• Nenhum resultado encontrado

A chamada técnica de história de vida ou escrita autobiográfica é prática usual na formação dos adultos e vem a subsidiar o pesquisador social no entendimento dos comportamentos sociais. A origem dessa técnica e o seu desenvolvimento nos espaços de formação de adultos ocorreram na transição dos anos de 60 para os anos 70, quando surge o conceito de “Educação Permanente” (JOSSO, 2004).

Segundo Sacristán (1999, p.71), hoje, é vigente a arte do estudo de histórias de vida dos professores, “como uma forma de compreender suas ações, reconhecendo assim o sentido genético da prática pessoal ancorada em sua biografia”. Ele lembra, ainda, que as marcas das ações geram a cultura subjetiva. Desse modo, a experiência é a base para o início, como

possibilidade, e é o equilíbrio como imitação. No entanto, Sacristán alerta que a experiência ou a cultura subjetiva não é alimentada somente pela biografia pessoal, nem pertence apenas a uma pessoa, mas pode ser culturalmente compartilhada através do entrelaçamento de linguagens. Esse entrelaçamento, conforme aponta Maturana (2004, p. 12), é uma conversa: “sustentamos que todo viver humano acontece em redes de conversação”.

Seja a narrativa escrita ou verbal, mediada ou face-a-face, esta constitui um dos tipos mais comuns de discurso. A narrativa é universal para todas as culturas humanas, sendo inseparáveis e intrínsecas à experiência social e cultural. De certo, a possibilidade de se recorrer às narrativas, constitui material significativo que complementa a formação e autoformação dos professores. Essas imagens trazem a riqueza de experiências que refletem comportamentos, padrões, valores, posturas profissionais e pessoais, e estes são os nossos primeiros saberes construídos sobre a docência.

A interpretação das ideias de Kramer e Souza (1996) revelam que é necessário perceber a pesquisa na prática do professor, mais diretamente na formação da identidade do professor, por meio de uma indagação a partir do que as autoras chamam de “experiência da narrativa”, para encontrar uma formação bastante significativa, permanente, com direito irrestrito inalienável. As referidas autoras colocam como princípio dessa busca da experiência do professor, através de sua história de vida, a possibilidade de perceber o professor como sujeito histórico produtor de linguagem. Na medida em que se faz a narrativa, se restaura a sua história fragmentada na memória, recuperando-a para torná-la comunicável como textos que tecem novas histórias.

Kramer e Souza (2006), à luz do pensamento de Bakhtin, enfatizam que a linguagem é carregada de significação, num contexto preciso em que não está engessada num sistema abstrato de normas, pois a palavra é sempre impregnada de conteúdo ou de um sentido ideológico. Para Bakhtin, o importante a considerar não está nos elementos normativos do discurso, mas na qualidade contextual. Levar em conta a história é conciliar polissemia e unicidade através da dialética. Destarte, outras vozes apareceram e promoveram um discurso em caráter dialógico que, segundo Barkhtin, ocorre em meio às alternâncias das vozes engendradas na história viva que penetra na linguagem localizada no presente e no passado – recordado e renovado – em um contexto e num aspecto novo.

Para situar melhor a pesquisa que proponho, a partir dos relatos (auto)biográficos, vejo ser pertinente expor sobre as literaturas alusivas às histórias de vida como perspectiva metodológica e, nesse sentido, Nóvoa (2000) apresenta algumas dimensões de estudos nessa linha, para uma sistematização das abordagens (auto)biográficas. O autor esclarece que é

muito difícil categorizar esses estudos, pois cada qual tem sua maneira própria e manifesta com o seu estilo as preocupações de investigação. Contudo, ele propõe uma categorização baseada nos objetivos e nas dimensões que cada abordagem privilegia e traça daí nove agrupações de estudos, não pretendendo com isso fechar como categorias exclusivas, mas apenas a fim de compreender os aspectos de maior interesse dos pesquisadores.

Nóvoa então aponta os seguintes objetivos: “objetivos essencialmente teóricos; relacionados com a investigação; objetivos essencialmente práticos, relacionados com a formação, e objetivos essencialmente emancipatórios, arrolados com a investigação- formação”. Acerca da dimensão ele formula três: “pessoa (do professor), prática (dos professores) e profissão (de professor)” (p.20). Pretendo, pois, enveredar pela dimensão de objetivos essencialmente teóricos, relacionados com a investigação versus pessoa (do professor), cujo teor ele descreve como: “estudos que tomam como referência a pessoa do professor exprimem-se numa perspectiva sociológica, normalmente baseada em metodologias de ‘história oral’ ou em ‘memórias escritas’; numa perspectiva psicológica mais preocupada com problemas de saúde mental e stress’ (ibidem, p.21).

Para trilhar por esse tipo de estudo, Nóvoa (2000) lembra que essa diversidade de perspectivas pode originar dificuldades e equívocos na pesquisa quando feita sem rigor, e ocasionar inconsistência no estudo. Munido pelas preocupações conceituais, metodológicas e éticas, o autor não desacredita na técnica das histórias de vida, já que por essa via pode-se elaborar novas propostas sobre a formação docente.

Goddson (1992) também defende o valor dos dados sobre as vidas de professores como fator importante para os estudos de investigação educacional. Esse autor afirma que quando os investigadores educacionais não dão importância à “voz do professor”, cuja atitude é de desconsiderar dados rotulados como “pessoais” ou “idiossincráticos”, aderem à postura de só escutarem o que querem ouvir. Ao adotar essa atitude dão margem a considerar os dados sobre as vidas de professores não adaptados aos paradigmas de investigação vigente e por isso não serem “considerados” um estudo científico. Sua crítica se estende para os paradigmas cientificistas que não dão valor a esse tipo de estudo. Para o autor é a experiência de si que está sendo construída, em grande parte, a partir das narrativas, ou seja, é o laço indissociável entre a experiência e a sua (re)elaboração na condição narrativa – enquanto abertura para revivificar e ao mesmo tempo recriar o vivido. As histórias e linguagens dos professores se interpenetram e se entrecruzam conjugando-se com a história da sociedade.

Assim, reconhecer a formação como processo vital de construção de si próprio, em que as múltiplas relações dos polos interno e externo perpassam nesse processo, é de

fundamental importância. Moita (1992) acrescenta que “compreender como cada pessoa se formou é encontrar as relações entre as pluralidades que atravessam sua vida” (p.114). A identidade pessoal é um sistema de múltiplas identidades que se constitui pela dinâmica organizada dessa diversidade. No interior da identidade pessoal se situa a identidade profissional que é uma construção consubstanciada na dimensão espaço-temporal que atravessa a vida profissional desde a fase da escolha, passando pelo tempo concreto de formação inicial e pelos diferentes espaços aonde a profissão vai se efetivando na experiência.

A referida autora justifica seu interesse pela abordagem biográfica por considerar o modo global e dinâmico em que as interações foram acontecendo entre as diversas dimensões da vida, com vistas a captar o modo como cada pessoa, ao permanecer ela própria, se transforma. Por esse recurso é possível identificar as continuidades e as rupturas, os interesses, bem como os quadros de referência presentes nos vários espaços do cotidiano. Esse é um “saber” hermenêutico enraizado nos discursos dos narradores e cada história de vida, em que cada percurso e cada processo de formação é único. Não é possível a generalização. Existe uma singularidade em cada história de vida. Nesse processo de pesquisa, segundo essa autora, impõe-se a criação de condições com efetiva implicação dos participantes. Cabe, portanto, uma relação do pesquisador com os narradores mediados pela colaboração, pela partilha e pela escuta empática. Com essa atitude, se obtém mais facilmente “informações” ganha-se a confiança dos implicados, decorrente de um posicionamento de princípios. A qualidade da relação numa condição humanamente significativa favorece também a garantia da correção metodológica.

A título de não empregar a técnica das histórias de vida sem um critério organizado, cabe também recorrer às considerações metodológicas descritas por Hubermann (1992), cuja preocupação é com relação ao modo de apropriação dos dados a serem interpretados pelo pesquisador. Segundo ele, é arriscado integrar num mesmo grupo indivíduos que parecem partilhar traços em comum, com antecedentes ou meio sociais diferentes. Existe uma zona de intersecção entre esses indivíduos, mas também zonas de diferenças, sendo importante então localizar essa zona de intersecção para uma condução apropriada do trabalho.

Outro ponto importante a considerar, de acordo com Hubermann (1992), é não fixar explicações maturacionistas, psicológicas, culturais, sociais ou físicas, pois o desenvolvimento adulto resulta de um processo dialético em que o indivíduo sempre se encontra num estado de tensão entre as duas forças: interna (maturacionista e psicológica) e externa (culturais, sociais e físicas). Nenhumas dessas forças têm a supremacia sobre o indivíduo. Uma pode prevalecer em dado momento, mas é transitória e influenciada pelo jogo

das outras forças. Em síntese, ele adverte que “o estudo do desenvolvimento é um estudo de influências combinadas e não de influências únicas ou determinantes” (p. 55).

Essas primeiras reflexões acerca de identidade e formação docente foi uma proposição reflexiva para o entendimento sobre os aspectos comumente difundidos nas pesquisas atuais. É certo que muitos trabalhos que não foram apresentados aqui têm acrescentado significativamente valor ao arcabouço teórico nessa linha de estudo.

Por outro lado, a trajetória a seguir será por uma vertente discursiva acerca dos interpretantes subjetivo e intersubjetivo dos sujeitos que farão parte da pesquisa, onde respaldo meu discurso numa perspectiva transdisciplinar, cujo constructo teórico se aproximará do pensamento sistêmico. Tomarei esse paradigma como eixo condutor da pesquisa interligado ao postulado teórico junguiano, com vistas a tratar do fenômeno identitário alusivo à formação docente.

3 PENSAMENTO SISTÊMICO E A TEORIA JUNGUIANA: O PRESSUPOSTO DA CIRCULARIDADE NO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA

“Cada homem carrega a forma inteira da condição humana”.

Montaigne