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Em maio de 1932, com apenas 40 anos, Engelbert Dollfuss subiu ao poder com a intenção de resolver a crise política e económica emergente, se necessário de modo extrademocrático.14À semelhança dos extremistas

de direita e fascistas de diversas sociedades do pós-guerra, Dollfuss pos- suía a célebre «experiência da frente». Durante a década de 1920 con- quistara reconhecimento enquanto tecnocrata do sector agrícola, fazendo pressão em prol dos interesses do campesinato.15O seu governo baseava-

-se no CSP, à época o segundo maior partido no Parlamento (National-

rat), em aliança com a Liga Camponesa e um grupo de representantes

da Heimwehr fascista. Este governo de coligação era instável e muitas vezes contava apenas com uma maioria de um único voto. Dollfuss e o seu principal adversário, o SDAPÖ, o maior partido no Parlamento desde 1930, recusavam coligar-se: a distância tática e ideológica que os separava era demasiado ampla.

O NSDAP alcançou algum sucesso antes da Grande Depressão, e tinha dois anos de atraso em relação ao seu congénere alemão. Em 1930 obteve apenas 111 mil votos (3%) a nível nacional, mas nas eleições re- gionais de três Länder (regiões ou estados federais), em abril de 1932, al- cançou 16% dos votos. Este significativo avanço nazi foi em grande me- dida conseguido às custas dos partidos burgueses governantes, e em menor medida do SDAPÖ. A situação do governo complicou-se ainda mais no inverno de 1933, com a convicção geral de que as eleições par- lamentares seguintes confirmariam o avanço do NSDAP. Hitler acabara de obter os seus sucessos eleitorais na Alemanha, fornecendo um verda- deiro estímulo aos nazis austríacos.16

A 4 de março de 1933, Dollfuss aproveitou uma medida processual do Parlamento e um erro tático do SDAPÖ para declarar o encerramento do Parlamento, o que lhe permitia governar por decreto de emergência. A decisão agradou à Heimwehr e a Mussolini na Itália, bem como a di- versos membros do CSP.

A Vaga Corporativa

14F. Schausberger, Letzte Chance für die Demokratie: Die Bildung der Regierung Dollfuß I im Mai 1932 (Viena: Böhlau, 1993).

15J. W. Miller, Engelbert Dollfuss als Agrarfachmann (Viena: Böhlau, 1989), 72-115. 16G. Botz, «Changing patterns of social support for Austrian National Socialism (1918-

-1945)», in Who Were the Fascists, eds. S. U. Larsen, B. Hagtvet e J. P. Myklebust, 202- -224; D. Hänisch, Die Österreichischen NSDAP-Wähler: Eine Empirische Analyse ihrer Politis- chen Herkunft und ihres Sozialprofils (Viena: Böhlau, 1998), 72-76.

O ministro da Justiça de Dollfuss, Kurt von Schuschnigg, à seme- lhança de outros políticos de direita nacionais e estrangeiros, tinha já defendido a suspensão do Nationalrat (com a sua forte oposição maio- ritariamente social-democrata), bem como a governação sem parla- mento em determinadas circunstâncias.17Nisto fora influenciado pelo

exemplo dos governos presidenciais de Heinrich Brüning na Alemanha. Em outubro de 1932, a Lei de Estímulo à Economia de Guerra (KWEG – Kriegswirtschaftliches Ermächtigungsgesetz) de 1917 foi utilizada para testar a governação extra-parlamentar no célebre caso da punição dos diretores do Credit-Anstalt, acusados de serem responsáveis pelo colapso deste banco em 1931. Os membros das elites políticas tradicionais da Áustria,18e não apenas aqueles que pertenciam ao CSP, conheciam bem

o princípio da governação sem parlamento dos Habsburgos, baseado na alínea 14 da constituição austríaca de 1867. A governação por legis- lação de emergência e decretos policiais tinha sido comum durante a I Guerra Mundial, o que preparou o terreno para as atitudes autoritárias da década de 1930.19

Assim, a KWEG tornou-se o instrumento legal, ou quase, para abolir direitos constitucionais e garantias de ação política e de liberdade de im- prensa, bem como para estrangular os social-democratas. Embora Doll- fuss, no receio de um avanço nazi, desejasse evitar eleições gerais, o seu principal objetivo continuava a ser o de eliminar a oposição do SDAPÖ às políticas de austeridade defendidas pelos conservadores, os industriais e os políticos de direita austríacos, bem como pelos supervisores da So- ciedade das Nações, com vista à reconstrução financeira (e a uma reo- rientação política).

Com este silencioso «golpe de Estado por etapas»,20Dollfuss bloqueou

o Nationalrat e neutralizou o tribunal constitucional que se preparava para declarar ilegais tais medidas. As tentativas do SDAPÖ para travar Dollfuss através de medidas constitucionais e legais revelar-se-iam infru-

17Uma vez que a república austríaca tinha proibido os títulos nobiliárquicos, Schusch -

nigg só pôde usar o «von» depois de 1934. Ver E. Tálos, e W. Manoschek, «Zum Konsti- tuierungsprozeß des Austrofaschismus», in Austrofaschismus, eds. E. Tálos e W. Neuge- bauer, 13-14.

18G. Stimmer, Eliten in Österreich: 1848-1970, vol. 1 (Viena: Böhlau, 1997), 442-454;

vol. 2, 668-732.

19E. Wiederin, «Christliche Bundesstaatlichkeit aufständischer Grundlage», in Österreich 1933–1938: Interdisziplinäre Annäherungen an das Dollfuß-/Schuschnigg-Regime, eds. I. Rei- ter-Zat loukal, C. Rothländer e P. Schölnberger (Viena: Böhlau, 2012), 31-41.

20P. Huemer, Sektionschef Robert Hecht und die Zerstörung der Demokratie in Österreich (Mu-

tíferas. A ameaça de convocação de uma greve geral poderia ter restau- rado o equilíbrio em circunstâncias normais, mas foi embotada pelo de- semprego maciço. Contudo, o SDAPÖ, que tinha alertado para o perigo de uma ditadura burguesa no seu programa partidário de 1926, hesitou em recorrer a medidas de violência defensiva através da sua Liga de De- fesa Republicana (Republikanischer Schutzbund). Esta organização parami- litar acabou por ser proibida, enquanto os sindicatos eram cada vez mais empurrados para segundo plano e a representação dos social-democratas nos governos regionais e locais enfraquecia. O pequeno partido comu- nista austríaco fora igualmente ilegalizado.

A partir da década de 1920, os nazis austríacos orquestraram uma série de atentados mortíferos contra social-democratas, judeus e membros da

Heimwehr e de organizações católicas conservadoras.21Apoiados pela Ale-

manha, tornaram-se os mais perigosos adversários da Áustria de Dollfuss. Este implementou uma série de contramedidas policiais e diplomáticas, o que levou Hitler a impor a sanção da «taxa de mil marcos» (Tausend-

Mark-Sperre) contra o turismo e a indústria da Áustria em maio de 1933.

No mês seguinte, nos seus esforços de combate ao nacional-socialismo, o governo austríaco ilegalizou o NSDAP, a SS, a SA e a ala estíria pró- nazi radical da Heimwehr.

O governo de coligação de Dollfuss era instável e propenso à partilha do poder. A Liga Camponesa, cada vez mais desconfortável com o curso autoritário e antialemão que Dollfuss seguia, abandonou a coligação em 1933, enquanto a Heimwehr, que constituía o seu principal aliado e rival, ganhava influência. A liderança da Heimwehr, composta sobretudo por intelectuais e aristocratas de província (que empregavam trabalhadores rurais e pequenos agricultores), fornecia ao regime um elemento social- mente novo e mais jovem. Dollfuss entregou a diversos líderes da Heim-

wehr cargos importantes no governo, na polícia e no aparelho de segurança

do Estado. Emil Fey tornou-se o principal homem forte da Heimwehr. Outra figura em ascensão era o inconstante Rüdiger von Starhemberg, descendente da velha aristocracia austríaca.

Havia muito que a Heimwehr adoptara a teoria do verdadeiro Estado proposta por Othmar Spann e o seu círculo de Viena. As ideias de Spann aliavam uma imagem idealizada da Idade Média ao romantismo político oitocentista de Adam Müller, autor célebre que se tornara uma fonte de inspiração para conceitos católicos de ordem e sociedade corporativos.

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21G. Botz, Gewalt in der Politik..., 215-218.

Estabelecendo uma ponte intelectual com os conservadores católicos austríacos, Spann inspirou gerações de estudantes de todas as tendências antimarxistas, incluindo diversos pioneiros do nacional-socialismo, os alemães dos Sudetas de Konran Henlein e os propagandistas alemães da revolução conservadora.22(Mesmo depois de 1945 e da morte de Spann,

as suas ideias continuaram a exercer uma problemática influência sobre as universidades austríacas e os políticos de centro-direita.)

Othmar Spann afirmou que o Estado corporativo (Ständestaat) era a materialização da sua conceção universalista de sociedade, e procurou sistematizar as estruturas corporativistas de Mussolini numa variante que se adequasse à realidade austríaca;23porém, não reconheceu a Consti-

tuição corporativa de 1934 como fruto das suas ideias, e raramente con- cordou em pleno com as posições contemporâneas de direita direta- mente influenciadas pelas suas teorias (crê-se que Dollfuss tenha assistido às suas preleções na Universidade de Viena).

Ao assumir o poder, Dollfuss foi saudado pelo doente terminal Ignaz Seipel, o padre-chanceler que tinha dirigido a viragem antidemocrática dos cristãos sociais desde 1927, quando, no seguimento de um levanta- mento operário em Viena e do incêndio do Palácio da Justiça,24começara

a explorar sistematicamente os receios antimarxistas. No seu percurso an- tidemocrático, Dollfuss contou também com a boa vontade da hierar- quia católica e das muitas organizações católicas laicas, como a Azione

Cattolica e as associações de estudantes católicos (CV – Cartellverband),

tradicionalmente avessas à democracia.25A concordata assinada com a

Santa Sé em 5 de junho de 1933 concedia à Igreja Católica da Áustria amplos privilégios, sobretudo nas áreas da educação e da família, e tor- nar-se-ia um elemento integrante do vindouro Ständestaat cristão.

A pedra angular da teoria católica de corporativismo social era a encí- clica Quadragesimo Anno de Pio XI, de maio de 1931. As suas formulações faziam eco das de Mussolini, embora estivessem mais próximas das con-

22E. von Salomon, Der Fragebogen (Estugarda: Europäischer Buchklub, 1951), 295-320;

R. Urbach, «Romatische Theorie und politische Praxis in Österreich zwischen Restaura- tion und Ständestaat», in Ungleichzeitigkeiten der Europäischen Romantik, ed. A. von Bor- mann (Würzburg: Königshausen, 2006), 365-394.

23O. Spann, Der wahre Staat: Vorlesungen über Abbruch und Neubau der Gesellschaft, 2.ª

ed. (Leipzig: Quelle & Meyer, 1923), 215; R. Eatwell, Fascism: A History (Londres: Pen- guin, 1997,) 74-80.

24K. von Klemperer, Christian Statesman in a Time of Crisis (Princeton, NJ: Princeton

University Press, 1972).

25E. Hanisch, Die Ideologie des politischen Katholizismus in Österreich, 1918-1938 (Viena:

ceções católicas de corporativismo. O corporativismo político adotado por Mussolini na Itália e promovido na Áustria por Spann e pela Heim-

wehr era abertamente ditatorial. Pio XI estava sobretudo preocupado em

promover uma ordem social católica corporativa e sem classes, capaz de harmonizar os interesses do capital e dos trabalhadores, dos patrões e dos assalariados. Estas ideias tinham sido originariamente formuladas pelo social-catolicismo do século XIXe na encíclica Rerum Novarum de

Leão XIII, em 1891. As encíclicas papais apelavam a uma resolução da questão social mediante o princípio da subsidiariedade e a superação das divisões de classes.26Acreditava-se que a implementação deste modelo

seria possível sem recurso à força, o que era altamente problemático dadas as circunstâncias. Assim, muitos teólogos e políticos católicos coi- biam-se de apoiar abertamente as ditaduras que se afirmavam corporati- vos (cristãs). A encíclica de 1931 foi particularmente influente entre os católicos de toda a Europa, mas sobretudo os da Áustria, do Sul da Ale- manha, da Polónia e do Sudoeste europeu.

Na prática, contudo, o corporativismo social católico fundiu-se com o corporativismo político, abrindo caminho à sua implementação for- çada. Aspetos de ambas as versões de corporativismo estão presentes no discurso que Dollfuss proferiu na Trabrennplatz de Viena a 11 de setem- bro de 1933, véspera do 250.º aniversário da libertação do cerco turco.27

Dollfuss apontou a ordem berufsständisch como a sua linha de orientação fundamental, caracterizando-a com uma série de atributos que passariam a marcar a linguagem oficial do seu regime: «Queremos uma Áustria ger- mânica, cristã, social com uma ordem corporativa baseada em grupos profissionais e sob uma liderança forte e autoritária.» E, antes de apelar a uma nova cruzada contra o liberalismo, a democracia, o capitalismo e o marxismo, Dollfuss exaltou a história grandiosa, a cultura cristã e a li- derança autoritária austríacas, enfatizando o estilo de vida tradicional que ele e muitos dos seus contemporâneos tinham conhecido durante os seus anos de formação: «Na casa da quinta, onde, ao serão, o agricultor e os seus criados comem a sopa à mesma mesa e da mesma tigela após o trabalho partilhado, existe uma união corporativa, um pensamento cor-

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26K. Ebner, «Politische Katholizismen in Österreich 1933-1938: Aspekte und Deside-

rate der Forschungslage», in Das Dollfuss-Schuschnigg-Regime, eds. F. Wenninger e L. Drei- demy, 174.

27G. Botz, «Dollfuß’ Trabrennplatzrede, ‘harmonische Bauernfamilie’ und die Fiktion

des ‘Ständestaats’», in Das Vorgefundene und das Mögliche: Beiträge zur Gesellschafts- und So- zialpolitik zwischen Moral und Ökonomie. Festschrift für Josef Weidenholzer, eds. H. Seckauer, H. C. Stelzer-Orthofer e B. Kepplinger (Viena: Mandelbaum, 2015).

porativista. Ademais, tal relação é reforçada quando todos se ajoelham depois do trabalho para rezarem o rosário.»28

Dollfuss estava certamente ciente das dificuldades de construir o seu

Ständestaat sobre um modelo idealizado da família camponesa pré-mo-

derna: uma tão retrógrada utopia só em parte seria compatível com a plena realização do corporativismo. Consequentemente, a sua imple- mentação teria de ser dividida em etapas preparatórias e impulsionada por um autoritarismo inequívoco.29

Ao longo dos meses seguintes, Dollfuss lançou mãos à principal tarefa: a eliminação do seu principal inimigo, ou seja, o socialismo. Em vez de se voltar para as potências democráticas ocidentais, Dollfuss procurou em Mussolini um aliado que garantisse a independência da Áustria relativa- mente à Alemanha nazi. A Heimwehr, de tendência pró-italiana, aumentou a pressão sobre Dollfuss com vista à abolição do que restava da constitui- ção democrática de 1920-1929 e ao esmagamento das derradeiras bases de poder do SDAPÖ. Em desespero de causa, a organização paramilitar socialista insurgiu-se. Uma série de escaramuças nas ruas e o bombardea- mento de bairros operários vienenses e de zonas industriais de todo o país puseram fim à revolta desesperada dos trabalhadores. Os confrontos de 12-15 de fevereiro de 1936 saldaram-se em 126 mortos do lado das forças governamentais e em quase o dobro desse número do lado dos insurrectos e da população civil. Seguiu-se a ilegalização do SDAPÖ e o encarcera- mento de milhares de socialistas em Wöllersdorf e outros campos de de- tenção recém-construídos.30Estes incidentes marcaram o fim da demo-

cracia na Áustria e o fortalecimento da ditadura de Dollfuss.