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2. A Educação Permanente e o papel da Universidade

2.3. O conceito de Educação Permanente em Saúde da OPAS

O exercício profissional da saúde possui uma peculiaridade: ele se dá em contextos que exigem uma significativa experiência prática integrada a saberes, habilidades técnicas, atitudes e capacidade de tomada rápida de decisões. Por esse motivo, é natural que as profissões do setor – e, mais especificamente, a formação médica – tenham incorporado, de forma progressiva, a prática em serviço como elemento básico da aprendizagem, tanto no âmbito da graduação como no da pós-graduação.

O conceito de residência médica ilustra essa incorporação. Segundo FEUERWERKER (1998), ele surgiu nos Estados Unidos em meados do século XIX, a partir de movimento do Conselho de Hospitais e Ensino Médico da Associação Médica Americana. Essa entidade

preconizou um ―sistema de instrução médica baseado no ensino clínico e na utilização da rede

hospitalar para o ensino, (...) privilegiando o ensino da prática clínica hospitalar e o

adestramento profissional em serviço‖.

No século XX, a capacitação para profissionais de saúde em serviço passou a ser objeto de atenção no continente americano no início da década de 70, quando a XIX Conferência Sanitária Pan-americana de Saúde emitiu, em 1974, a Resolução XXIII, que apontava a necessidade de apoiar os governos em seus esforços para planificar, implantar e melhorar os

mecanismos que permitam a atualização permanente dos trabalhadores de Saúde (HADDAD

et al., 1994).

Até essa época, entretanto, considerava-se que o objetivo da educação continuada era manter e estender a competência profissional em qualquer área da prática médica, de forma a assegurar a eficiência dos trabalhadores de saúde através da atualização de conhecimentos, sem que se considerassem mudanças em suas funções, ou modificações na estrutura dos serviços. O resultado dessa visão, segundo ROSCHKE Y CASAS (1987), era a existência de programas educativos específicos por profissões, carentes de articulação entre si e de elementos comuns que pensassem o trabalho da equipe de saúde, e não só de um determinado profissional.

Em 1975, a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) convocou um grupo de consultores para que elaborassem diretrizes com o objetivo de facilitar a formulação e execução de planos de educação contínua para equipes de saúde (HADDAD et al., 1994). No informe final desse grupo, constava que ―a maioria dos programas de educação contínua

respondem a necessidades de grupos profissionais ou a preocupações de ordem acadêmica‖,

sem que contribuíssem de fato para melhorar os serviços de saúde, de forma a satisfazer as necessidades reais da população. O documento também chamou a atenção para o fato de que

essas iniciativas não permitiam ―mudanças nas relações técnicas ou sociais do trabalho do setor saúde‖, e que a maior parte dessas iniciativas se dirigia apenas a médicos e enfermeiros,

com cobertura insuficiente em áreas rurais ou periféricas (ROSCHKE Y CASAS, 1987).

Após o lançamento da meta Saúde para todos no ano 2000 (1977) e a realização da Primeira Conferência em Atenção Primária à Saúde (1978), a OPAS passou a estimular a reorganização dos sistemas de saúde no continente com o intuito de ajudar os países a alcançar aquela meta, e assim esse conceito desenvolveu uma nova dimensão a partir do desafio do desenvolvimento da atenção primária à saúde como forma de reorganização, fortalecimento e expansão dos sistemas de saúde. Isso fez com que a educação continuada adquirisse um caráter institucionalizado, passando a ser uma preocupação em diferentes sistemas de saúde.

Essa mudança pode ser demonstrada através da XXII Conferência Sanitária Pan-Americana (Washington, 1986), durante a qual a OPAS reconheceu as restrições para o fortalecimento de

infraestrutura, causadas pelo desenvolvimento inadequado de recursos humanos, e decidiu estabelecer, entre as prioridades programáticas para o quadriênio 1987-1990,

...a busca de uma revisão da definição do papel do pessoal de saúde, melhores esquemas de formação de recursos e maior eficiência na captação, orientação e utilização dos mesmos, especialmente para a gestão dos serviços em níveis intermediários e superiores (ORGANIZAÇÃO PAN- AMERICANA DA SAÚDE, 1987 apud ROSCHKE Y CASAS, 1987) 36.

Essa mudança conceitual pode ser também demonstrada a partir da análise dos próprios programas em funcionamento nos anos 70. Em um primeiro momento, eles apontavam a definição de educação continuada como processo de ensino-aprendizagem posterior à formação básica, que tinha por objetivo melhorar a capacitação individual ou coletiva. Estavam implícitos, nessa visão, os conceitos de educação continuada como um processo de atualização frente à evolução científica e tecnológica, que deveria suprimir problemas e a carência de educação formal em algumas circunstâncias.

Em um segundo momento, a partir de 1979, esse arcabouço conceitual de educação continuada passa a dialogar com os princípios fundamentais da educação de adultos e, com isso, reestrutura-se a partir de uma perspectiva andragógica – segundo a qual a educação é um processo que deve continuar ao longo da vida adulta, cuja finalidade é a autogestão do homem e a transformação de seu meio a partir da busca da construção de uma nova sociedade. VIDAL (1982, apud ROSCHKE Y CASAS, 1987) vai descrever a ―educação contínua ou

permanente‖ como ―aquela que privilegia a dignidade da pessoa e seu direito democrático de dar e receber aprendizagem segundo suas necessidades individuais e sociais, dentro de um processo concebido sem término temporal, a se dar em todas as etapas da vida‖ 37.

Vai-se moldando assim, no âmbito da OPAS, uma nova concepção de educação continuada, agora denominada Educação Permanente em Saúde. Retomando-se a multiplicidade semântica referida no início deste capítulo, citam-se os autores RIBEIRO; MOTTA (1996), que se preocupam em diferenciar os termos Educação Continuada e Educação Permanente: enquanto o primeiro diz respeito a atividades de ensino avulsas após a graduação, com a finalidade de atualização profissional ou aquisição de novos conhecimentos e ministradas de

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Tradução nossa. 37 Tradução nossa.

forma tradicional, o segundo se relaciona à aprendizagem significativa baseada nas necessidades advindas do processo de trabalho, através de diferentes abordagens pedagógicas.

Segundo esses autores, a resposta à necessidade de novos conhecimentos e habilidades, na educação continuada, baseia-se no pressuposto de que a transmissão de informações sobre

uma ―situação ideal‖ é suficiente para o aperfeiçoamento do processo de trabalho. Estabelece-

se, pois, uma relação linear entre o conhecimento e a prática, sendo a última entendida como a aplicação da primeira. Na educação permanente, o mundo do trabalho, com todas as suas limitações e em toda a sua complexidade, é que norteia o processo de aprendizagem.

O grande objetivo desse conceito, mais do que a atualização técnico-científica de cada categoria profissional na ponta dos serviços de saúde, é a transformação do processo de trabalho de toda a equipe de saúde, a partir de suas próprias reflexões sobre como ele ocorre e sobre as necessidades de saúde da comunidade a qual assistem (ROSCHKE Y CASAS, 1987).

Vários textos foram publicados pela OPAS nos anos subsequentes. Em 1994, publicou-se o centésimo número da série Desarollo de Recursos Humanos, dedicado à Educación

Permanente de Personal de Salud, que se tornou uma obra de referência sobre o assunto nas

Américas. Nesse documento, a Educação Permanente em Saúde é definida como ―... a

educação no trabalho, pelo trabalho e para o trabalho, nos diferentes serviços, cuja finalidade é melhorar a saúde da População‖ (ROVERE, 1994).

A existência de diferentes significados para o conceito de educação permanente, incluindo-se aquele desenvolvido pela OPAS, possui implicações importantes para as políticas de formação e capacitação de força de trabalho para a Saúde da Família e para a definição do papel exercido nelas pela universidade, uma vez que, nos últimos anos, foram observadas políticas conflitantes na área, com distintos referenciais de educação permanente. Esses assuntos serão discutidos a seguir.