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Capítulo 1 A IMPORTÂNCIA DA CONSCIÊNCIA JURÍDICA: O

1.5 O DIREITO COMO FORMA DE DOMINAÇÃO SOCIAL

1.5.1 A pluralidade do poder

Pensar o direito como forma de dominação requer, antes de qualquer coisa, algumas explicações mais detidas acerca da ideia de poder. O processo em que a dominação jurídica – que se constitui na formação do Estado moderno – se instala como forma de imposição da “verdade”, da “justiça”, mediante a resolução dos conflitos (individuais e coletivos) se dá sob bases autoritárias e mesquinhas. Grupos dominantes da sociedade se apropriam do direito utilizando-o como instrumento de dominação e manutenção de seus interesses. O poder que se identifica com o direito remete-se a uma parcela da sociedade que detém efetivamente o controle dos poderes do Estado que se consolida a partir de uma cadeia de poderes produto da organização da sociedade moderna.

Nesse momento, torna-se importante destacar algumas observações de Michel Foucault, segundo esse filósofo francês, o poder não é único, em uma sociedade há relações de poder “extraordinariamente numerosas, múltiplas, em diferentes níveis, onde umas se apoiam sobre as outras e onde umas contestam as outras.”121

Com isso, pode-se perceber que a questão trata de uma complexidade profunda distribuída em diversas instâncias das relações sociais. Por isso, o poder não se manifesta apenas na esfera estatal, está presente nas relações cotidianas tanto naquela parcela oprimida da sociedade quanto na parte dominante. Portanto, o poder – em sua diversidade – está imerso numa imensa pluralidade de relações intersubjetivas e coletivas.

É, inclusive, em razão dessa constatação que se pode destacar a interessante dicotomia a que se refere Boaventura de Sousa Santos nas relações sociais contemporâneas. Conforme esse sociólogo português, em tais relações há um embate, uma tensão constante entre regulação e emancipação. Há sempre uma queda de braços entre os dominantes e os dominados que ora gera alguns avanços a toda a sociedade, ora traz benefícios a apenas um dos lados.

Nesse sentido, Boaventura explica que foi o Estado moderno a “instituição moderna que geriu, sobretudo nos dois

últimos séculos, a tensão entre a regulação e a emancipação.”122 Não se pode deixar de reconhecer que existem também diversas manifestações insurgentes de contestação do atual estado de coisas e, em se tratando do jurídico, de insurreição contra o modo dominante de legitimar e manifestar o direito, mediante o estatal institucionalizado. É desse discurso insurgente, igualmente, que brota a crise do direito contemporâneo, mediante uma manifestação crítica de contraposição, mas também a partir de práticas distintas do modo oficial.

Aliás, também, segundo Foucault, não se pode esquecer que determinadas condições (políticas, econômicas etc.) de existência também acabam por constituir os sujeitos e, assim, as relações de verdade. Ou seja, existem certas condições que permeiam as relações sociais em diferentes níveis e graus que interagem juntamente com os sujeitos no estabelecimento de paradigmas.123

Até mesmo na própria ciência se pode encontrar

[...] modelos de verdade cuja formação releva das estruturas políticas que não se impõem do exterior ao sujeito de conhecimento mas que são, elas próprias, constitutivas do sujeito124.

Quanto a isso, segundo Boaventura,

Como o conhecimento científico não se encontra distribuído de uma forma socialmente eqüitativa, as suas intervenções no mundo real tendem a ser as que servem os grupos sociais que tem acesso a este conhecimento. Em última instância, a injustiça social assenta na injustiça cognitiva.125

Nesse sentido, com base em Nietzche, Foucault alerta

122 SANTOS, op. cit., 2006, p. 19. Para mais detalhes, veja: p. 341-376. 123 FOUCAULT, op. cit., 2003, p. 27.

124 Idem. 125 Idem.

para falsidade do mito – que se inicia com Platão – de que há uma contradição essencial entre poder e saber.126 Na verdade, o saber sempre se constituiu com uma forma de poder.

Todavia, não se pode deixar de constatar que as condições sociais, políticas, econômicas, culturais etc., que se impõem a quase totalidade dos países ocidentais, mormente àqueles do capitalismo periférico e dependente, mesmo a despeito de toda a dominação, espoliação e exploração, também existem – aqui e acolá – novos sujeitos sociais capazes de se contrapor a toda consequência perniciosa da modernidade – inclusive propondo novas formas a esta – e que, ainda, da mesma maneira como são influenciados, também constituem as relações em seus diversos níveis e graus. É exatamente nesse sentido que se pode pensar que mesmo no direito dominante as formas independentes, espontâneas, paralelas, acabam por influir em seu próprio processo constitutivo.

É nesse sentido também que se defende uma democratização do saber jurídico dominante como forma de democratização de sua própria produção. Não que não haja outras fontes ainda mais autênticas de direito, aqui, trata-se de pensar que as instâncias institucionalizadas – legitimadas pelo Estado – somente serão realmente legitimas a partir do diálogo construtivo de participação. E isso só é possível quando o direito que se aplica a toda a sociedade for, de fato, resultado da participação (ou abstenção) consciente de todos e quando toda forma de pensar o jurídico for reconhecida e respeitada, a partir de “escolhas discutidas”.

Não se trata de abolir o direito estatal, mas de democratizá-lo (tanto na produção, quanto no acesso ao seu saber) a fim de construir a possibilidade da transformação participativa. Isso consiste, basicamente, num direito pensado a partir de um saber recíproco. A produção de um conhecimento mais amplificado e complexo, em que novos conhecimentos não anulem os já produzidos. Por isso, nesse processo interativo, cumpre reconhecer que o saber científico (a ciência jurídica) é apenas mais um entre tantos.

126 Ibid., p. 51.

1.5.2 O Estado moderno: uma outra forma para a mesma