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Capítulo 1 A IMPORTÂNCIA DA CONSCIÊNCIA JURÍDICA: O

1.3 O DIREITO E A CIÊNCIA

1.3.2 A ciência jurídica moderna e seus dualismos

1.3.2.2 Generalidade e abstração

Outro aspecto interessante do direito, enquanto ordenamento jurídico normativo, diz respeito à outra clássica caracterização dualística. Trata-se da generalidade e abstração conferida à norma jurídica e que desempenha função legitimadora dentro da estrutura orgânica do direito ocidental moderno. Como diria Norberto Bobbio, essa é uma dentre muitas das formas de distinção da norma.

Nesse domínio, o jusfilósofo italiano explica que as normas jurídicas – em sendo proposições prescritivas – possuem dois elementos constitutivos necessários: o sujeito (ou destinatário) a quem a norma se dirige e o objeto da prescrição, a ação prescrita.70

Com isso, aborda a questão do dualismo (geral e abstrato) de forma crítica. Primeiro, de antemão, alerta para a confusão entre os dois termos, quando aplicados pela ciência jurídica. São sinônimos ou distintos?71 Vale observar, rapidamente, que Kelsen, por exemplo, nesse terreno, realiza uma abordagem ligeiramente diferente. As normas regulam atos humanos e, por isso, possuem um elemento pessoal (validade pessoal) e um elemento material (validade material), “o homem, que se deve conduzir de certa maneira, e o modo ou forma por que ele se deve conduzir.”72 Contudo, apesar disso, ele parece não fazer distinção, senão interna, entre os termos geral e abstrato. “A norma geral, que liga a um fato abstratamente determinado uma conseqüência igualmente abstrata, precisa, para poder ser aplicada, de individualização.”73

Além dos mais, Bobbio demonstra a inconsistência desse dualismo “porque colocando em evidência os requisitos da generalidade e da abstração, faz crer que não haja normas

70 BOBBIO, op. cit., 2008, p. 178. 71 Ibid., p. 180.

72 KELSEN, op. cit., 1998, p. 15. 73 Ibid., p. 256.

jurídicas individuais e concretas.”74

Sendo assim, esses requisitos não podem ser elevados a requisitos essenciais da norma jurídica.75

Justamente, por isso, prefere distinguir os dois termos, chamando de “'gerais' as normas que são universais em relação aos destinatários, e 'abstratas' aquelas que são universais em relação à ação.”76

Com isso, pode-se notar que a generalidade e abstração da norma jurídica, em sendo produto da concepção liberal, sobretudo do século XIX77, têm por objetivo explícito a ideia de igualdade, pois as normas jurídicas devem ser gerais por normatizar a sociedade como um todo e, portanto, norma alguma pode ser endereçada a alguém em especial (seja em benefício ou desfavor).

Entretanto, implicitamente, como nos explica Antonio Carlos Wolkmer,

[...] o moderno Direito Capitalista, enquanto produção normativa de uma estrutura política unitária, tende a ocultar o comprometimento e os interesses econômicos da burguesia enriquecida através de suas características de generalização, abstração e impessoalidade. Sua estrutura formalista e suas regras técnicas dissimulam as contradições sociais e as condições materiais concretas.78

Logo em seguida, com base nas lições de Della Torre Rangel, conclui:

[...] pretendendo ser um Direito igual e supondo a igualdade dos homens sem ter em conta os condicionamentos sociais concretos, produz uma lei abstrata, geral e

74 Idem. Note que Kelsen também assim entende, pois reconhece as normas individualizadas. [vide nota anterior]

75 Ibid., p. 181.

76 Ibid., p. 180-181. Nesse sentido, reconhecendo que “nem toda norma jurídica é abstrata”, veja, também: FERRAZ JÚNIOR, op. cit., 1994, p. 122.

77 Ibid., p. 122-123.

impessoal. 'Ao estabelecer uma norma igual e um igual tratamento para uns e outros, o Direito Positivo Capitalista, em nome da igualdade abstrata de todos os homens, consagra na realidade as desigualdades concretas'.79

Assim, também, Tercio Sampaio enfatiza que em se tratando de um estudo dogmático de direito – por este estar ligado a uma dupla abstração, que separa normas e regras de seus condicionamentos zetéticos e uma abstração, em grau ainda maior, quando o jurista estabelece as regras sobre as regras de interpretação normativa –, tal estudo incorre em um problema decisivo, “o risco de distanciamento progressivo da própria realidade social.”80

Bobbio é ainda mais enfático acerca da crítica da abstração. Para ele, a teoria que considera a abstração e a generalidade como requisitos essenciais da norma jurídica tem “uma origem ideológica e não lógica”81

. Ou seja, tais requisitos não dizem respeito à “norma jurídica tal como é, mas do que deveria ser para corresponder ao ideal de justiça, no qual todos os homens são iguais, todas as ações são certas”.82

Com isso, nesse sentido, analisando cada um dos requisitos em particular, explica que com referência ao geral a finalidade seria a igualdade e quanto ao abstrato a certeza. “Assim, como a generalidade da norma é garantia de igualdade, a abstração é garantia de certeza.”83

Sendo assim, torna-se fácil compreender como a moderna concepção de Estado identificada e uniformizada pelo direito tem sido influenciada, em nome da certeza e da igualdade, ocultando assim o ordenamento jurídico real em detrimento daquele ideal factível apenas no plano teórico. Como Kelsen adverte: “uma norma geral pressupõe necessariamente uma igualdade de casos que na realidade não existe.”84

Por fim, vale citar Roberto Aguiar. Conforme as suas

79 DELLA TORRE RANGEL, Jesus Antonio. El derecho que nace del pueblo. México: CIRA, 1986, p. 26-34 apud. WOLKMER, Ibid., 2001, p. 49.

80 FERRAZ JÚNIOR, op. cit., p. 49. 81 BOBBIO, op. cit., 2008, p. 182. 82 Idem.

83 Ibid., p. 182-183. 84 KELSEN, op. cit., p. 280.

lições,

Se tomarmos as normas gerais, aquelas que estabelecem parâmetros para todas as pessoas subsumidas a um Estado, logo observaremos que, por via de seu teor, elas não se constituem em normas gerais, na medida em que valorizam pessoas e atos e desvalorizam outros, quebrando o alegado princípio da isonomia, de eqüidade que fundam as legislações modernas.85

E os casos não são raros, por exemplo, dos homens em relação às mulheres (o que vem se transformando nas últimas décadas); a excessiva proteção jurídico-penal ao patrimônio em relação às pessoas; a supremacia do proprietário em face do possuidor86 (sobretudo, quanto ao direito de propriedade face o direito à moradia); a união estável heterossexual e a união homoafetiva (no âmbito cível) etc.

85 AGUIAR, Roberto Armando Ramos de. Direito, poder e opressão. São Paulo: Alfa-Omega, 1980, p. 36.

1.4 A CIÊNCIA JURÍDICA VERSUS A ÉTICA: A SEPARAÇÃO OU A