• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 3

«Estado corporativo» e ditadura

autoritária reforçada: a Áustria

de Dollfuss e Schuschnigg

(1933-1938)

Após a I Guerra Mundial, o colapso de quatro grandes impérios e as transformações e revoluções nacionais e sociais na Europa conduziram à construção ou remodelação de diversos estados e regimes que se pro- punham dar resposta (o que cumpriram em parte) às já antigas exigências étnicas e/ou políticas das suas populações e elites.1Um grupo de pelo

menos doze pequenos ou médios estados da Europa Central, Meridional e Oriental constituía uma ampla área geopolítica de agitação e violência apenas temporariamente estabilizada pelos tratados de paz assinados após a guerra. A leste emergiu a União Soviética, no centro uma Alemanha derrotada mas não verdadeiramente enfraquecida, porém ferida e pro- fundamente humilhada, e no Sul uma Itália que deplorava a sua «vitória perdida». Era, pois, o ambiente ideal para o eclodir de todo o tipo de acesos conflitos sociais e étnicos, levantamentos políticos, tendências re- visionistas, movimentos fascistas, autoritarismos e ditaduras. As potências ocidentais vitoriosas e seus aliados aderiram à democracia, mas não pu- deram ou não souberam contrabalançar diretamente os perigos que as afetariam vinte anos mais tarde.2

1O autor está grato a Lucile Dreidemy (Toulouse), António Costa Pinto (Lisboa), Hein-

rich Berger, Kurt Bauer, Walter Kissling e Otmar Binder (Viena) e ao Instituto Ludwig Boltzmann de Ciências Sociais e Históricas (LBIHS), Viena, pelo seu apoio intelectual, financeiro e material, respectivamente.

2R. Gerwarth e J. Horne, eds., War in Peace: Paramilitary Violence in Europe after the Great War (Oxford: Oxford University Press, 2012); J. Dülffer e G. Krumeich, eds., Der verlorene Frieden: Politik und Kriegskultur nach 1918 (Essen: Klartext, 2002).

No centro deste caldeirão encontrava-se a Áustria, o antigo coração do império desintegrado dos Habsburgos, com os seus seis milhões e meio de habitantes, na sua maioria de língua alemã. Em novembro de 1918, este novo Estado foi proclamado uma república democrática e ten- tou adotar o nome de Áustria Alemã, já que a maioria da população e dos seus líderes políticos almejava unir-se ao país vizinho do Norte. Os principais defensores políticos desta unificação eram um grupo de parti- dos de classe média que em 1920 se coligaram para formar o Partido Po- pular da Grande Alemanha (GDVP – Großdeutsche Volkspartei) e a Liga dos Camponeses, um pequeno grupo de interesse pró-alemão. O libera- lismo era frágil e depressa desapareceu enquanto partido autónomo. Os mais fervorosos nacionalistas pró-alemães eram os nacional-socialistas do NSDAP (Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei), um pequeno partido dissidente de raízes genuinamente austríacas que, no contexto de crise da década de 1930, evoluiria para um partido de massas. Uma vez que os nacional-socialistas se sentiam alemães, se bem que ligeira- mente diferentes dos alemães do Reich Alemão e da República de Wei- mar, isto resultou numa identificação dividida com o frágil e oportunista patriotismo austríaco. Os austríacos pró-alemães ansiavam pela Anschluss (unificação com a Alemanha) que lhes era negada pelos tratados de paz de Paris e que fora proibida em diversas outras ocasiões. Na Áustria do período de entre as guerras, esta questão constituía uma duradoura divi- são política que acabaria por conduzir ao fim da I República, em março de 1938.

Outra clivagem profunda resultava do contraste social e político entre as zonas alpinas rurais tradicionais do Oeste e do Sul e as regiões orientais industrializadas e Viena, onde se concentrava um quarto da população do país e onde persistiam as características sociais e económicas da antiga metrópole da Áustria-Hungria multinacional. Aqui, e por todo o país, as consequências da dissolução do império continuariam a fazer-se sentir ao longo de duas décadas.3

Durante a (em grande medida) pacífica Revolução Austríaca de 1918- -1920, a classe trabalhadora mobilizou-se em torno de um forte Partido Social-Democrata (SDAPÖ – Sozialdemokratische Arbeiterpartei Deu tsch-

A Vaga Corporativa

3Sobre este tema e os seguintes, ver E. Hanisch, Der lange Schatten des Staates: Österreich - ische Gesellschaftsgeschichte im 20. Jahrhundert (Viena: Ueberreuter, 1994); G. Botz, «The short- -and long-term effects of the authoritarian regime and of Nazism in Austria: The burden of a ‘second dictatorship’», in Totalitarian and Authoritarian Regimes in Europe. Legacies and Lessons from the Twentieth Century, eds. J. W. Borejsza e K. Ziemer (Nova Iorque e Oxford: Berghahn Books, 2006), 188-208.

- Österreichs). Os austro-marxistas adoptaram um programa radical de es- querda, mas defendiam políticas reformistas e tornaram-se os paladinos do Estado republicano e de profundas reformas sociais. Distanciando-se das tendências soviéticas que emanavam da Hungria revolucionária, não permitiram o avanço dos comunistas após 1919. Com o declínio da onda revolucionária à escala europeia e o seu afastamento do governo austríaco, o SDAPÖ dispôs-se a pôr em prática os seus ideais sociais e culturais na chamada «Viena Vermelha». Em consequência disto, e da sua retórica ra- dical, o SDAPÖ causou ansiedade entre os partidos da burguesia e os ca- tólicos, o que alimentou um antimarxismo crescente, que constituía o prin- cipal foco do poderoso Partido Social-Cristão (CSP – Christilchsoziale) liderado pelo político e padre católico Ignaz Seipel. Apoiados sobretudo pelo campesinato, a classe média urbana e uma parte dos trabalhadores católicos, o CSP e as organizações eclesiásticas permaneciam fiéis às crenças e aos estilos de vida tradicionais, ao mesmo tempo que defendiam vee- mentemente a ideia de um Estado austríaco independente. Muitos simpa- tizavam com a velha aristocracia e o último monarca habsburgo, enquanto os seus seguidores nas regiões ocidentais favoreciam uma espécie de de- mocracia camponesa. Durante a década de 1920, o CSP aliou-se ao GDVP e à Liga dos Camponeses numa coligação antimarxista que haveria de do- minar a política austríaca.

Durante a I República, os principais partidos políticos – SDAPÖ, CSP e os nacionalistas alemães – reuniram à sua volta sindicatos, redes sociais e associações culturais, tornando-se hostis aos grupos políticos que man- tinham organizações paramilitares. Esta hostilidade resultava da sua des- confiança relativamente à posição antidemocrática dos seus adversários e à capacidade do frágil aparelho estatal para garantir os procedimentos democráticos. Os partidos de centro e direita e o campesinato conserva- dor criaram a Heimwehr (Guarda Nacional), que se tornou o núcleo do fascismo austríaco, enquanto o SDAPÖ estabelecia as suas quasi-militares unidades de defesa. Com o agudizar das dificuldades económicas, as fa- lências de bancos e empresas e o desemprego maciço, os conflitos polí- ticos intensificaram-se e os atos de violência redundaram numa guerra civil de início latente e por fim aberta,4que abriu caminho ao fascismo

e a duas ditaduras: o regime de Dollfuss-Schuschnigg de 1933-1938 e o regime nazi de 1938-1945.

4G. Botz, Gewalt in der Politik: Attentate, Zusammenstöße, Putschversuche, Unruhen in Ös- terreich 1918-1938, 2.ª ed. (Munique: Fink, 1983); D. Bloxham, e R. Gerwarth, eds., Poli- tical Violence in Twentieth-Century Europe (Cambridge: Cambridge University Press, 2011).

O presente capítulo aborda o governo ditatorial de Engelbert Dollfuss e Kurt Schuschnigg – o autointitulado «Estado Corporativo Cristão» (Christlicher Ständestaat). Não obstante a existência de numerosos estu- dos e publicações abrangentes e detalhados, a natureza do regime de Dollfuss-Schuschnigg continua a ser alvo de discussão entre os estudiosos e os seguidores das principais Weltanschauungen (ideologias) na Áustria.5

Não se trata de uma mera questão de palavras: são também os conceitos e as simpatias ou antipatias políticas que determinam o uso das expres- sões berufsständisch (corporativista) ou austro-fascista. Esta última – à se- melhança de clérigo-fascista – foi comummente utilizada por autores so- ciais-democratas e esquerdistas pré-1938 e pós-1945, e por vezes é ainda utilizada hoje em dia,6ao passo que os historiadores conservadores, entre

outros, preferem os termos ständisch ou Ständestaat.7Até mesmo diversos

estudiosos não austríacos têm utilizado terminologia controversa nas suas tantas vezes esclarecedoras análises do regime em causa.8No entanto,

muitos dos autores menos tendenciosos e importantes editores de fontes têm usado os nomes dos dois governantes para designarem o seu regime ou para o classificarem como autoritário.9

A Vaga Corporativa

5Ainda «clássicos»: F. L. Carsten, Fascist Movements in Austria: From Schönerer to Hitler

(Londres: Sage, 1977); W. Wiltschegg, Die Heimwehr: Eine unwiderstehliche Volksbewegung?. (Viena: Geschichte und Politik, 1985); B. F. Pauley, Der Weg in den Nationalsozialismus: Ursprünge und Entwicklung in Österreich (Viena: Österreichischer Bundesverlag, 1988); «Va- rieties of fascism in Austria», ed. G. Botz, in Who Were the Fascists? Social Roots of European Fascism, eds. S. U. Larsen, B. Hagtvet e J. P. Myklebust (Bergen: Universitetsforlaget, 1980), 92-256; F. Wenninger e L. Dreidemy, eds., Das Dollfuss-Schuschnigg-Regime 1933- -1938: Vermessung eines Forschungsfeldes (Viena: Böhlau, 2013); I. Reiter-Zatloukal, C. Roth- länder e P. Schölnberger, eds., Österreich 1933-1938: Interdisziplinäre Annäherungen an das Dollfuß-Schuschnigg-Regime (Viena: Böhlau, 2012); G. Bischof, A. Pelinka e A. Lassner, eds., The Dollfuss-Schuschnigg Era in Austria: A Reassessment (New Brunswick, NJ: Transac- tion, 2003).

6Um estudo abrangente: E. Tálos, Das austrofaschistische Herrschaftssystem: Österreich 1933-1938 (Viena: Lit, 2013). Uma antologia de diversos ensaios clássicos: E. Tálos e W. Neugebauer, eds., Austrofaschismus: Politik, Ökonomie, Kultur 1933-1938, 5.ª ed. (Viena: Lit, 2005). Um estudo equilibrado: T. Kirk, «Ideology and politics in the state that nobody wanted: Austro-Marxism, Austrofascism, and the First Austrian Republic», Contemporary Austrian Studies, vol. 20 (2011): 81-98.

7G. Jagschitz, «Der Österreichische Ständestaat 1934-1938», in E. Weinzierl e K. Skal-

nik, eds., Österreich 1918-1938: Geschichte der Ersten Republik, vol. 1 (Graz: Styria, 1983), 497-515; H. Wohnout, Regierungsdiktatur (Viena: Böhlau, 1993; U. Kluge, Der Österreichis- che Ständestaat 1934-1938 (Munique: Geschichte u. Politik, 1984).

8J. Thorpe, «Austrofascism: Revisiting the ‘authoritarian state’ 40 years on». Journal of Contemporary History, vol. 45, n.º 2 (2010): 315-343.

9G. Enderle-Burcel, ed., Protokolle des Ministerrates der Ersten Republik, 1918-1938. secções

8-9 (Viena: Verlag Österreich, 1982-2013); A. Suppan, ed., Österreich: Außenpolitische Do- kumente der Republik Österreich 1918-1938, vol. 6-10 (Viena: Verlag Österreich Akademie 03 Vaga Corporativa Cap. 3.qxp_Layout 1 11/04/16 12:09 Page 64

Ao invés de desenvolverem uma perspetiva individualizadora, alguns estudos comparativos recentes situam o regime austríaco na categoria das ditaduras e movimentos de extrema-direita que marcaram a Europa de entre as guerras.10Acontece que estes foram fenómenos transnacionais

que copiaram e amalgamaram diferentes elementos e modos de gover- nação não democrática, desde democracias presidencialistas e ditaduras militares ou monárquicas, passando por todo o tipo de governos autori- tários, até regimes fascistas e totalitários propriamente ditos.11António

Costa Pinto e Aristotle Kallis enfatizaram o carácter híbrido e em contí- nua mutação da práxis ditatorial do regime.12Assim, em linha com o

meu anterior conceito de heterogeneidade fluida do regime de Dollfuss- -Schuschnigg,13o propósito do presente capítulo é destrinçar os diferentes

elementos e modos de governação não democrática da ditadura austríaca, e, particularmente, definir em que medida tal regime foi fascista, corpo- rativista e/ou autoritário e até que ponto as suas práticas foram conformes com as suas teorias e promessas corporativistas.

Wissenschaften, 2006-2014); W. Goldinger, ed., Christlichsoziale Partei: Protokolle des Klub- vorstandes der Christlichsozialen Partei: 1932-1934 (Viena: Geschichte Politik, 1977); W. Ma- derthaner e M. Maier, eds., «Der Führer bin ich selbst»: Engelbert Dollfuß – Benito Mussolini, Briefwechsle (Viena: Löcker, 2004); R. Kriechbaumer, ed., Österreich! Und Front Heil! (Viena: Böhlau, 2005); ver também: K. Schuschnigg, Im Kampf gegen Hitler: Die Überwindung der Anschlußidee. Viena: Molden, 1969; K. Schuschnigg, The Brutal Takeover: The Austrian Ex- Chancellor’s Account of the Anschluss of Austria by Hitler (Londres: Weidenfeld and Nicolson, 1971); os estudos de R. J. Rath sobre «O ministério de Dollfuss», in Austrian History Year- book, vol. 29 (1998), 161-184; vol. 30 (1999), 65-101; vol. 32 (2001), 125-147; E. Holt- mann, Zwischen Unterdrückung und Befriedung: Sozialistische Arbeiterbewegung und autoritäres Regime in Österreich 1933-38 (Viena: Geschichte und Politik, 1978); P. Pasteur, Les états au- toritaires (Paris: Armand Colin, 2007).

10S. G. Payne, A History of Fascism, 1914-1945(Londres: UCL, 1995); R. O. Paxton, The Anatomy of Fascism (Londres: Allen Lane, 2004); M. Mann, Fascists (Cambridge: Cam- bridge University Press, 2004).

11A. Bauerkämper, «Transnational fascism: Cross-border relations between regimes

and movements in Europe, 1922-1939», in East Central Europe, vol. 37, n.os2-3 (2010),

214 -246; M. Durham e M. Power, eds., New Perspectives on the Transnational Right (Nova Iorque: Palgrave Macmillan, 2010); J. J. Linz, «Totalitarian and authoritarian regimes», in Handbook of Political Science, vol. 3: Macropolitical Theory, eds. F. I. Greenstein e N. W. Polsby (Reading, MA: Addison-Wesley, 1975), 175-411.

12A. C. Pinto, e A. Kallis, eds., Rethinking the Nature of Fascism: Comparative Perspectives

(Londres: Palgrave, 2011), 1-9 e 272-282; R. Griffin, The Nature of Fascism (Londres: Rout - ledge), 1993.

13Para o meu modelo de quatro fases, ver G. Botz, Gewalt in der Politik, 234-246;

G. Botz, «The coming of the Dollfuss-Schuschnigg regime and the stages of its develop- ment», in Rethinking Fascism and Dictatorship in Europe, eds. A. C. Pinto e A. Kallis (Lon- dres: Palgrave, 2014), 121-153.