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Actualmente, existem mais de 50 espécies micobacterianas reconhecidas internacionalmente pelo Comité Internacional de Bacteriologia Sistemática. Sabemos hoje que a maioria destas espécies não é patogénica para o homem. Em geral, as micobactérias encontram-se na flora saprófita do homem e no ambiente, sendo isoladas principalmente do solo, mas existindo também na água doce e na água do mar. A par destas micobactérias saprófitas, que inalamos e ingerimos regularmente, existe um número limitado de espécies que apenas sobrevive no estado patogénico estrito para o homem e para certos animais. H. David, e mais tarde N. Rastogi, (David, 1976; David, Brum, Prieto, 1994; Rastogi, Legrand, Sola, 2001) propuseram a classificação clínica

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das micobactérias em três grupos: estritamente patogénicas, potencialmente patogénicas ou oportunistas, e raramente patogénicas (tabela 1).

Tabela 1 – Classificação das micobactérias segundo o risco de infecção (adaptado de David, 1976; David, Brum, Prieto, 1994; Rastogi, Legrand, Sola, 2001

Classificação Espécie

Estritamente

patogénicas M. tuberculosis, M. bovis, M. africanum, M. leprae, M. ulcerans, M. haemophilum Potencialmente

patogénicas ou oportunistas

M. avium, M. intracellulare, M. scrofulaceum, M. kansasii, M. xenopi, M. genavense, M. simiae, M. malmoense, M. szulgai, M. marinum, M. fortuitum, M. chelonae, M. shimoidei, M. asiaticum

Raramente

patogénicas M. gordonae, M. abscessus, M. thermorresistible, M. microti, M. triviale, M. gastri, M. terrae, M. flavescens, entre outras

Dentro do género Mycobacterium existe um número de espécies próximas agrupadas em complexos, de acordo com as suas características genéticas, fenotípicas e culturais. O complexo Mycobacterium tuberculosis inclui as espécies Mycobacterium

tuberculosis, Mycobacterium bovis, Mycobacterium africanum, Mycobacterium microti

e, mais recentemente, Mycobacterium canetti (Roth, Fisher, Hamid et al. 1998; Van Soolingen, Hoogenboezem, de Haas et al. 1997) e Mycobacterium pinipedii (Cousins, Bastida, Cataldi et al., 2003).

Das espécies referidas do complexo Mycobacterium tuberculosis, distinguem-se a

Mycobacterium tuberculosis, Mycobacterium bovis e Mycobacterium africanum devido

à sua elevada patogenicidade no ser humano. Nos países desenvolvidos, Mycobacterium

bovis e Mycobacterium africanum raramente são causa de doença, sendo a maioria dos

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A patogenia da tuberculose resulta da uma interacção contínua entre o hospedeiro e o bacilo. A infecção tuberculosa origina uma dupla resposta imunológica, humoral e celular. A primeira depende da produção de anticorpos, desconhecendo-se até à data a sua função. A segunda, a imunidade celular, desempenha um papel protector importante desencadeado pelos macrófagos e pelos linfócitos T.

Sabe-se que a tuberculose é uma infecção não obrigatoriamente seguida de doença. O

Mycobacterium tuberculosis é transportado em partículas de 1 a 5 µm, em suspensão na

atmosfera, que são expelidas por pessoas com tuberculose pulmonar ou das vias aéreas, através da tosse, espirro ou da fala.

A história natural da infecção tuberculosa pode ser dividida em quatro fases principais (Dannenberg, 1989; Flynn, Chan, 2001; Ellner, 1997):

A primeira fase do processo fisiopatológico, em que não há multiplicação bacteriana,

inicia-se quando as partículas infectadas pelo Mycobacterium tuberculosis atingem os alvéolos pulmonares de um indivíduo susceptível, e os bacilos são fagocitados pelos macrófagos alveolares, podendo ou não destruí-los. Esta destruição depende das propriedades microbiocidas dos macrófagos, da virulência do bacilo e ainda do número de bacilos existentes nas partículas inaladas, que se calcula serem entre 1 a 10. Esta reduzida carga antigénica não é suficiente para provocar uma resposta imunitária.

A segunda fase instala-se quando os macrófagos são incapazes de destruir ou inactivar o

bacilo, que se vai dividindo no seu interior. Após divisões sucessivas, o macrófago é destruído e um grande número de bacilos vai infectar outros macrófagos. Numerosos monócitos e macrófagos, da circulação sistémica, chegam então ao local da infecção. Estes novos e imaturos macrófagos fagocitam rapidamente os bacilos libertados. Nesta fase estabelece-se uma relação de simbiose entre os macrófagos e os bacilos, sem se

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lesarem mutuamente. A multiplicação micobacteriana progride, e cada vez mais macrófagos e bacilos se acumulam na lesão.

A terceira fase começa quando termina a multiplicação das bactérias, e o número de

bacilos viáveis é suficiente para se dar uma resposta imunitária celular. Surge uma lesão inicial, um pequeno foco granulomatoso primário – foco de Ghon – cujo número de bacilos pode ultrapassar os cem mil. Os bacilos são drenados para os gânglios linfáticos regionais (na maioria das vezes hilares e mediastínicos), onde continuam a dividir-se, e posteriormente atingem a corrente sanguínea, sendo então disseminados para diversos órgãos. Esta disseminação é acompanhada de proliferação bacteriana, e, após duas a dez semanas, o sistema imunitário nos indivíduos imunocompetentes interrompe este processo, ficando alguns dos bacilos em dormência, mas viáveis durante um número indeterminado de meses ou anos. Este estádio de contenção da multiplicação bacilar designa-se por infecção tuberculosa latente ou tuberculose-infecção (Flynn, Chan, 2001; Kunst, 2006; Cohn, 2000; Powell, 2008).

A imunidade celular permite estabelecer um mecanismo eficaz de defesa contra o

Mycobacterium tuberculosis. Nesta fase de primo-infecção tuberculosa, proliferam os

linfócitos T específicos para os antigénios bacilares, levando à interrupção da bacteriémia e à resolução progressiva da lesão primária. De facto, em geral, a lesão vai regredindo, a maioria dos bacilos são fagocitados e destruídos por macrófagos micobatericidas, acabando por se formar uma cicatriz que poderá calcificar. No interior destas cicatrizes fibrocaseosas, os bacilos continuam vivos, permitindo a persistência da infecção num estado latente, que se pode estender por toda a vida do indivíduo. As pessoas com tuberculose latente geralmente reagem ao teste cutâneo à tuberculina, não têm sintomatologia de tuberculose activa, e não são infecciosas. De facto, a tuberculose tem um baixo risco de infecção dos indivíduos expostos e um muito longo e imprevisível período de incubação. Estima-se que, em 90,0% dos casos, a infecção

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tuberculosa é controlada e as pessoas permanecem assintomáticas (Flynn e Chan, 2001; Kunst, 2006; Cohn, 2000; Powell, 2008).

A quarta e última fase surge após a infecção, em que é necessário que haja uma

multiplicação bacteriana suficiente para ultrapassar a capacidade imunológica do indivíduo e, assim, aparecerem lesões evolutivas e sintomas – tuberculose-doença ou activa – num período de alguns meses. Esta fase corresponde à liquefação e cavitação das lesões. O material caseoso liquefeito constitui um óptimo meio de cultura para a multiplicação dos bacilos pela primeira vez num ambiente extracelular, atingindo grandes números e constituindo uma enorme carga antigénica, extremamente tóxica para os tecidos. As paredes dos brônquios vizinhos necrosam e rompem, formando-se cavidades tuberculosas. Os bacilos podem, então, ser expelidos pelas vias aéreas, atingem outras zonas do pulmão, e são eliminados para a atmosfera em grandes quantidades. O doente é, nesta fase, extremamente contagioso.

Do ponto de vista epidemiológico é importante perceber os três componentes que contribuem para a morbilidade da tuberculose, e, assim, distinguir na tuberculose- doença as formas primária e pós-primária (World Health Organization, 1996; Fonseca Antunes, 2000):

1) Tuberculose primária progressiva – é a designação que se dá ao resultado da

progressão de uma infecção sub-clínica para doença nos primeiros cinco anos após a infecção, embora seja frequente a doença ocorrer nos primeiros três meses. É a forma de tuberculose activa clássica das crianças;

2) A tuberculose pós-primária, no passado designada por tuberculose secundária, é a que se desenvolve e diagnostica após cinco ou mais anos depois da primeira infecção, e que pode ocorrer por reactivação ou por reinfecção:

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2.1) Reactivação endógena – quando o bacilo que persiste dormente nos tecidos por meses ou anos após infecção começa a multiplicar-se; estamos perante uma tuberculose activa que resulta de reactivação endógena de uma infecção anterior;

2.2) Reinfecção exógena – quando um indivíduo, que já teve uma primeira infecção, fica doente como resultado de uma nova infecção, que se sobrepõe à primeira devido a nova inoculação do bacilo Mycobacterium tuberculosis.

A tuberculose pós-primária é uma forma de tuberculose quase exclusiva do adolescente com mais de 15 anos de idade e do adulto. Afecta geralmente os pulmões, mas pode atingir qualquer órgão ou sistema. É caracterizada por destruição pulmonar extensa com cavitação, baciloscopia positiva, envolvimento do lobo superior, geralmente sem linfodenopatia intratorácica (Flynn e Chan, 2001; Kunst, 2006; Cohn, 2000; Dannenberg, 1989).

Não é possível distinguir directamente se uma tuberculose no adulto é uma tuberculose endógena ou exógena, e a abordagem diagnóstica e terapêutica aplicada é a mesma. No entanto, é crucial estimar a importância relativa da reactivação endógena e da reinfecção exógena, pois condicionam as estratégias de prevenção e controlo. Em países com baixa incidência de tuberculose, quase todos os casos são devidos à reactivação endógena, como é o caso dos países mais desenvolvidos, em que o ressurgimento da tuberculose resulta essencialmente da reactivação de lesões antigas de primo-infecção. Em geral, nos países desenvolvidos, quanto menor for o risco de infecção, e quanto mais idosa for a população, mais importante se torna a reactivação endógena como fonte de novos casos de doença. Em contrapartida, nos países subdesenvolvidos e de elevada prevalência, o peso da reinfecção exógena permanece, e parece que vai continuar a ter grande importância nas próximas décadas (World Health Organization, 2008a).

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Em resumo, o conhecimento das contribuições relativas da doença primária, da reinfecção exógena e da reactivação endógena para a morbilidade da tuberculose tem implicações directas na orientação das estratégias de saúde pública a adoptar. De facto, se soubermos que numa comunidade a maior proporção de casos de doença se deve a infecções recentes ou a reinfecções exógenas, e menos a reactivações endógenas, podemos dirigir as medidas de controlo na redução da duração da transmissibilidade.

Presentemente, os estudos de biologia molecular têm tornado possível a diferenciação de uma reactivação endógena de uma reinfecção exógena, desde que se tenha um isolado prévio do doente, ou, então, desde que exista e estirpe suspeita de ser a fonte de infecção recente (Flynn e Chan, 2001; Small, Hopewell, Singh, Paz, Parsonnet, Ruston

et al., 1994). O assunto da caracterização molecular da infecção pelo Mycobacterium