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Capítulo 1 A IMPORTÂNCIA DA CONSCIÊNCIA JURÍDICA: O

1.1 O DIREITO E O ESTADO: A ORIGEM DO MONISMO

1.1.1 O Estado absolutista e a insurgência do Estado

1.1.1.2 Um novo direito para uma nova forma estatal: a

O Estado, tal qual se conhece hoje, tem fortes raízes no período que se sucede ao Absolutismo. Os ideais iluministas trazem consigo uma nova forma de conceber o mundo, rompendo com o mundo antigo e inaugurando uma nova fase, a modernidade.

Como se pode perceber, essa transformação se dá – em última instância e sob o aspecto político –, ao mesmo tempo, em razão dos abusos do poder político centrado no monarca e devido ao acúmulo do poder econômico dos comerciantes inclinados ao mercantilismo burguês e capitalista.

Enquanto o feudalismo entra em franco declínio,

“instaura-se o Capitalismo como novo modelo de

desenvolvimento econômico e social em que o capital é o instrumento fundamental da produção material”.22

Ou seja, de um lado, tem-se a realeza e os nobres que detinham poder político, mas não possuíam de fato (“só por direito”) o poder econômico – posto que dependiam dos recursos oriundos dos tributos cobrados da sociedade, mormente da burguesia emergente –, de outro lado, havia uma classe de ricos comerciantes detentora do poder econômico, mas sem o controle efetivo do poder político – já que esse poder era em maior parte

21 Ibid., p. 19.

hereditário e calcado num direito divino e, por isso, extremamente limitado. Assim é que se dão as bases das revoluções burguesas, sobretudo pelo desejo de apropriação do poder político e, portanto, dos destinos da sociedade. Todavia, não há como não reconhecer que fora um processo muito mais complexo e que envolvia a emergência da sociedade burguesa, do novo modo de produção capitalista, a supremacia ideológica

de cunho liberal-individualista e a reorganização

institucionalizada do poder através do Estado moderno burocrático.23

Pode-se dizer que fora o período de paz interna proporcionado pelo advento do Estado Absolutista o responsável pelo estabelecimento das condições necessárias para o desenvolvimento da burguesia.

O embate político que se dá entre esta e a realeza fora a condição necessária à contestação do poder político. Era de substancial importância a conquista desse poder, pois com ele seria possível a apropriação e concentração da administração política e da criação e aplicação das leis que regiam toda a sociedade. Essa era a condição para a efetividade prática e teórica dos ideais iluministas. Não havia outra saída a não ser deter o controle, sobretudo, da criação das leis, concretando, assim, as bases para o estabelecimento do capitalismo burguês- individualista, por meio de um direito positivo pronto aos seus interesses.

Com isso, era de fundamental importância minar a legitimação divina do poder monárquico. O Racionalismo científico fora crucial nessa empreitada, pois ao passo que retirava de deus a fundamentação do mundo, colocava-a no homem. É, basicamente, aquilo que Boaventura de Sousa Santos denomina mudança das raízes e opções:

No mesmo processo histórico em que a religião transita do status de raiz para o de opção, a ciência transita, inversamente, do

status de opção para o de raiz. Giambattista

Vico e a sua proposta de “nova ciência” (1961 [1725]) é um marco decisivo nesta transição que se iniciara com Descartes e se

23 Ibid., p. 26.

consumará no século XIX. A ciência, ao contrário da religião, é uma raiz que nasce no futuro, é uma opção que, ao radicalizar- se, se transforma em raiz e cria a partir daí um campo imenso de possibilidades e de impossibilidades, ou seja, de opções.24 Assim, se dá a secularização do Estado25 que agora pertence aos indivíduos (concepção individualista), por isso, sua função é servir-los e não mais a deus26.

Tais transformações promoveram uma ruptura profunda nas sociedades ocidentais. Nesse momento, torna-se inevitável destacar, ainda que rapidamente, Montesquieu e a famigerada teoria da tripartição dos poderes27, que descentralizou o poder, antes pertencente somente ao soberano. Seu trabalho teve tanta expressão que influenciou e influencia inúmeras constituições por todo o mundo.

Em todo esse processo, o Estado e o direito têm função instrumental determinante. Enquanto no período anterior a fundamentação de validade do direito era legitimada pelo monarca, pois o que o rei dizia era lei; no Estado moderno essa legitimação se dá através da instituição estatal. Em torno desse eixo é que se dão as modificações necessárias à adequação jurídica para o efetivo controle político e a manutenção dos interesses da nova classe que passa a deter os meios de

24 SANTOS, Boaventura de Sousa. A Gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2006, p. 56.

25 Vale destacar, entretanto, que no Brasil, mesmo procedendo à secularização do Estado (separando a igreja deste), mormente em razão da forte influência católica nos tempos da colônia, em nosso país há flagrante desrespeito a esse preceito. Primeiro, nossa Constituição da República – já em seu preâmbulo – evoca um certo deus. Além disso, a maioria das assembleias legislativas, câmaras de vereadores, delegacias, hospitais públicos, repartições públicas, fóruns e tribunais (inclusive tribunais superiores), por todo o Brasil, ostentam a cruz com Jesus pendurado (símbolo máximo do catolicismo), em total desrespeito ao candomblé, à umbanda, a todas as crenças religiosas indígenas, ao hinduísmo, budismo, islamismo etc. Ou seja, essa separação oficial nunca existiu plenamente, manifestando-se sob um forte simbolismo que escorre também para dentro do Estado, que deveria ser de todos.

26 GOMES; VIGO, op. cit., p. 15 e 17.

27 MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. Do espírito das leis. São Paulo: Martin Claret, 2010, especialmente p. 168-178. Veja também: GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 7. ed., rev. e amp. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 225-235; BONAVIDES, Paulo. Do estado liberal ao estado social. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 63-88.

produção.

Nesse sentido, cumpre observar conforme Eros Roberto Grau, que o direito “não é uma simples representação da realidade social, externa a ela, mas, sim, um nível funcional do todo social.”28

Com isso, adiante, explica que

[...] enquanto nível da própria realidade, é elemento constitutivo do modo de produção social.

Logo, no modo de produção capitalista, tal qual em qualquer outro modo de produção, o direito atua também como instrumento de mudança social, interagindo em relação a todos os demais níveis – ou estruturas regionais – da estrutura social global.29 Nesse passo, o direito, como se pode perceber, teve importância central. Como é sabido, dessa primazia jurídica consagrou-se uma série de direitos de traço fortemente burguês- individualista.

Pode-se dizer, inclusive, que a maioria dos princípios jurídicos que até hoje são utilizados no ensino e aplicação do direito têm fortes raízes nesse período. Fora um projeto científico e legiferante completamente comprometido com a classe liberal burguesa.

Não se torna difícil compreender como tais princípios cumpriram essa função. O princípio da anterioridade, da igualdade, do due process of law, o pacta sunt servanda e, sobretudo, o princípio da legalidade são alguns exemplos da influência dos ideais liberais e do positivismo legalista na formulação do direito que servira de base para a fundamentação jurídica moderna.

O fenômeno do monismo estatal se dá partir de uma “racionalidade lógico-formal centralizadora do direito produzido unicamente pelo Estado e seus órgãos […], enquanto referencial normativo da moderna sociedade ocidental”30

Nesse sentido, interessante destacar, mais uma vez, as

28 GRAU, op. cit., p. 19. 29 Ibid., p. 19-20.

observações de Boaventura, no que tange às transformações das raízes e das opções:

A tradução política liberal desta nova equação entre raízes e opções é o Estado- nação e o direito positivo, convertidos nas raízes que criam o campo imenso das opções no mercado e na sociedade civil. Para poder funcionar como raiz, o direito tem de ser autónomo, isto é, científico. Esta transformação não ocorreu sem resistências. Por exemplo, na Alemanha, a escola histórica reivindicou para o direito a velha equação entre raízes e opções, o direito como emanação do Volksgeist. Foi, porém, derrotada pela nova equação, a raiz jurídica constituída pela codificação e pelo positivismo e capaz de tornar o direito num instrumento de engenharia social.31

O Estado, desse modo, torna-se a instituição legitimadora de todo o direito emergente. É, justamente por isso, que o monismo jurídico estatal ganha uma força até então jamais vista, passando a identificar-se com o próprio Estado de tal modo que em sua pretensa unidade passa a reduzir-se ao institucionalizado no direito oficial estatal.

A produção intelectual e científica liberal, iniciada no século XVI fora tão vigorosa que até hoje exerce forte influência não somente no direito, mas em todos os ramos das ciências.

O surgimento do Estado moderno fora crucial para a proeminência do direito na regência da sociedade. A propósito de sua essência e natureza, pode-se dizer que o Estado, em última instância, é uma ideia. A despeito de seus órgãos e funcionários, enfim, sua tangibilidade, o Estado – em última análise – é uma ideia, talvez uma das abstrações mais extraordinárias da modernidade. A partir das lições de Georges Burdeau, entende- se que o Estado não se trata de território, população, nem de corpo de regras obrigatórias. Apesar desses dados lhes serem sensíveis os transcende, faz parte da fenomenologia intangível. “O Estado é, no sentido pleno do termo, uma idéia. Não tendo

outra realidade além da conceptual, ele só existe por que é pensado.”32 Interessante notar, ainda, segundo Burdeau, que o Estado moderno fora uma invenção dos homens para não obedecer aos homens.33

Para o professor da Universidade de Paris II, ao suporte abstrato de poder que brota dessa ideia vem juntar-se a concepção orgânica da qual esse poder parece emanar. Sendo, primeiramente, o poder institucionalizado, também “é a própria instituição na qual reside o Poder.”34

Nesse sentido, ainda, vale citar Hans Kelsen, para quem [...] o Estado, enquanto pessoa agente, não é uma realidade mas uma construção auxiliar do pensamento jurídico, a questão de se saber se uma certa função é função do Estado não pode ser dirigida à existência de um fato.35

Todavia, nesse momento, cumpre reconhecer que esse poder não é uno e nem se manifesta como fenômeno único. Como se verá em momento oportuno, existe uma pluralidade de poderes que não obrigatoriamente se inter-relacionam, e que compõem um processo complexo no qual o próprio indivíduo e a coletividade constituem e são constituídos.

Burdeau explica que, em sendo poder, o Estado não é sua forma única, pois na coletividade há uma multiplicidade de poderes, cada qual refletindo a representação de sua ordem desejável. A vida política constitui-se no embate entre esses poderes, os quais objetivam conquistar o poder estatal, e cujo poder vitorioso, por fim, terá as condições para a consubstanciação do domínio político, inclusive do poder jurídico, como o único e autorizado para tanto.36

Com isso, aos poucos, o Estado vai se tornando a única forma de poder “legítimo” e capaz de regular as dinâmicas sociais de poder. “O universo político é uma ordem em

32 BURDEAU, Georges. O estado. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. X. 33 Ibid., p. XI.

34 Ibid., p. 55.

35 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 323.

movimento e o que denominamos estabilidade social não é mais que um equilíbrio de forças.”37

Como mediador desse embate, apenas o Estado é capaz de intervir, por sua força superior, delimitando o espaço de combate.

37 Ibid., p. 97.