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Capítulo 1 A IMPORTÂNCIA DA CONSCIÊNCIA JURÍDICA: O

1.1 O DIREITO E O ESTADO: A ORIGEM DO MONISMO

1.1.1 O Estado absolutista e a insurgência do Estado

1.1.1.1 O direito no Estado absolutista

O período da história ocidental que compreende o declínio do medievo é um período de profundas mudanças na sociedade europeia. Trata-se, sobretudo, de uma transição das formas de poder e de centralização do poder político.

Como é sabido, a Idade Média é marcada por um sistema de sociedade baseado na servidão. As relações de poder, geralmente, resumiam-se às relações estabelecidas entre os detentores de terras e os seus servos, portanto, a instituição da propriedade da terra detinha grande significação, o poder político e jurídico manifestava-se, especialmente, em âmbito local.6

Ao mesmo tempo em que existia uma infinidade de micro-poderes políticos – cada um deles peculiar à sua realidade – divididos nas diversas unidades territoriais (os feudos), também

6 Nesse sentido, ver: WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no direito. 3. ed., rev. e atual. São Paulo: Alfa- Omega, 2001, p. 27. Não por acaso, vale dizer, ainda, que a instituição da propriedade, sobretudo a territorial, detém até hoje grande importância no mundo jurídico.

assim se dispunha o direito enquanto forma de poder. Sob este aspecto jurídico, o elemento mais essencial do direito medieval era seu caráter costumeiro e pluralista.7

Ainda, não se pode esquecer, como lembra Michel Foucault, que essas justiças “eram fonte de riqueza, eram propriedades.” Era, pois, um conjunto de instituições dependentes ou controladas pelo poder político que substituía o então defasado tribunal arbitral. Dois mecanismos foram determinantes nessa mudança. O primeiro fora a fiscalização da justiça que aplicava multas, ordenava confiscos e sequestros de bens, as custas do serviço e até gratificações de toda sorte. “Fazer justiça era lucrativo.” Quando o Estado carolíngio se desmembra os senhores feudais não somente utilizam as justiças como meio de apropriação e coerção, eram fonte de fortuna.8

O segundo mecanismo fora a ligação entre as justiças e a força das armas. Para que o soberano instaurasse a “paz” – com o fim das guerras particulares sendo substituída pela “justiça obrigatória e lucrativa” – era preciso uma força militar forte o bastante. Assim, com a estabilização da situação, se instala a extração “fiscal e jurídica”.9

Não obstante, como explica Foucault, na França e na Europa Ocidental, “o ato de justiça popular é profundamente anti- judiciário e oposto à própria forma do tribunal.”10

Delatando, assim, a insatisfação popular em relação ao judiciário da época.

Mesmo procedendo ao reconhecimento da importância que o direito da igreja (o direito canônico)11 possuía na atividade jurisdicional em grande parte da Europa, não se pode ignorar que em cada unidade territorial o senhor feudal (o suserano) detinha, ao mesmo tempo, tanto o poder legiferante, como o poder jurisdicional – cuja aplicabilidade se dava às relações de

7 Ibid., p. 28. Veja também, sobre esse período: HESPANHA, Antônio M. História das instituições. Coimbra: Almedina, 1982, p. 81-112.

8 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 26. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2008, p. 42.

9 Ibid., p. 42-43. Ver também: FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU, 2003, p. 65-67.

10 Ibid., p. 43.

11 Sobre esse tema, veja, por exemplo: CASTRO, Flávia Lages de. História do direito geral e Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 132-143; GILISSEN, John. Introdução histórica do direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1986, p. 133-160.

vassalagem e servidão –, além disso, é claro, também detinha o poder administrativo de suas terras.

Vale notar, a propósito, que o direito canônico foi o único direito escrito que perdurou toda a Idade Média12, o que mais tarde – diga-se de passagem – vai explicar, juntamente com o ressurgimento dos estudos sobre o direito romano, sua forte influência no processo de codificação dos ordenamentos jurídicos estatais modernos, sob a égide da dogmática jurídica.

Essa realidade social implica um inevitável pluralismo jurídico, próprio da fragmentação territorial dessa época, pois a região se encontrava retalhada em inúmeros espaços de relação social, política, econômica, jurídica, cultural etc. Sendo assim, pode-se afirmar que o costume local era a fonte primordial do direito feudal.

Vale observar que essa fragmentação territorial, marca inconteste da Idade média, é produto das dinâmicas sociais ocorridas em período anterior.

Sem a intenção de adentrar nas temáticas concernentes ao Império romano, torna-se importante destacar que, tendo a Idade média surgido como período histórico e social subsequente ao declínio desse império, essa fragmentação jurídica e territorial, aqui analisada, fora fruto de um processo de “distribuição” de terras dos proprietários aos escravos.

Foi o colapso da sociedade escravagista que fez com que os proprietários deixassem de se ocupar de forma direta com a “manutenção de seus escravos, distribuindo-os em lotes de terras a fim de que se auto-sustentassem através do recolhimento do excedente de produção.”13

Todavia, a despeito de toda mudança que isso acarretou, não se pode perder de vista que a “emancipação na sociedade romana é antes um gesto simbólico do que uma mudança efetiva de situação social.”14

Pode-se dizer que foi assim que se deu origem ao modo feudal da servidão. Contudo, o processo em que se dá a queda do Império romano, não fora tão simples, várias foram suas

12 MARTINS, Argemiro Cardoso Moreira. O direito romano e seu ressurgimento no final da idade média. In: WOLKMER, Antonio Carlos (Org.). Fundamentos da história do direito. 4. ed., rev. e atual. Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 193. 13 Ibid., p. 185.

14 PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla Bassanezi (Orgs.). A história da cidadania. 4. ed. São Paulo: Contexto, 2008, p. 88.

condicionantes até a sua consubstanciação total através das invasões e fragmentações da sociedade, principalmente por nórdicos e germânicos.

Essas condições foram determinantes para que, na Europa, se iniciasse um processo de concentração dos poderes em uma única instituição, o monarca. Fora um projeto de unificação territorial que possuía como estratégia última a centralização do poder político, administrativo, legiferante e jurisdicional.

Tal empreendimento não se deu apenas na prática social e política da sociedade, quer dizer, das sociedades europeias, um grande esforço teórico marca todo esse processo, sobretudo no campo da filosofia política e do direito. Thomas Hobbes15 é considerado o grande pensador dessa época, no que tange à legitimação do poder e do Estado absoluto, alcançando talvez a sua forma teórica mais bem acabada. “O Leviatã é, ao mesmo tempo, causa e efeito da fundação do Estado.”16

Para Hobbes, todos os indivíduos deveriam ceder parcelas de suas liberdades ao Estado.17 Ocorre que todo o Estado àquela época estava personificado no senhor absoluto. Segundo Norberto Bobbio, ademais, tal doutrina – exemplo perfeito do positivismo jurídico – gerou uma mudança radical no jusnaturalismo clássico ao vincular a justiça ao direito estatal.18 Bobbio explica que para Hobbes “quando surge o Estado nasce a justiça”.19

Nesse passo, surge o Estado absolutista, legitimado segundo a ideia de que o poder, mormente político, estava predestinado à pessoa do monarca por razões divinas, sua fundamentação moral e política residia no desejo de paz e de poder.20

Como todo o poder, agora, convergia para uma única

15 Veja: HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. São Paulo: Nova Cultural, 1999.

16 KOSELLECK, op. cit., p. 32.

17 GOMES, Luiz Flávio; VIGO, Rodolfo Luis. Do estado de direito constitucional e transnacional: riscos e precauções: navegando pelas ondas evolutivas do estado, do direito e da justiça. São Paulo: Premier Máxima, 2008, p.17. Nesse sentido, ver também: BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. 4. ed., rev. Bauru, SP: Edipro, 2008, p. 60.

18 Ibid., 2008, p. 59. 19 Ibid., p. 60.

pessoa, cabia ao soberano o destino de toda a população. Em suas mãos estava concentrada a administração do território, bem como a criação e aplicação das leis, essas condições possibilitaram a prática de um poder arbitrário e ilimitado.

Com o desenvolvimento das ideias iluministas uma nova forma de pensar a sociedade europeia começa a eclodir. A contestação do, então, atual estado de coisas provoca um outro período de transição das formas de poder e de poder político. Interessante observar, por isso, que as próprias ideias iluministas surgiram a partir do Absolutismo, de início como produto deste, mas depois como a razão para a sua decadência.21

1.1.1.2 Um novo direito para uma nova forma estatal: a consolidação do