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Capítulo 1 A IMPORTÂNCIA DA CONSCIÊNCIA JURÍDICA: O

1.4 A CIÊNCIA JURÍDICA VERSUS A ÉTICA: A SEPARAÇÃO OU

1.4.1 O direito e a moral: o problema da justiça

No que concerne aos embates teóricos entre a moral e o direito tal tema assume uma complexidade ainda maior quando se expõe um elemento extremamente importante e que pode ser identificado em ambos os campos: a justiça. Mais uma vez a bibliografia sobre o assunto é muito extensa e de sua análise brotam inúmeras possibilidades que acaba por conferir à questão uma formidável riqueza.

99 Ibid., p. 71.

100 FERRAZ JUNIOR, op. cit., p. 356. Nesse sentido, veja: HART, op. cit., p, 232. 101 FERRAZ JUNIOR, op. cit., p. 356; HART, op. cit., p, 227.

102 FERRAZ JUNIOR, op. cit., p. 356. 103 HART, op. cit., p, 228.

Não sendo, aqui, a ocasião de estabelecer uma análise profunda sobre o tema, ainda assim, torna-se de grande valia expor algumas reflexões que reforçarão a compreensão sobre o direito e sobre o tema central deste trabalho, qual seja, a importância de se compreender o direito e o despertar para uma consciência jurídica potencializadora da Cidadania.

Sendo assim, cumpre notar que pensar a justiça, nesse contexto, leva a uma outra dicotomia também célebre que se trava entre o direito positivo e o direito natural. De forma geral, pode-se dizer – no que se refere a esses dois modelos de ideologia jurídica e suas relações com a justiça – que para o positivismo jurídico o justo é a ordem jurídica estabelecida, já para o jusnaturalismo o direito deve ser justo.105

Note que, sob uma análise acerca do plano da validade, o positivismo entende a justiça como a ordem válida, enquanto o jusnaturalismo a confunde com a própria validade. Para aqueles, a validade está condicionada ao direito posto, à ordem jurídica; para estes, a justiça é condição para validade.

Como ensina Bobbio, o “problema se uma norma é justa ou não é um aspecto do contraste entre mundo ideal e mundo real, entre o dever ser e o que é”106. Em outras palavras, trata-se do “problema da correspondência entre o que é real e o que é ideal. Por isso, o problema da justiça se denomina comumente de problema deontológico do direito.”107

Essa questão se torna interessante quando se pensa o direito justo – em se tratando de direito ocidental contemporâneo –, ainda mais quando se observa a realidade jurídica das sociedades do capitalismo periférico.

Ainda, não se pode esquecer que justiça é tema tão importante para o direito que muitas vezes é empregado como sinônimo deste. Contudo, justiça, é importante notar, revela-se como um instituto complexo e que se manifesta de forma plural, sua diversidade repousa em seu conteúdo axiológico, elemento determinante, posto que conforme a concepção ideológica do indivíduo ou da coletividade pode variar radicalmente em conteúdo. Como adverte, por exemplo, Bobbio, um “socialista

105 LYRA FILHO, Roberto. O que é direito. São Paulo: Brasiliense, 2006, p. 30 e 33; BOBBIO, op. cit., 2008, p. 48.

106 BOBBIO, Ibid., p. 46. 107 Idem.

dificilmente conceberá como justo um ordenamento que reconhece e protege a propriedade privada individual”.108

Em outras palavras não existe uma moral absoluta, ou nas palavras de Kelsen: “uma Moral válida em todos os tempos e em toda parte.”109

O tema da justiça estabelece, assim, uma discussão crucial para o direito. Enquanto para uns, o direito injusto também é parte do mundo jurídico, outros abominam essa ideia considerando-a diametralmente oposta ao direito concebendo-o como “antidireito”110

.

Nesse comenos, cumpre estabelecer uma objeção a esta segunda posição. Entendendo-se aqui que mesmo em se tratando de direito injusto, não se pode considerá-lo “antidireito”, pois essa faceta jurídica também faz parte do mundo jurídico e, por isso, não se pode ignorá-la.

Segundo essa perspectiva endossa-se o posicionamento de Hart. Conforme esse jurista britânico, considerando um conceito mais amplo de direito pode-se incluir nele a análise de certas características especiais de leis moralmente injustas e, inclusive, a reação social a estes tipos de normas. Sendo assim,

[...] o uso do conceito mais restrito inevitavelmente dividirá, de forma confusa, nosso esforço para compreender tanto o desenvolvimento quanto as potencialidades do método específico de controle social existente num sistema de normas primárias e secundárias. O estudo de seu uso envolve também o seu abuso.111

Nesse mesmo sentido, pode-se citar Bobbio. Em conformidade com as suas lições, no que toca à problemática que envolve a relação entre justiça e direito explica:

[...] que o direito corresponda à justiça é uma exigência, ou se quisermos, um ideal a alcançar que ninguém pode desconhecer, mas não é uma realidade de fato. Ora, quando nos colocamos o problema do que é

108 Ibid., p. 49. Veja, também: HART, op. cit., p, 209; KELSEN, op. cit., p. 55. 109 KELSEN, Ibid., p. 77-78.

110 LYRA FILHO, op. cit., p. 8, 27 e 92. 111 HART, op. cit., p, 272.

o direito em uma dada situação histórica, nos questionamos sobre o que é de fato direito e não sobre o que queríamos que ele fosse ou o que deveria ser. Mas, se nos perguntarmos o que de fato é o direito, não podemos deixar de responder, ao menos, que na realidade vale como direito também o direito injusto e que não existe nenhum ordenamento perfeitamente justo.112

Vale notar, ainda, a posição de Kelsen, quanto a esse tema. Segundo ele, na busca de uma teoria pura do direito e, assim, conforme uma análise jurídico-científica de viés marcadamente positivista, “a ciência jurídica não tem de aprovar ou desaprovar o seu objeto, mas apenas tem de o conhecer e descrever.”113

Justamente por isso, em sendo a mais notável defesa do positivismo jurídico e, assim, cumprindo à ciência jurídica apenas o estudo desprovido de valoração e apartado de tudo aquilo que lhe seja estranho114, a investigação gira em torno, sobretudo, da validade jurídica. Por esse motivo, para ele, “a Justiça é uma exigência da Moral”.115

Como se pode notar, a problemática acerca da justiça, aplicada às reflexões em torno do direito, sobretudo em virtude da proeminência da matriz epistemológica do positivismo (nas suas muitas variantes), gira em torno da norma, do ordenamento jurídico e do direito estatalista institucionalizado.

Bobbio é suficientemente explicativo quanto a este ponto: “o problema da justiça é o problema da correspondência ou não da norma aos valores últimos ou finais que inspiram um ordenamento jurídico.”116

O direito ocidental moderno, concebido do ponto de vista da justiça, assim, encontra-se completamente desvinculado do posicionamento da sociedade, globalmente considerada, passando a ser parte de uma problemática científica. E isso, em grande parte, se deve ao desconhecimento da sociedade acerca das questões jurídicas, sobretudo se for considerado que nunca

112 BOBBIO, op. cit., 2008, p. 55-56. 113 KELSEN, op. cit., p. 77. 114 Ibid., p. 1.

115 Ibid., p. 67. Veja, também: BOBBIO, op. cit., 2008, p. 59. 116 BOBBIO, Ibid., 2008, p. 59.

houve, pelo menos no Brasil e na América latina, uma política estatal realmente comprometida com a democratização desse saber.

Por isso, quando muito, as oportunidades de “escolha” e “decisão” na produção do direito – ou, em outras palavras, de participação na constituição do mundo jurídico, principalmente em seu aspecto normativo – se encontram confinadas e dissimuladas em figuras como o referendo e plebiscito e mais raramente ainda na legislação oriunda de iniciativa popular. A democratização do saber jurídico é crucial para imaginar uma mudança nesse quadro.

Vale destacar, mais uma vez, as lições de Roberto Aguiar, no que concerne à relação entre a justiça e o direito:

A busca da justiça enquanto virtude é a escolha cotidiana […], e essa escolha é constante, como constante é o desenrolar da história. Uma justiça assim encarada é uma procura do melhor para os oprimidos, entendido esse melhor como o próprio melhor que os oprimidos vão constituindo por via de suas lutas e conquistas.117

Como se pode notar, a completa ausência da maioria da sociedade nas discussões sobre o jurídico, permitiu que uma minoria se apropriasse desse ramo do conhecimento confinando- o em sua área de dominação, o Estado, hiper-especializando-o e, assim, tornando o direito hegemônico mais distante do povo.

Com esse afastamento da sociedade, o direito pode se tornar um espaço monopolizado, por isso a democratização de seu saber se torna – hoje – uma necessidade premente, esse é um fator determinante para a apropriação popular sobre o mundo jurídico. Nesse sentido, a escola se apresenta como um dos espaços mais interessantes na busca da socialização desse saber, provocando uma mudança cultural nas próprias crianças e adolescentes.118

Por fim, torna-se importante destacar algumas das observações feitas por Jacques Derrida, no que diz respeito ao

117 AGUIAR, Roberto Armando Ramos de. O que é justiça: uma abordagem dialética. 7. ed. São Paulo: Alfa-Omega, 2004, p. 122.

direito à justiça. Primeiramente, vale observar que, segundo esse filósofo argelino, a justiça poderia ser concebida como uma aporia, “um não-caminho.” Nesse sentido, poderia ser interpretada como “a experiência daquilo que não podemos experimentar.” Não existe justiça sem essa experiência do impossível.119

Por isso, a sua afirmação de que o direito não é justiça, o primeiro seria um elemento de cálculo, enquanto a justiça é incalculável. Entretanto, por ela ter essa característica, a justiça impõe que se calcule o incalculável como uma necessidade. Por essa razão, o momento da decisão entre o que é justo e injusto não se dá por uma regra.120

119 DERRIDA, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007, p. 30.