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Apêndice I: Teste de Normalidade – Divido por Região de Coleta

5. Identificação e perfil dos países

5.2 Cabo Verde

5.2.4 Identidade Nacional Cabo-verdiana

O povo Cabo-verdiano possui origens diversas, embora sua população seja formada majoritariamente de escravos vindos de países vizinhos da costa africana e de portugueses. O país foi formado através de ligações humanas e de recursos naturais com a costa Africana, com o poder político e econômico Português, com a acesso novos mercados no Brasil e Caribe e com marinheiros e pescadores na Nova Inglaterra, nos Estados Unidos.

A cultura cabo-verdiana, ou sua identidade, foi então criada desta mistura, de duas matrizes, a africana e a europeia, cada qual com características próprias, muitas destas características contrastantes devido a processos culturais diferentes que influenciavam diretamente costumes, valores, atitudes, processos e hábitos, proporcionando assim a desintegração das duas culturas, uma europeia herdada do pai, e a africana da mãe, levando a uma reconfiguração de identidades culturais, que levou a cultura crioula (BRITO-SEMEDO, 2006).

Esta grande conjunção de povos criou uma cultura bem definida, rica, crioula, que possuiu uma língua própria, música, literatura, comidas e vestimenta. A cultura cabo-verdiana não é tão somente portuguesa, ou africana, mas sim uma mistura com traços próprios, que dá origem e identifica claramente o seu povo crioulo, ou cabo-verdiano. Lobban Jr. e Saucier (2007) indicam que esta inter-relação entre características culturais europeias e africanas é tão completa que deve-se entender a cultura cabo-verdiana como uma sociedade distinta de outras culturas.

A distinção entre os nascidos em Cabo Verde, os crioulos e os portugueses, esteve presente desde uma época precoce em Cabo Verde, um século e meio após o início do povoamento. Esta dicotomia que colocava de um lado os crioulos e de outro os reinóis, ou portugueses do continente também acabava por representar uma outra série de dicotomias, como a cultura local e a cultura nacional(portuguesa), o popular versus o erudito, o cabo-verdiano versus o europeu, a língua crioula versus a língua portuguesa.

O crioulo cabo-verdiano é a língua materna e de comunicação em Cabo Verde, resultante de um processo longo que durou vários séculos, sendo uma adaptação do português do século XV, com uma gramática mais simples devido ao contato com as línguas dos negros levados para o povoamento da colônia. Uma língua crioula é considera uma língua que surge de interferência entre um ou mais idiomas, um europeu, e o outro normalmente africano ou asiático,

normalmente falados em grupos reduzidos de indivíduos, falado em todos os momentos sociais. Um exemplo do crioulo cabo-verdiano é apresentado em uma morna, um estilo musical tipicamente cabo-verdiano, de autoria de Cesária Évora, talvez a mais conhecida cabo-verdiana, a Diva dos pés descalços. A morna, juntamente com uma tradução livre para o português é apresentada no Quadro 17:

Quadro 17: Morna Cabo Verdiana – Miss Perfumado – Cesária Évora Miss Perfumado

Dixa'm morrê ta sonhá Na sombra di odjo magoado

Duma pequena gentil Di corpo perfumado Assim dixa'm môrré ô flor

Na sombra di bô odjinho Dixa'm morré ta sonhá Assim cuma pomba na sê ninho

Si pomba é feliz na sê ninho A mim também mi é feliz Na sombra di odjo ma carinho

Di Miss Perfumado

Deixa-me morrer a sonhar Na sombra dos teus olhos tristes

Duma pequena gentil De um corpo perfumado Assim deixa-me morrer oh flor

Na sombra dos teus olhinhos Deixa-me morrer a sonhar Assim como uma pomba no seu ninho

Se a pomba é feliz no seu ninho Eu também sou feliz Na sombra do olho e carinho

Duma Miss perfumada.

Lobban Jr. e Saucier (2007) afirmam que Cabo Verde gravita em torno da língua e literatura crioula, que acabam por produzir uma serie de contos, poesias, músicas, danças, vestidos, comidas, artes e manifestações culturais das mais diversas, baseadas no crioulo, sendo um elemento de união nacional. Não obstante as duras medidas portuguesas para reprimi-lo durante o período colonial, o crioulo conseguiu afirmar-se como língua franca, e segundo Veiga (1978) é a mais importante manifestação cultural e fundamento maior da identidade cabo-verdiana, sendo sinônimo de cultura cabo-verdiana.

Brito-Semedo(2006), em uma fundamentada e completa revisão sobre o processo de formação da identidade cabo-verdiana, defende que o processo de formação de identidade foi realizada em etapas, de forma progressiva e acumulativa. Ainda segundo o autor, este processo dependeu fortemente do estabelecimento de uma elite letrada, que passou a divulgar em periódicos não oficiais as ideias responsáveis pelo surgimento de uma identidade nacional cabo-verdiana.

Para entender melhor este processo, Brito-Semedo (2006) identificou períodos ou etapas distintas, afetadas por uma série de eventos externos que o autor nomeou da seguinte forma:

sentimento nativista (1856-1932), consciência regionalista (1932-1958) e a afirmação nacionalista (1958-1975).

Brito-Semedo (2006) indica que o nativismo foi um termo utilizado pelas elites africanas para exprimir o sentimento de serem os que possuíam os valores culturais dos povos que os formaram, com a identificação e com a ideia de futuramente serem um país autônomo. No caso cabo-verdiano, o nativismo pode ser atribuído a três fatores: o abandono das ilhas por Portugal, as crises periódicas que causaram fome e miséria e as diferenças de tratamento dado aos nativos, baseados em leis discriminatórias. As ideias nativistas, segundo Brito-Semedo (2006) mostravam que a elite ainda mantinha Portugal como sua pátria, assim como tinha fortes relações patrióticas com Cabo Verde, numa espécie de dupla nacionalidade, com amor de igual intensidade para as duas pátrias, como se os interesses não fossem conflitantes. Brito-Semedo (2006) cita o poema de Eugénio Tavares, “Cartas para América”, para ilustrar este sentimento:

"Amo tanto o velho e glorioso Portugal que nunca me deixei arrastar pela paixão e pelo erro de lhe imputar o crime de não tratar como filhas, senão como servas, as colónias. Amo tanto a República que, ainda hoje lhe não exprobro o descuido de nos conservar fora do raio de acção das claridades democráticas projectadas pela Revolução. Amo tanto Cabo Verde que através de uma existência de lutas, de sofrimentos, com a minha carne lacerada e o espírito batido de decepções, ainda me esqueço de mim para pensar nele; ainda exponho o meu coração às setas ervadas dos meus inimigos, para o cobrir aos golpes dos que o desamam". (Eugénio Tavares, "Cartas para a América", A Voz de Cabo Verde, nº 74, Praia, Janeiro de 1913) em Brito-Semedo (2006)

Assim, a fase nativista, considerada a primeira etapa do processo de construção da identidade nacional cabo-verdiana, foi retomada e expandida, posteriormente por uma nova elite, com uma ideologia regionalista, conhecida como Geração da Claridade (1936-1958) (BRITO-SEMEDO, 2006). O regionalismo seria uma atitude derivada da consciência das desigualdades, que motiva um espirito de contestação, uma busca por autonomia, uma visão mais local e focada nos problemas centrais de Cabo-Verde, incluindo as condições de vida do povo, diferenciando o do povo português e dando passos largos a uma diferenciação e consciência de possuir uma identidade própria, uma identidade cabo-verdiana.

Brito-Semedo(2006) indica que esta nova fase foi fortemente baseada no modelo brasileiro, que influenciou Cabo Verde através de um grande número de obras literárias brasileiras, derivadas

do modernismo, e de abalos da década de 1930, como a crise cafeeira, o declínio do Nordeste Brasileiro e profundas modificações das estruturas sociais.

O movimento literário brasileiro, modernista e com forte apelo regionalista, com autores como Graciliano Ramos (1892-1953), José Lins do Rego (1901-1957), Jorge Amado (1912-2001) e Érico Veríssimo (1905-1975), permitia que os cabo-verdianos se identificassem muito mais com esta literatura, do que a literatura portuguesa. Esta identificação com o Brasil, em especial com o nordeste brasileiro, deve-se ao fato que os dois povos compartilhavam em grande parte das mesmas dificuldades, do processo de formação histórico, da geografia, da alma do povo, da música, dos problemas sociais, de secas e dificuldades, embora em diferentes escalas, conforme foi exposto muito claramente por Jorge Barbosa (1956), em seu poema, “Você, Brasil”:

“Você, Brasil, é parecido com a minha terra. As secas do Ceará são as nossas estiagens, com a mesma intensidade de dramas e renúncias. Mas há uma diferença no entanto:

é que os seus retirantes

têm léguas sem conta para fugir dos flagelos, ao passo que aqui nem chega a haver os que fogem porque seria para se afogarem no mar...”

Fonte: Jorge Barbosa, “Você Brasil”, in Caderno de um Ilhéu, Lisboa, 1956. Agora, in Jorge Barbosa. Poesias I, Praia, 1989, pp. 159-161 apud Brito-Semedo (2006, p.326)

Desta forma, assim como ocorreu no Brasil, os cabo-verdianos também focaram-se sobre a sua terra natal, seu povo, e seus problemas, deixando consequentemente de lado Portugal, voltando o foco para dentro, um olhar regional, iniciando desta forma um processo que culminaria no nacionalismo e a busca pela independência.

O movimento nacionalista foi marcado por uma aversão à opressão, que inicia-se em uma reafirmação cultural, que é então conduzida pela elite política cabo-verdiana ao reivindicar de forma consciente e explicita a sua herança africana, ao mesmo tempo que expõe o abandono sofrido pelo regime colonial, além das crises, inclusive os frequentes episódios de fome generalizada do arquipélago, clamando por uma posição de emancipação deste regime colonial, que deveria ser combatido (BRITO-SEMEDO, 2006). Esta reivindicação, embora tenha se iniciado exclusivamente como um protesto intelectual, ideológico, evoluiu para uma luta efetiva, armada, em um protesto cultural que representou uma ruptura com o antigo sistema e provocou a criação de um país e um povo independente, culminando na guerra de independência nacional, e a independência Cabo-verdiana em 5 de Julho de 1975.