 233: buscadores religiosos que já experimentaram muitos ciclos de afiliação e desfiliação tendem a permanecer em uma busca crônica.

A própria dinâmica das igrejas empresariais faz surgir a infidelidade49. É

natural aos empresários da fé certo índice de fracasso, justamente por oferecer

48 Região metropolitana de São Paulo.

49 Da atividade de consumo não emergem vínculos duradouros. Os vínculos que conseguem se estabelecer no ato do consumo podem ou não sobreviver ao ato; podem manter os enxames unidos pela duração do voo (ou seja, até a próxima mudança de alvo), mas são reconhecidamente determinados pela ocasião, sendo frágeis e leves, com pouca influência, se é que possuem alguma, sobre os próximos movimentos das unidades, ao mesmo tempo em

recompensas específicas e facilmente verificáveis. Ao consumidor insatisfeito resta peregrinar pelas igrejas empresariais. E, de acordo, com Stark e Bainbridge, esse comportamento torna-se vicioso (proposição 233). Há também a opção da filiação em uma igreja convencional. Contudo, sua oferta é de caráter tão geral e conquistada tão demoradamente, que acaba por perder a atratividade para os migrantes da fé, já acostumados com promessas em ritmo express.

Não surpreende que a figura do peregrino, proposta por Danièle Hervieu-Léger (2005, pp.109-110), seja tão bem sucedida atualmente:

O que distingue de maneira decisiva a figura do praticante da do peregrino diz respeito ao grau de controle institucional de que um e outro são objeto. O praticante conforma-se com disposições fixadas, que têm, assim, um caráter de obrigação para o conjunto dos fiéis. Mesmo quando a observância é solitária, ela conserva uma dimensão comunitária. A prática peregrina é pelo contrário uma prática voluntária e pessoal. Ela implica uma escolha individual, que permanece em primeiro plano mesmo no caso em que a peregrinação toma uma forma coletiva. [...]

A figura do praticante e a do peregrino opõem-se enfim na medida em que incarnam (sic) dois regimes claramente distintos do tempo e do espaço religioso. A primeira está estreitamente ligada à estabilidade territorial das comunidades. [...] Prática excepcional, a peregrinação define um momento de intensidade religiosa que não se inscreve nos ritmos da vida ordinária e rompe com o ordenamento regular do tempo das observâncias praticantes.

A infidelidade é o pesadelo de qualquer empresa. Um dos princípios de marketing afirma que conquistar um cliente é muito mais caro do que manter um. A infidelidade força o produtor a sair de sua zona de conforto, seja investindo em pesquisas ou em propaganda, seja promovendo descontos ou dando brindes. De qualquer forma, a lucratividade e o poder da empresa estão ameaçados. Por isso, somam-se tentativas, por vezes desesperadas, de conquistar a fidelidade dos consumidores.

Algumas igrejas empresariais recorrem aos cultos direcionados contra os mais diversos males. Por exemplo, na segunda-feira acontece a Vigília das Grandezas de Deus, para a vida financeira, na Universal. A sexta-feira é o dia da Reunião de Libertação e assim, durante toda a semana, há o convite para a participação em uma ou mais reuniões diárias. Nesta estratégia, todas as áreas que iluminam muito pouco, se é que chegam a iluminar, suas histórias passadas (BAUMAN, 2008, p.101).

da vida ficam dependentes da ação eclesiástica. O fiel é incentivado a ir todos os dias à igreja sob pena de estar desprevenido contra a ação maligna ou perder o seu milagre. Manter o cliente constantemente impactado pela sua mensagem possibilita à igreja um controle maior do poder de escolha do público. Sem tempo para conferir outras opções religiosas, o fiel acaba se acomodando à rotina imposta pela denominação.

As campanhas e jejuns também auxiliam na manutenção dos fiéis. Como anteriormente descrito, essas estratégias tornam-se oportunidades sucessivas para o tão sonhado milagre acontecer. Desta forma, a porta da esperança é aberta repetidas vezes. E o fiel tem que estar no templo ou em frente à televisão quando a porta se abrir. O problema é que estas estratégias são facilmente copiadas. A Universal foi pioneira em solo brasileiro na maior parte das ações mercadológicas. Sua atuação foi tão bem sucedida que os concorrentes, principalmente a Internacional e a Mundial, simplesmente copiaram seu funcionamento. A cópia acaba por diminuir a diferenciação entre os produtores, comprometendo ainda mais a fidelidade dos membros.

Não há sanções efetivas que as igrejas possam realizar contra seus consumidores infiéis. Como demonstrado no começo deste tópico, o catolicismo exerce a excomunhão, mas muitos católicos se mostram indiferentes à penalidade. Nas igrejas empresariais observam-se duas ações: a suposta perda de vantagens e o uso de maldições. Muitos líderes apelam para sua eficácia: caso o fiel retire-se de suas fileiras, não poderá aproveitar os poderes sobrenaturais do empresário, que seriam pessoais e intransferíveis.

Apesar de controlar a razão de troca, o consumidor nem sempre obtém ganhos ao trocar continuamente de denominação. O investimento, seja de ordem psíquica ou financeira, sempre existe. Se não obtiver a recompensa que procura antes de abandonar determinada igreja, todo este investimento será contabilizado como perda. É possível, inclusive, que um cliente obtenha somente custos e nenhuma recompensa em sua trajetória de infidelidade. Neste caso, ele pode optar pela recusa em participar do mercado religioso (ateísmo) ou ainda continuar no mercado, mas desenvolvendo uma fé absolutamente particular.

Como exposto neste capítulo, a igreja empresarial enfrenta diversas dificuldades. Suas ofertas milagrosas, baseadas na magia, são constantemente testadas pelo poder público, a mídia e por grande parcela da população. E, muitas vezes, os empresários da fé não conseguem manter um perfil ilibado, sendo acusados e presos por diversos artigos penais. A estes problemas, somam-se o intenso trânsito religioso e os constantes cismas, que inserem novos competidores no mercado. Estes fatos acabam por colocar a igreja empresarial em dois graves desafios: de credibilidade e de fidelidade. A principal estratégia é revestir-se de uma áurea própria da religião, com a adoção de personagens e passagens bíblicas para justificar diversas práticas, além dos títulos eclesiásticos para os líderes.

Entretanto, o funcionamento da igreja empresarial não está baseado somente na magia. Os empresários da fé utilizam ferramentas mais modernas para se expandir, principalmente o marketing. Através das estratégias mercadológicas, estas organizações buscam oferecer produtos atrativos, levantar altas receitas, aumentar seus pontos de venda (templos) e ainda inserir-se de forma eficaz na mídia. Tudo isso para satisfazer seus consumidores e garantirem uma sobrevivência lucrativa no competitivo mercado religioso.

O próximo capítulo apresenta o histórico, as crises e as soluções encontradas por uma igreja empresarial, a Igreja Mundial do Poder de Deus. Comandada pelo apóstolo Valdemiro Santiago, a denominação detém 22 horas diárias da programação do Canal 21. Sua principal oferta é a cura divina, produto que atrai multidões a sua sede e aos eventos realizados. Mas a igreja enfrenta desafios de credibilidade e fidelidade, traçando algumas estratégias para minimizar seus efeitos negativos.

Capítulo II – A voz do que clama na mídia: a história da Igreja