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Identidades multifacetadas na contemporaneidade: cisões e dissociações 68

3.3 TRANSVERSALIZANDO PRINCÍPIOS SISTÊMICOS COM O PENSAMENTO

3.3.2 Identidades multifacetadas na contemporaneidade: cisões e dissociações 68

A banalização e achatamento do indivíduo na contemporaneidade se tornaram perversas, pois, a cada dia, o vazio e a mesquinhez passam a ser companheiros dos indivíduos que têm vivido tão somente fragmentos de si mesmos. A grande preocupação de Jung (1999) se volta para o estudo do adoecimento da alma dos indivíduos e, escrevendo sobre a sociedade moderna, em 1957, demonstrou que a ênfase dada ao racional, em detrimento do emocional, desencadeia doenças latentes ainda que os indivíduos sejam vistos pelo viés da normalidade.

Com isso amplifica a incerteza cotidiana, o que pode não contar com nada construído ou definido previamente. A lógica leva à cisão e dissociações, mesmo para as “identidades normais”. Somos exigidos a desenvolver identidades instantâneas, expostas à privação de partes de cada experiência subjetiva que leva a perdas do sentimento de si, o sentimento de continuidade.

O pensamento enfático de Jung (1986, p.111) critica o homem ocidental por não ter entendido ainda que na psique esteja radicado todo e qualquer conhecimento e tal desconhecimento resulta no sufocamento da alma pelos objetos externos, eclipsando-se para o conhecimento de si mesmo. Com isso, todos os nossos conhecimentos tornam-se incompletos, porquanto a psique tem uma forma obscura de existência, não sendo acessível de forma direta pela consciência:

Devemos primeiramente dar-nos conta de que o conhecimento em geral é o resultado de uma espécie de ordem imposta às reações do sistema psíquico que fluem para a consciência – ordem esta que corresponde ao comportamento de realidade metafísica, isto é, de coisas que são reais em si mesmas. Se o sistema psíquico se identifica e coincide com a consciência, então, em princípio estamos em condição de conhecer tudo o que é capaz de ser conhecido.

Sua hipótese de ver a psique muito mais que a consciência remete para o entendimento do funcionamento psíquico carregado de conteúdo inconsciente diverso da parte consciente e, nesse caso, resulta no limiar da consciência que nos separa dos conteúdos inconscientes da psique, significando nesta zona do inconsciente a existência do material bruto, separado de nós apenas por um “limiar” aparentemente intangível que só podemos

perceber nalgum momento de intuição ou por um processo de intensa reflexão.

Assim, seja pela dúvida da existência da realidade psíquica ou pela descrença de um sujeito que controla os processos inconscientes, o fato é que se torna ainda mais difícil quando se vai lidar com os supostos atos da vontade. Creio ser esclarecedor para o momento explorar esta questão, já que estou imbuída em entender o que se mascara na aparente escolha ou “decisão” dos indivíduos. Jung (1986) adverte que se não é uma ação movida por “impulsos” ou “inclinações”, mas de “escolha” e de “decisão” aparentemente de ordem superior, próprias da vontade, então é possível encontrar um sujeito que controla esta ação no inconsciente – seria colocar uma consciência no inconsciente.

Cabe então nesse momento, para buscar melhor o entendimento dessa questão, elucidar o fenômeno da dissociabilidade da psique quando se reconhece que os processos psíquicos são debilmente ligados entre si e que não estão formados por uma unidade perfeita, pois basta um detonador para despedaçar a unidade e reduzi-la a seus elementos originais. No que tange a essa assertiva, Jung (1986) permite superar a descrença do que está no limiar da consciência e tratar de entender os atos inconscientes da vontade, a partir de processos que possuam um potencial de energia capaz de levar ao estado de consciência secundária que consiste no processo inconsciente “representado” pelo sujeito subliminar que escolhe e decide, requerendo para isso uma quantidade de energia necessária para a obtenção do estado de consciência.

Mas o que se pode entender por estado de consciência secundária? De acordo com Jung, ainda que se tenha uma quantidade de energia satisfatória, o processo inconsciente não cruza realmente o limiar da consciência não o tornando perceptível ao eu. Por que isso acontece? O próprio Jung (1986) responde que o componente psíquico separado da consciência decorre por determinados motivos que não se alça conhecê-los; estão acima do limiar e essa dissociação se fecunda pela incompatibilidade do conteúdo subliminar ao processo consciente, como também pela ausência do processo de percepção do eu por falta de compreensão. Deste modo, resta então o conteúdo psíquico subliminar, embora energeticamente ele possa tornar-se consciente. Em ambos os casos há potencial de energia para ser lançado o conteúdo ao estado de consciência, mas só que isso aparece de maneira indireta pelo sujeito secundário sobre a consciência do eu, primeiramente por meio de forma sintomática ou simbólica. Jung (1986, p.115) revela que os conteúdos não foram reprimidos; apenas não se tornaram ainda conscientes:

Os conteúdos sintomáticos são, em parte, verdadeiramente simbólicos e são representantes indiretos de estados ou processos inconscientes cuja natureza só pode ser deduzida imperfeitamente e só pode tornar-se consciente a partir dos conteúdos que aparecem na consciência. É possível, pois, que o inconsciente abrigue conteúdos de tão alto nível de energia que, em outras circunstâncias, eles tornar-se-iam perceptíveis ao eu.

Resulta que esse fato não é algo de caráter patológico; apenas não foram percebidos subjetivamente e o homem moderno termina por negar completamente esse estado normal original da psique. Jung (1986) complementa dizendo que é inalcançável obtermos a totalidade da psique na consciência e somente podemos alcançar o limiar desta a partir de certas funções identificadas como o pensamento, o sentimento, a sensação e a intuição. Neste sentido, é facilmente possível perceber que nos processo psíquicos há um limiar inferior e um limiar superior e, consequentemente, a consciência é o sistema perceptível por excelência dessas duas escalas a partir da experiência. Entretanto, o indivíduo contemporâneo vive em meio ao adoecimento da alma e, estando fragmentado, com a consciência cindida, normalmente uma função sobrepõe as demais vivendo a “ditadura de uma das funções”. (MARONI, 2005).

Retornando ao ponto em que Jung aborda sobre a vontade, é necessário fazer uma exploração diferenciada entre esta e o instinto, se quisermos obter um entendimento mais amplo sobre a natureza psíquica. Pois bem, o instinto, ainda que seja de difícil definição, é constituído por aspecto fisiológico e psicológico, sob a ótica junguiana. Ainda que os instintos estejam incorporados à vida do organismo como um todo, não significa dizer que a psique derive exclusivamente deste e de seu substrato orgânico. O componente funcional dos instintos se caracteriza como parte inferior, com funcionamento de caráter compulsivo, daí ser designado de “impulso”. Por outro lado, a parte superior – descrita como psique – perde o caráter compulsivo, podendo ser submetida ao controle da vontade.

Portanto, quando a psique se libera do mecanismo meramente instintivo, a parte superior atinge um nível funcional com alteração substancial de energia, não sendo mais de caráter compulsivo e cego, razão pela qual a vontade está dotada de certa liberdade de escolha com uma quantidade de energia suficiente para estar à disposição da consciência. Jung (1986) diz que a motivação da vontade numa situação inferior está disposta a muitos choques internos. Mas quando a função se desliga do objeto original, os instintos perdem influência dando lugar a outras motivações. Para esse processo superior acontecer é necessário alcançar a consciência de si mesmo. Muito pertinente o que ele diz sobre esse processo que resulta do querer com o saber, significando conceber a psique como um todo consciente e inconsciente,

que por meio da vontade (liberdade de escolha) se atinge o nível da consciência.

Estou insistindo neste ponto porque daí demanda saber as circunstâncias que nos levam a fazer as escolhas, como somos levados a tomar esta ou aquela decisão. Quanto maior o nível de consciência, o ato da vontade levará o sujeito a ver as diversas possibilidades diante de si e, por esse ângulo, será capaz de adotar uma atitude reflexiva para conceber a tomada de decisão com maior lucidez. Só que este não é um processo muito simples, porque comumente nos deixamos enveredar pela teia intelectual que termina por dificultar o entendimento sobre a natureza do inconsciente. Jung (1986) aponta que quando a mente tenta penetrar no mundo do desconhecido e do invisível, o primeiro passo para muitos é negar a existência dessa zona psíquica para evitar entrar em complicações.

Ainda que sejamos reconhecidos com “um alto nível de civilização”, a consciência humana não alcançou uma continuidade, sendo sempre vulnerável e suscetível à fragmentação. Segundo Jung (1991), a capacidade de isolarmos da mente os acontecimentos é valiosa, na mediada em que aprendemos a viver cada experiência a seu tempo. Quando buscamos este recurso de maneira consciente, separando e suprimindo temporariamente uma parte da psique, logramos uma conquista do ser civilizado; no entanto, se isso acontece espontaneamente, sem o nosso consentimento e contra nossas intenções, ocorre a “perda da alma”, que significa uma ruptura, ou seja, uma dissociação da consciência.

Jung, como um crítico da modernidade, acredita na criação das virtudes individuais para ser gestado o grande homem contra o poder da sociedade de massas. Para ele, o indivíduo moderno a cada dia adere com intensidade ao coletivo e, com esse perfil, termina por se tornar frágil e acrítico – incapaz de pensar por si. Hoje já não há lugar para a psique que tenha como meta a unidade, a totalidade. O indivíduo multifacetado precisa ser recriado. Mediante as mazelas de uma psique fragmentada, esse indivíduo se vê obrigado a viver a dissociação da consciência em função da cultura (MARONI, 2005).

Não é prática de o homem massa tomar consciência do seu mundo inconsciente, pois isso não faz parte de sua urgência imediata e, com essa atitude, termina por considerar a “Sociedade” como a responsável pelas faltas ou infortúnios do seu povo. Não tomando consciência de que algo depende de sua pessoa, ou deveria depender, não assume a responsabilidade para si. Por outro lado, se o indivíduo amplifica a consciência de si, imbricado no coletivo, assume a responsabilidade de sua constituição psíquica para achar o caminho do inconsciente e, por conseguinte, será mais saudável, mais estável e mais eficiente no desempenho social. Penso que tanto a ecologia como a psicologia profunda favorecem ao indivíduo o confronto consigo mesmo mediante a vivência da experiência, envolvendo a

pessoa toda que assimila os fenômenos internos e externos como acontecimentos integrantes de sua história pessoal e coletiva.