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Capítulo 1 A IMPORTÂNCIA DA CONSCIÊNCIA JURÍDICA: O

2.3 ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE EDUCAÇÃO E

2.3.1 Os efeitos práticos desse ensino do direito

Por uma Cidadania da criança e do adolescente

É inaceitável, por tudo isso, que se tenha uma Constituição, democrática e cidadã e, ainda, não se tenha um ensino – mesmo que básico – desse direito, ao menos nas escolas do Brasil.

Todavia, nem mesmo o ensino dessas disciplinas é

garantia da democratização fundamental, como que

instantaneamente, ou como se isso fosse uma decorrência lógica e cronológica necessária. A práxis social cotidiana e construtiva da realidade é quem pode indicar suas possibilidades concretas e a crescente tomada de consciência da participação popular

mostrou uma grande mobilização de estratos antes

marginalizados da vida política nacional, recentemente com a Constituição da República de 1988. E isso dá vigor suficiente, no plano teórico, às reflexões sobre tais possibilidades.

Como explica Paulo Freire, a democracia, antes de ser uma manifestação política, “é forma de vida”. Tem como característica uma vigorosa transitividade da consciência humana. E essa transitividade só se dá imersa em determinadas condições as quais levam as pessoas ao debate, à análise de seus problemas e dos problemas em comum. Em outras palavras, só se dá num ambiente em que há efetiva participação.241

241 FREIRE, Paulo. Educação com prática da liberdade. 30. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2007, p. 88.

Os currículos escolares dos ensinos fundamental e médio devem proporcionar a todas as pessoas essa possibilidade de acesso à informação jurídica, de tomada de responsabilidades e de autonomia na produção de uma cultura, também mais solidária individual e coletivamente. Devem, ainda, conjugar uma teoria (ideal) e uma prática (real) contextualizadas, de evidenciação dos problemas e desafios contemporâneos, mais envolvidas com os processos históricos que determinam as condições atuais.

Nesse sentido, preconizar uma “conscientização, que lhe possibilita inserir-se no processo histórico, como sujeito, evita os fanatismos e o inscreve na busca de sua afirmação.”242

O sistema educacional brasileiro não pode somente ser pensado através de uma educação voltada ao trabalho, que fortalece o mercado e enfraquece a sociedade. Deve, com a

máxima importância e prioridade, proporcionar o

desenvolvimento das potencialidades humanas e o preparo para a Cidadania.

As crianças e adolescentes devem ter essa educação e essa mentalidade quanto antes possível. A partir do desenvolvimento da consciência da possibilidade de intervenção na realidade, eles descobrem o poder da participação e da transformação e, assim, a partir dessas ações passam a descobrir-se e serem reconhecidos como verdadeiros atores sociais. É a verdadeira descoberta da Cidadania das crianças e dos jovens.

Urge preparar a sociedade brasileira para o exercício cotidiano e a vivência coletiva da Cidadania. As escolas, a começar pelas crianças, devem promover no indivíduo o desenvolvimento de uma visão sensível às questões, por exemplo, sociais e jurídicas, para assim, adquirir o conhecimento geral e necessário da comunidade, da sociedade e do Estado, dos interesses políticos predominantes e uma série de outras abordagens institucionais e estatais que a sociedade, na sua grande parcela, desconhece. Isso, devido à flagrante violação, no plano institucional e oficial, do direito à informação e do direito ao conhecimento de excelente qualidade, o que provoca a anomia sócio-jurídica.

242 FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 46. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005, p. 24.

Aliás, como destaca Lipiansky, não deve centrar-se no futuro, mas no presente. Não deve ser uma preparação para a idade adulta, mas antes ser a possibilidade das crianças viverem suas necessidades atuais. Assim, a escola tem como fito “oferecer à criança um local onde ela poderá ser criança, jovem e alegre”.243

Como se pode perceber, conforme citado anteriormente, o acesso democrático a esses conhecimentos favorece, de forma ampla, a intervenção, sobretudo, no direito dominante institucionalizado no Estado munindo o cidadão comum, não especialista em direito, de condições práticas e teóricas de transformação da cultura jurídica tanto dentro como fora do pensamento científico.

Sendo assim, é preciso que a escola assuma também a responsabilidade em preparar as crianças e jovens para as suas próprias Cidadanias. Quantas crianças conhecem o Estatuto da criança e do adolescente e a Constituição da República? Quantas crianças e jovens tiveram voz na construção dessa atual Constituição?

Além disso, o conceito de cultura é interessante na construção dessa atmosfera de democratização do saber e de conscientização de sua capacidade ativa também para a Cidadania infantil, tanto para as crianças e adolescentes como para os educadores.

A criança, ainda continua sendo analisada e compreendida a partir do olhar do adulto. Vale citar Clarice Cohn quando afirma: “Precisamos nos fazer capazes de entender a criança e seu mundo a partir do seu próprio ponto de vista.”244

Também segundo essa autora e como se pode verificar na quase totalidade do ensino formal, ainda se continua a recusar às crianças o seu verdadeiro lugar cuja participação ativa é imprescindível à conquista de sua Cidadania.245

Com isso, pode-se quebrar com a velha concepção de que as crianças e os adolescentes são seres humanos incompletos246, treinando para ser livre em um tempo futuro,

243 LIPIANSKY, Edmond-Marc. A pedagogia libertária. São Paulo: Imaginário, 1999, p. 44.

244 COHN, Clarice. Antropologia da criança. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p. 8.

245 Ibid., p. 16.

como se encenasse um papel na sociedade. Todos têm seu espaço ativo nas relações sociais e na construção de uma Cidadania sólida, além de sua parcela de responsabilidade nessa mudança de concepção. Assim, esse direito fundamental de intervir nos rumos de suas próprias vidas exige o respeito e reconhecimento por todos de sua verdadeira vocação social, a de definir sua própria condição. A noção de infância é produto social e histórico do ocidente. Essa forma de pensar as pessoas mais jovens se inicia na Europa, permeando vários níveis constitutivos, dentre eles a educação escolar.247

A Cidadania da criança e do adolescente somente pode ser construída a partir do momento em que essas pessoas são mediatizadas pelo mundo e por outras pessoas, algumas também jovens e outras adultas. Nessa interação, como observa Cohn, essa parcela mais jovem da sociedade, igualmente, é capaz de construir e constrói sua própria cultura, estabelecendo laços de afeto em suas relações sociais, criando sua própria imagem e identidade etc. Por isso, “a diferença entre as crianças e os adultos não é quantitativa, mas qualitativa; a criança não sabe menos, sabe outra coisa.”248 Mais ainda, não se pode esquecer que elas são culturalmente independentes dos adultos, transmitindo o seu patrimônio cultural entre si, formando uma verdadeira pluralidade de culturas infantis. Isso, ocorre por exemplo, na disseminação de saberes como as brincadeiras, variante, evidentemente, da procedência geográfica, cultural etc.249

Não obstante a antropologia também auxilia na compreensão de leis como o Estatuto da criança e do adolescente, pois permite compreender melhor como a legislação os concebe.250 Daí, igualmente, a grande importância da antropologia jurídica voltada para essa parte da sociedade, os jovens, o que ainda não é uma realidade comum, no plano

crianças e adolescentes, mas não como se fossem pessoas pela metade, a serem programadas ou terem sua formação para no futuro se constituírem cidadãos. Como se fossem incapazes de proceder à escolha, à decisão. 247 Ibid., p. 21.

248 Ibid., 32-33.

249 Ibid., p. 35-37. Por isso, a necessidade inclusive de uma análise antropológica da criança em âmbito escolar para melhor entender as próprias escolas e as pedagogias, além da capacitação do educador para a diversidade cultural. Nesse sentido, ver: p. 41-42.

acadêmico, nem teórico.

Outra importante nota sobre os apontamentos de Clarice Cohn, diz respeito à ideia de que à criança cabe apenas brincar e se divertir, abominando o trabalho. Longe de se fazer uma apologia ao trabalho infantil, na verdade, não se pode esquecer que também essa concepção do ingênuo, que deve brincar e se divertir é produto social. Portanto, isso deve estar claro a todo aquele que se inicia nesse terreno. Não obstante, inexiste uma imagética da criança e dos jovens que não faça parte “de um contexto sociocultural e histórico específico”, daí campo formidável aos antropólogos.251

Do ponto de vista prático, imaginando algumas formas de estímulo a construção de uma consciência de viés crítico e reflexivo sobre a participação social e democrática das crianças e adolescentes para elas próprias, se pode citar a título de ilustração, uma situação hipotética na qual em uma escola é dado às crianças e adolescentes o direito de participar de forma ampla, na avaliação do processo de ensino/aprendizagem e nas escolhas que afetam a coletividade desse espaço escolar.

Podem, assim, escolher onde instalar os bebedouros e a quantidade necessária (segundo a demanda e as condições), escolher se durante o intervalo haverá música ambiente e quais tipos farão parte do repertório, participar da criação e gestão dos grêmios estudantis, a confecção e redação de jornais, periódicos e assim por diante. Note, na complexidade do tema ações simples podem ser capazes de proporcionar um ambiente fértil em participação, tolerância e solidariedade o que sugere uma possível riqueza em práticas e reflexões constitutivas de cidadãos desde jovens (e não “futuros” cidadãos) edificadores do mundo social em que vivem, cuja opinião é reconhecida e respeitada democraticamente, inclusive, na formação da força de trabalho, o que supõe também igualdade de condições e opções nessa seara, a descoberta da vocação etc.

Também vale citar Philippe Perrenoud, quando afirma que para fortalecer a aprendizagem da Cidadania, é preciso considerar os espaços escolares internos e externos, as lanchonetes e cantinas, os banheiros, o bicicletário, a segurança e proteção, a gestão das faltas, as formas de negociação na escola e na sala de aula, os horários estabelecidos, as normas

de conduta, o direito de fumar e de namorar na escola, o regramento e as decisões que embasam tanto a coexistência na escola e nas salas quanto o processo ensino/aprendizagem.252

Isso tudo, vale notar, como uma iniciação para a descoberta e transformação de seu mundo social vivido, que também não lhes pode ser estranho e distante.

252 PERRENOUD, Philippe. Escola e cidadania: o papel da escola na formação para a democracia. Porto Alegre: Artmed, 2005, p. 44. Ver também: p. 53. Quanto à participação ativa dos alunos, ver, também: SARMENTO, Manuel Jacinto. Crianças: educação, culturas e cidadania activa. Refletindo em torno de uma proposta de trabalho. PERSPECTIVA – Revista do Centro de Ciências da Educação. Florianópolis, v. 23, n. 1, jan./jun., 2005, p. 34-35