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2.1 História da retórica e seus primeiros personagens

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É difícil esboçar com muitos detalhes a cronologia da retórica, pois existem poucas referências sobre o assunto, textos que permaneceram no latim, e, ainda, é necessário retratar os acontecimentos ideológicos para entendê-la. Roland Barthes, na década de 70, foi quem chegou mais próximo desta cronologia, criando um esboço de tratamento da retórica antiga.

Barthes (1975) retrata que a retórica é uma verdadeira autoridade, mais ampla e mais persistente que qualquer outra dominação política, por suas extensão e permanência, fez “malograr o próprio quadro da ciência e da reflexão históricas, ao ponto de por em questão a própria história e de obrigar a conceber o que se pode chamar, alias, uma história monumental” (p. 150).

O desprezo científico unido à retórica participaria, então, dessa recusa geral em reconhecer a multiplicidade, a superdeterminação. Em que pesem as variações internas dos sistemas, a retórica, lembremos, reinou no Ocidente durante dois milênios e meio, de Górgias a Napoleão III; tudo o que ela, imutável, impassível e quase imortal, viu nascer, crescer, desaparecer, sem comover-se nem se alterar: a democracia ateniense, as realezas egípcias, a República Romana, o Império Romano, as grandes invasões, o feudalismo, a Renascença, a monarquia, a Revolução; assimilou regimes, a religião, civilizações; agonizante desde o Renascimento, levou três séculos para morrer; e ainda não havia certeza de sua morte. A retórica dá acesso ao que chamaríamos de uma supercivilização: o Ocidente, história e geográfica: foi a única prática (com a gramática, nascidas depois dela) através da qual nossa sociedade reconheceu a linguagem, sua soberania (Kyrosis, como disse Górgias), que era também, socialmente, uma “senhorialidade”; a classificação quem lhe impôs é o único traço verdadeiramente comum de conjuntos históricos sucessivos e diversos, como se existisse, superior às ideologias de conteúdos e às determinações diretas da história, uma ideologia da forma e como se existisse, para cada

sociedade uma identidade taxionômica, uma sócio-lógica, em nome da qual seria impossível definir uma outra história, uma outra socialidade, sem desfazer aqueles já reconhecidos em outros níveis (BARTHES, 1975, p.150).

A tradição da retórica nasce no início século V a.C. (BARILLI, 1979), quando dois soberanos sicilianos, Gelon e Hieron, fizeram desterros, mudanças de povoado e exportação, para povoar a Siracusa e alastrar terras aos mercenários. Com a situação, ambos foram retirados de seus tronos por uma rebelião democrática e o povo optou em voltar à vida que levam anteriormente. Na ocasião, aconteceram diversos processos jurídicos, mas, naquela época, os direitos de propriedade eram ainda confusos e duvidosos. Tais processos conseguiram movimentar grandes júris populares, diante dos quais, precisava-se convencer e ter boa eloqüência. Essa eloquência (BARTHES, 1975), participando simultaneamente da democracia e da demagogia, do judiciário e do político (o que se chamou depois de deliberativo), transformou-se rapidamente em objeto de ensino.

Os primeiros professores da matéria foram Empédocles de Agrigento, Corax, que foi seu aluno, e Tísias, e esta disciplina com rapidez as fronteiras devido aos negociantes que começaram a contestar de suas habilidades, como havia acontecido em Siracusa e Atenas.

Entre os professores, Corax foi quem primeiro apresentou as cinco principais partes da oratio, que mais tarde formou o discurso oratório – o exórdio, a narração, a argumentação, a digressão e o epílogo.

Sodré (1948) acrescenta os nomes de Górgias, Protágoras, Lysias, Isócrates e Antifon, também como um dos primeiros estudiosos da disciplina.

Lysias, que era natural de Siracusa, que não podia pronunciar sua naturalidade em Atenas, pois a legislação da cidade somente autorizava direitos civis aos atenienses natos. Seu trabalho era escrever discursos para os outros. Conta-se (SODRÉ, 1948, p. 53) que Lysias escreveu uma defesa para Sócrates pronunciar perante o Tribunal com argumentos formidáveis.

Isócrates teve um papel de destaque na história da retórica grega e foi um dos maiores retóricos e logografos15 de sua época. Era um rapaz tímido, não se pronunciava

15 Na aquela ocasião, não existia a profissão de advogado e a população precisava-se se defender, em júri,

em público, mas era de rara inteligência, observador, capaz de perceber com rapidez coisas sutis e, ainda, soube ensinar muitos jovens o desafio de ser um bom retórico.

Antifon, também um grande mestre a eloquência, abriu, em Atenas, um escola de destaque.

Protágoras foi o primeiro a levar a retórica para a Grécia continental, morou na Sicília e esteve em contato com Córax e Tísias. Seu maior destaque foi o pensamento retórico pitagórico, quando elaborou de uma forma independente dos pitagóricos, tendo uma oposição com indicação a aversão à matemática e à música. Reelaborou os conceitos retóricos, de uma nova forma que se desvincula do moralismo dos pitagóricos. Também, elaborou a teoria da “oportunidade retórica”, em plano semântico – expressivo, distinguindo pela primeira vez os tempos do verbo e discorreu sobre a potência do kairós16·, com um novo sentido desta expressão para melhor criar o discurso.

Outro conceito de Protágoras é orthoépeia, que tem relação com o de Kairós, e é o predicado de encontrar palavras convenientes à expressão e à própria potência do raciocínio (PLEBE, 1978, p. 09).

Mas o ideal da retórica protagórica é expresso na célebre formula

to tòn hétto kreítto poiein conservada por Aristóteles, cuja tradução mais provável é “tornar mais potente o discurso menos valido”. Nisto vê-se principalmente uma revalorização do mundo parmenídico da doxa que, como dissemos, devia ser o âmbito natural do desenvolvimento de uma retórica (PLEBE, 1978, p.10).

Górgias foi mestre de Tucídides, e o interlocutor do sofista Sócrates no diálogo de Platão intitulado Górgias. Sua importância foi ter julgado a retórica como um discurso erudito, objeto estético, de linguagem soberana e com antepassado na literatura (BARTHES, 1975), criando, assim, o terceiro gênero (após o judiciário e o deliberativo), o epidítico, quando a escrita deixa de ser tratada apenas como discurso, e passa a ser considerado como prosa decorativa, de uma prosa-espetáculo.

logografos, que eram elaboradores de discurso escritos destinados a serem pronunciados por pessoas interessadas.

16 O termo kairós significa oportunidade. Tal conceito é entendido como oportunidade retórica e prática

que é preciso saber o modo certo e as palavras convenientes para comunicar-se com os diferentes grupos de pessoas. Os Pitágoras entendiam Kairós como uma harmonia numérica.

Górgias substitui o código imanente à própria prosa, palavra com a mesma consonância, simetria das frases, reforço das antíteses por assonâncias, metáforas, aliterações. Em destaque, apresentar uma perspectiva paradigmática traz a prosa à retórica e a retórica à estilística.

Um segundo momento da história da retórica grega deve-se conferir a Platão (428-347), porém de forma negativa, coincidindo com o mais severo esquecimento ou abatimento que a retórica permitiu. Se os Sofistas transformaram fantasiosa a verdade em favor da aparência, em Platão verifica-se, pelo contrario, a mais límpida afirmação da episteme17 sobre a doxa18e, sobretudo o modo solitário, calado, da pesquisa própria de quem avança para a verdade – episteme (pesquisa que não se refere à multidão, as massas). O objetivo de Platão é extrair o direito de arbitrar, de sugerir, de resolver, de fazer uma anti-democracia.

Platão afirma, sobretudo, que a retórica não é uma ciência, nem uma verdadeira arte, mas sim uma prática empírica. Ou seja, ela – a retórica – não apresenta fundamento “para as coisas que oferece ou explica a sua natureza, de modo que não pode falar da causa de cada uma delas” (PLEBE, 1978, p. 23). Platão preocupa-se em situar a retórica não como uma arte, e, sim, como uma dóxa (opinião).

Barthes (1975) descreve que Platão aborda duas retóricas, uma boa e uma má. A primeira retórica de fato é formada pela logógrafia, trabalho que consiste em escrever o discurso (não se controverter mais somente de retórica judiciária; a somatória da nação é respeitável); seu objeto é a verossimilhança, a ilusão; é a retórica dos retores, das escolas, de Górgias, dos Sofistas. II. A segunda retórica é a de direito, é a verdadeira retórica, filosófica ou ainda a dialética; seu objetivo é a verdade; Platão chama-a de psicagia, formação das almas pela palavra (p.153).

A oposição da boa e da má retórica, da retórica platônica e da sofística, faz parte de um paradigma mais extenso; de um lado, as bajulações, as astúcias servis, as falsificações; do outro, a rejeição de toda complacência, a rudeza; de um lado as empíricas, as rotinas; de outro as artes: as astúcias do prazer são uma falsificação desprezível das artes do Bem: a retórica é a falsificação da Justiça, a sofística da legislação, a cozinha da medicina, toilette da ginástica: a retórica (dos logógrafos, dos retores, dos sofistas) não é, pois, uma arte (BARTHES, 1975, p.154).

17 Episteme refere-se ao verdadeiro conhecimento.

18 Doxa tem o significado crença comum ou opinião popular. Era utilizada pelos retóricos como

O mesmo autor relata que a verdadeira retórica é uma psicagogia, pois exige um conhecimento total, desinteressado, e geral. Tal saber tem como meta a correlação ou o intercâmbio que liga as espécies de almas e as espécies de discurso. A retórica de Platão arreda o escrito e procura uma conversação pessoal, que fundamenta seu discurso entre o diálogo do mestre e do discípulo. Pensar comum ou dóxas pode ser a divisão da dialética.

Platão busca aproximar a essência da retórica para uma análise mais perspicaz, distingue a retórica não só da dialética, como também da retórica sofística. A separação acontece quando Sócrates afirma que “Pólo, por tudo o que disse, demonstra ter exercitado mais na chamada retórica do que na dialética” (apud, PLEBE, 1978, p. 24). A dialética, então, seria para Platão uma arte de discussão que submerge tanto a forma quanto o conteúdo.

Platão revela que a retórica não é a única arte de persuasão, e nega que ela seja uma técnica de afirmação, a não ser que ela demande de “um espírito imaginativo e ousado, e, por natureza, extraordinariamente hábil no trato com os homens” (apud PLEBE, 1978, p. 25). O pensamento platônico, também, reflete que a retórica é simplesmente formal, e, portanto, indolente ao seu conteúdo; não se preocupa em conhecer os assuntos, quer apenas de alcançar seus objetivos.

Observa-se que a dialética platônica é, na realidade, um exemplo daquilo que será depois em Aristóteles o logos analítico. A dialética a que Platão se refere é, na verdade, um empenho analítico de degeneração dos discursos, que, até então, eram construídos como primordiais e utilizava-se de algumas categorias. A desconstrução realizada faz parte da mentalidade analítica desprezada pelos sons das palavras, “os nomes são como imagens, as cópias das coisas, e é, portanto, conveniente que se revelem o mais transparente possível, sendo reduzidos a um papel instrumental, de pró- memória, de sinais úteis, privados, todavia de um relevo autônomo” (BARILLI, 1979, p. 18).

Também é verdade que o diálogo, a conversa a dois, a troca de argumentos tem uma função insubstituível, na economia da dialética platônica, não se pode substituir indivíduos e as expressões por símbolos literais, e ao contrario se verificará na analítica aristotélica.

Os dialéticos, ou aqueles que vivem da retórica, sustentam duas influências sólidas. De um lado, busca-se o termo concreto e incondicional da retórica, e de outro, um movimento descendente, que espera atingir o inseparável. “Esta ‘decida’ é uma

escada: em cada etapa, ou degrau, dispõe-se de dois termos: deve-se escolher um contra o outro, para reiniciar a descida e chegar a um novo binário de que se partirá novamente” (BARTHES, 1975, p. 154).

Exemplo da definição, descrita por Barthes, progressiva do sofista:

Quadro 1 – Sistematização da Retórica de Barthes (1975).

Barthes relata que esta retórica divisional, que se contrapõem à retórica silogística de Aristóteles, parece mais um programa cibernético, digital: cada opção gera a seguinte alternativa, ou ainda a estrutura pragmática da linguagem, “cujos binários comportam um termo marcado e um não-marcado. Aqui a expressão marcada torna a lançar o jogo alternativo. Mas donde vem a marca?” (BARTHES, 1975, p. 155). É, neste exemplo utilizado pelo pesquisador, que se encontra retórica de Platão: no diálogo platônico, a marca é assegurada por uma concessão do respondente (discípulo). A retórica de Platão supõe dois interlocutores e um que outorga: é a condição do movimento, que ele se refere. Assim todos esses fragmentos que localizamos nos diálogos de Platão e que nos fazem sorrir, quando não nos aborrecemos, por sua simplicidade e banalidade manifesta, são na realidade “marcas” estruturais, atos retóricos.

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