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2. A Educação Permanente e o papel da Universidade

2.2. Histórico da Educação Permanente

Observa-se que discussões sobre o papel do aprendizado ao longo da vida não são recentes. O sofista Protágoras, no diálogo homônimo de Platão, já sustentava que a educação não se

esgotava após a saída da escola – começando, em certo sentido, precisamente nessa época (JAEGER, 2001:361). Em outra obra sua, o livro VII da República, Platão sustenta que somente após os 50 anos os homens estão aptos a se dedicarem à filosofia (PINTO, 2006:128).

Na primeira obra, Protágoras se refere ao fato de que, ao entrar na vida do Estado após o período escolar, o jovem se via forçado a conhecer as leis e a viver de acordo com elas – ou seja, a iniciar a sua vida cívica. Nesse pensamento está implícito o fato de que o aprendizado sobre a vida em sociedade só pode ocorrer em sua plenitude quando se a experimenta, e sendo essa vivência uma experiência contínua e ininterrupta, o aprendizado também o é (FAURE, 1972:142). Tal constatação, contudo, não vale somente para a vida em sociedade, mas para todos os aspectos da vida humana, uma vez que o homem é um ser inacabado e incompleto (COLLET, 1976), capaz – ao longo de virtualmente toda a vida – de observar fenômenos, vivenciar e sistematizar experiências e refletir sobre seus contextos e significados.

Segundo CHEVROLET (1979), a primeira expressão do direito dos adultos à educação apareceu no relatório Condorcet, apresentado à Assembleia Nacional francesa em 1792. Desde então, algumas iniciativas pontuais – como o financiamento e a inauguração de cursos para adultos por Augusto Comte e o advento das sociedades para a instrução elementar nos centros industriais – contribuíram para o processo geral de desenvolvimento da educação pós- escolar na França do século XIX. Entre as experiências de educação para adultos ocorridas no século XX, incluem-se as Village-Colleges33, criadas em 1930, na Inglaterra, e o Projeto

Billière34, criado em 1956, na França (COLLET, 1976).

33 Criadas em Cambridge por M. Henry Morris em 1930, o objetivo das Village-Colleges era assegurar que toda vila tivesse direito à cultura, e que ela fosse acessível a todas as idades. Seu funcionamento previa um centro de cultura que se comportava como uma escola (senior school) de cursos complementares para adolescentes de onze a quinze anos provenientes das vilas próximas. À noite, esse mesmo centro recebia os adultos das mesmas vilas, proporcionando salas de leituras e reunião, conferências, exposições, biblioteca, teatro, música, corais, corte e costura, arte culinária, círculos de estudo, salas de dança, estenografia, contabilidade, francês, alemão e também cursos de acordo com as necessidades locais, tais como métodos modernos de cultivo do solo e técnicas de horticultura (COLLET, 1976).

34 O principal objetivo do projeto Billière era a educação do trabalhador para promoção no trabalho. Essa iniciativa, ao contrário das Village-Colleges, possuía caráter individual e concentrava-se somente em conhecimentos técnicos e profissionais. (COLLET, 1976)

Várias razões foram apontadas como causas do desenvolvimento da Educação Permanente a partir do século XX. LEGRAND (1970) ressalta o papel das transformações sociais, políticas e tecnológicas que o mundo passou a assistir desde então, como a aceleração das inovações tecnológicas e a rápida obsolescência do conhecimento – incluindo-se aí o profissional –, o surgimento da era da informação e dos meios de comunicação em massa e, por fim, a expansão demográfica enfrentada em todo o mundo, responsável pelo aumento do crescimento populacional e, por conseguinte, das necessidades de educação.

Há também quem defenda que a Educação Permanente seja uma resposta às limitações da instituição escola: conquanto ela tenha se afirmado, ao longo do tempo, como a principal executora do processo educacional para crianças e jovens, uma vez que as civilizações com alguma acumulação cultural e tecnológica dependem dela para a perpetuação – nas gerações vindouras – de seu saber, sua cultura, seus valores e suas crenças. ILLICH (1973 apud COLLET, 1976) chama a atenção para o fato de sua simples existência separar tempos, processos, serviços e profissões em períodos educativos e não educativos, em uma divisão claramente artificial e estanque. Além disso, a escola pode se distanciar da vida fora de seus muros, sempre mais dinâmica.

Por fim, a Educação Permanente é tanto considerada uma solução para a qualificação rápida e maciça de mão de obra como um caminho para o exercício da cidadania ou a realização plena do homem. Como se verá a seguir, é comum a presença de ambas as visões, em maior ou menor grau, em documentos oficiais.

A expressão Educação Permanente começou a aparecer em discussões na Europa em meados dos anos 60, bem como em artigos publicados pela Comissão Europeia e pela UNESCO (RYAN, 1999). FURTER (1974 apud COLLET, 1976) a definiu como

...um processo ininterrupto de aprofundamento tanto da experiência pessoal como da vida coletiva que se traduz pela dimensão educativa que cada ato, cada gesto, cada função assumirá, qualquer que seja a situação em que nos encontramos, qualquer que seja a etapa de existência que estejamos vivendo.

Embora a Primeira Conferência Internacional sobre Educação de Adultos tenha ocorrido em 1949 (Elsinone, Dinamarca), apenas a partir da segunda conferência (Montreal, 1960) a UNESCO passa a ressaltar a importância da educação permanente, definindo-a como um programa prioritário (MOTTA, 1998). Nessa conferência, ressaltou-se a importância de se

considerar a formação integral do homem, atentando-se para seus aspectos sociais, culturais, científicos e econômicos. Além disso, a conferência afirmou a necessidade de universalização da Educação de Adultos através da sua total integração aos sistemas nacionais de educação e da sua oferta sem nenhuma espécie de discriminação35.

As discussões sobre Educação Permanente avançaram significativamente a partir da publicação do chamado Relatório Faure (Aprendendo a ser: o mundo da educação hoje e

amanhã), publicado em 1972. Esse documento é fruto do trabalho da Comissão Internacional

para o Desenvolvimento da Educação, que havia iniciado os seus trabalhos em 1971. Entre os seus pressupostos fundamentais, estão o conceito de democracia como o direito de cada homem de se realizar e de participar da construção do seu próprio futuro, assim como o objetivo de se buscar a completa realização do homem, em toda a riqueza de sua personalidade, nos seus compromissos sociais e na complexidade de suas formas de expressão. Além disso, o documento alerta para o fato de que, com essa educação, os homens não mais adquirem conhecimentos definitivos, de uma só vez, mas passam a elaborar, ao longo de toda a vida, o seu próprio conhecimento – o ―aprender a ser‖ (FAURE et al., 1972). Para RYAN (1999), o relatório Faure representa uma considerável ruptura com o pensamento educacional tradicional: os autores do documento teriam se inspirado em reformadores radicais do então chamado terceiro mundo – em especial o educador brasileiro Paulo Freire, para quem o propósito da educação seria a criação de uma autoconsciência capaz de deslocar o aprendiz da posição de objeto para a de sujeito. WERTHEIN; CUNHA (2005) apontam a importância desse relatório na abertura dos sistemas educacionais em vários países, outrora herméticos e baseados em visões mais conservadoras.

Em 1996 surge outro documento importante para o desenvolvimento da discussão conceitual sobre a educação permanente: o chamado Relatório Delors (Learning: the treasure within). Ele foi fruto dos trabalhos de uma comissão montada pela UNESCO em 1993 (Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI), cujo principal objetivo era o de refletir

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Várias conferências foram organizadas por aquela instituição nos anos subsequentes, propondo diretrizes que visavam a reforçar o papel da educação de adultos no mundo contemporâneo e a buscar a sua operacionalização Citam-se aqui, além das já mencionadas, as conferências internacionais sobre a educação de adultos em Tóquio (1972), Paris (1985), Hamburgo (1997) e Belém (2009), e também as Conferências Globais sobre Educação

sobre o papel da educação no mundo globalizado da era pós-soviética. Uma educação que pudesse ajudar o homem a compreender os significados do mundo e da época que então se desmembravam (UNITED NATIONS EDUCATIONAL, SCIENTIFIC AND CULTURAL ORGANIZATION, 1996).

A essência desse documento se encontra nos chamados quatro pilares da educação: Aprender

a conhecer, o que significa admitir a vastidão do conhecimento e adquirir estratégias que

permitam o desenvolvimento de uma cultura geral, bem como a dedicação mais aprofundada a um número determinado de conhecimentos; Aprender a fazer, conceito que se aproxima do mundo do trabalho, ainda que não signifique a preparação de pessoas para tarefas específicas, e sim o estímulo ao trabalho em equipe, o gosto pelo risco e a capacidade de tomar iniciativas;

Aprender a viver juntos, que trata do papel da educação no reconhecimento do outro e na

promoção da solidariedade humana; e Aprender a ser, pilar que assume, tal qual o Relatório Faure, a realização plena das pessoas como o objetivo maior do desenvolvimento humano, bem como a necessidade de autonomia intelectual e de visão crítica da vida para a formação de juízos de valor próprios, de capacidade de discernimento e de ação em diferentes circunstâncias da vida.

Uma outra concepção de Educação Permanente floresceu um ano depois da publicação do Relatório Delors: a da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE (Organization for Economic Cooperation and Development – OECD). Essa visão – expressa principalmente na obra Recurrent Education: A Strategy for Lifelong Learning

(1973) – diverge do enfoque predominante até então, voltado, sobretudo, para a realização

plena do homem: o seu interesse se concentra na equidade social que poderia ser proporcionada por um sistema de educação pós-escola, uma vez que este poderia compensar as deficiências nas experiências educacionais pregressas dos indivíduos. Essa concepção também se preocupa em estabelecer uma ponte entre o mundo da educação e o do trabalho, contrapondo-se à distinção usual entre as educações geral e vocacional (RYAN, 1999).

A visão da OECD se renovou em 1996, a partir de um encontro entre os ministros da educação dos seus países-membros. Esse evento, presidido pelo ministro da educação australiano, Hon Simon Crean, optou pela reformulação do seu próprio conceito de Educação Permanente – anteriormente conhecido como Educação Recorrente (Recurrent Education) –

baseando-se em três objetivos fundamentais: o desenvolvimento pessoal, a coesão social e o

crescimento econômico.

Entre algumas mudanças-chave que caracterizam o contexto dessa evolução conceitual, pontuam-se o entendimento da Educação Permanente como um aprendizado consciente, que perpassa toda a vida e ocorre tanto em espaços formais como não formais, e a visão do aprendizado como processo contínuo e inserido no trabalho e nas experiências pessoais, em contraposição à concepção anterior de alternância entre momentos de educação e trabalho.

As discussões em torno da Educação Permanente contribuíram, com o passar do tempo, para a formulação de uma definição específica desse conceito para a área da saúde que levasse em conta as suas especificidades, como se verá a seguir.