2 MOÇAMBIQUE E A LÍNGUA PORTUGUESA
3.3 IDENTIDADE: CONCEITO EM CONSTRUÇÃO
3.3.1 Identidade nacional e identidade linguística
A definição primeira que nos ocorre quando pensamos em identidade nacional, na
maioria das vezes, restringe-se ao território geográfico de nascimento de um indivíduo, onde
se desenvolve, na maioria das vezes, uma relação afetiva com o solo que, por vezes, faz o
indivíduo sentir-se parte integrante da terra onde nasceu, gerando laços com a língua e a
cultura local deste espaço territorial, pois, segundo Albrow (1999, p.29), “a nacionalidade é
atribuída [...] por associação com pessoas (indivíduos ou coletividades); por associação com
território; por associação com a cultura”. Esse autor acrescenta ainda que:
“Identidade nacional” então pode significar tanto um traço nacional que uma pessoa possa ter quanto a identidade da nação como entidade. Usada de forma ambígua, “identidade nacional” pode referir-se simultaneamente ao
indivíduo e à coletividade. Assim, a “nação” é então constituída por aqueles que têm a mesma “identidade nacional” (1999, p. 31-2).
Para Canclini (2008, p. 190), “ter uma identidade seria, antes de mais nada, ter um
país, uma cidade ou um bairro, uma entidade em que tudo o que é compartilhado pelos
que habitam esse lugar se tornasse idêntico ou intercambiável.”
Nessa visão, Brito e Martins (2004, p. 72) lembram que:
[...] a constituição de uma nação presume a convivência de diferentes grupos étnicos e a existência de diferentes camadas sociais; ademais, há a inclusão de elementos culturais variados, misturas de raças, religiões, línguas, mitos, crenças e tradições, responsáveis por constituírem uma identidade cultural e, consequentemente, nacional.
Segundo Fiorin (2010, p.16), “a identidade nacional, em todo o mundo, é uma criação
moderna. Tem início no século XVII e desenvolve-se plenamente no século XIX. Antes dessa
época não se pode falar em nações propriamente ditas, nem na Europa, nem em outras partes
do mundo”. Essa criação identitária serviu para diferenciar o povo de uma nação de outra,
atribuindo significados para si e para o mundo ao marcar e ressaltar as igualdades e as
diferenças culturais, linguísticas, sociais e políticas de cada grupo.
Para Mattoso (1998),
a consciência de pertença a um determinado país exprime-se por meio de uma ideia que se poderia traduzir na frase “nós somos portugueses; os outros são estrangeiros”. Ou seja, eu pertenço a uma categoria de indivíduos que se caracterizam especificamente pela comum condição de portugueses e que se distinguem de todos os outros homens por estes não o serem ou, o que é o mesmo, por serem estrangeiros.
Nesse sentido, aquilo que define a identidade nacional de um ser humano é seu
sentimento de pertença, de integração a uma sociedade ou nação, construído por meio de uma
consciência de unidade identitária e/ou consciência de alteridade, isto é, respectivamente a
maneira individual e coletiva como o indivíduo se apresenta ao mundo e/ou a maneira
individual e coletiva como se diferencia do mundo. De acordo com o artigo 15 da Declaração
de Direitos Humanos: “1. Todo homem tem direito a uma nacionalidade. 2. Ninguém será
arbitrariamente privado de sua nacionalidade, nem do direito de mudar de nacionalidade”.
Hall (2006, p.49) argumenta que “as identidades nacionais não são coisas com as quais
os sujeitos nascem, mas são formadas e transformadas no interior da representação.” A esse
respeito, Bauman (2005, p. 28) acrescenta que:
A identidade nacional [...] nunca foi como as outras identidades. Diferentemente delas, que não exigiam adesão inequívoca e fidelidade exclusiva, a identidade nacional não reconhecia competidores, muito menos opositores. Cuidadosamente construída pelo Estado e suas forças [...], a identidade nacional objetivava o direito monopolista de traçar a fronteira entre “nós” e “eles”.
Diante dessa perspectiva, compreendemos que as identidades nacionais são imagens
construídas pelo governo de uma nação; dessa forma, cada país elabora sua identidade,
pautando-se na sua própria história, nos seus próprios hábitos e costumes. Nessa mesma
perspectiva, Firmino (2002, p. 31) afirma que:
O nacionalismo constrói-se através de uma consciência popular de nação, isto é, a consciência de um povo que se sente como uma comunidade ligada por laços históricos, culturais e de uma ancestralidade comum. As nações podem apresentar características “subjectivas”, consistindo na consciência nas pessoas da sua nacionalidade e a afeição por ela, a tal ponto que a aceitam como causa pela qual possam morrer.
Mattoso (1998) lembra que a identidade nacional é praticamente inconcebível:
1. Sem alguma forma de expressão política, isto é, sem que em algum
momento da história se manifeste através da apropriação de um poder dotado de certo grau de autonomia (ou seja através de alguma formas de Estado);
2. Se um polo espacial e um território determinados, mesmo que esse
polo se transfira para outro ponto e que as fronteiras do território variem ao longo dos tempos;
3. Sem que a autonomia política e o seu âmbito territorial permaneçam
de forma continua durante um período temporal considerável. [...] a duração da autonomia política e a continuidade do território são factores importantes para a solidez e o aprofundamento da identidade nacional.
Entendemos, dessa maneira, que o nacionalismo é uma invenção política do Estado
que ocorre em algum espaço geográfico durante um determinado tempo. A identidade
nacional é formada ao longo do tempo por meio de processos históricos. Não se pode
acreditar que se trata de algo inato ao ser humano, isto é, pré-existente na consciência do
indivíduo no momento de seu nascimento.
Sabemos que tempo e espaço são elementos móveis nesse processo de nacionalização,
podem, portanto ser alterados a qualquer momento. Dessa forma, apesar de a identidade
nacional permanecer em constante processo de formação, é a invariabilidade desses elementos
por um longo período que pode assegurar a consistência de uma nação. Isto é, se inalterados
durante muito tempo, constituir-se-á uma identidade nacional em relação ao território em
questão. A consciência da identidade nacional, nessa perspectiva, tem valor exclusivamente
territorial de fronteiras, é a fronteira territorial que nos diferencia um do outro.
Por isso, Bauman (2005, p.17) aponta para a necessidade de nos tornarmos conscientes
de que:
[...] o “pertencimento” e a “identidade” não tem a solidez de uma rocha, não são garantidos para toda a vida, são bastante negociáveis e revogáveis, e de que as decisões que o próprio individuo toma, os caminhos que percorre, a maneira como age – e a terminação de se manter firme a tudo isso – são fatores cruciais tanto para o “pertencimento” quanto para a “identidade”.
Assim, o que nos distingue um do outro, isto é, o que diferencia um indivíduo de uma
determinada localidade de um ser de outra parte do mundo é aquilo que marca a sua
nacionalidade e o seu sentimento de pertença. São as diferenças, neste caso, que ao mesmo
tempo nos constituem e ao mesmo tempo nos difere. Sob essa percepção, a identidade
nacional não pode ser entendida como um fato da vida, nem herança genética, nem herança
territorial. As pessoas não são apenas sujeitos sociais legais de uma nação; elas participam da
ideia da nação tal como representada em sua cultura nacional. Nesta perspectiva, a
consciência de identidade nacional só se faz a partir da participação da população na vida
pública de seu país, isto é, pelo exercício da cidadania. Sobre isso, vale a reflexão de Paulo
Freire (1979, p.43):
A partir das relações do homem com a realidade, resultantes de estar com ela e de estar nela, pelos atos de criação, recriação e decisão, vai ele dinamizando o seu mundo. Vai dominando a realidade. Vai humanizando-a. Vai acrescentando a ela algo de que ele mesmo é fazedor. Vai temporalizando os espaços geográficos. Faz cultura. [...] E, na medida em que cria, recria e decide, vão se conformando as épocas históricas. É também criando e decidindo que o homem deve participar destas épocas.
Logo, sabemos que a identidade nacional de um indivíduo não se restringir apenas a
territorialidade de seu nascimento, mas da sua participação já que, por diversas vezes,
tomamos conhecimento de países, que por razões políticas, privam cidadãos do exercício de
sua cidadania, os quais se veem obrigados a buscar abrigo em outro território, o qual se torna,
muitas vezes, a sua nova nação. Deste modo, verificamos que o sujeito de uma nação é um
importante instrumento para a construção da identidade nacional porque ao ser inserido e
integrado no mundo não só produz cultura, como também configura a história da sua época.
Além disso, Mattoso (1998) aponta para o fato de que o processo de conscientização
nacional pode ocorrer:
[...] pelo uso constante de emblemas e sinais concretos, como escudo de armas do rei, a bandeira nacional e a moeda. Tornaram-se, de facto, sinais identificadores. A sua categoria simbólica dotava-se de um poder emocional que contribui para fazer esquecer o seu sentido primitivo de emblemas de dominação.
Os elementos simbólicos da pátria parecem despertar no indivíduo um poder
emocional que resulta na atribuição de valor positivo ao espaço nacional, que passa a ser visto
como um todo, sem qualquer distinção entre as regiões da nação e, com isso,
progressivamente os indivíduos passam a se conscientizar da identidade nacional numa
percepção coletiva. Nesse sentido, afirmamos que um indivíduo só reconhece, por exemplo, o
seu “eu” nacional, a partir de sua consciência nacional coletiva.
Sob esse aspecto, Mattoso (1998) afirma que:
O processo [de identidade nacional] tem um ponto de partida meramente político: a apropriação do poder por um chefe com uma autoridade própria sobre um conjunto de homens; tem um ponto de chegada que já não se pode classificar como meramente político, mas que se situa no domínio dos fenômenos da sociologia ou da psicologia social. O processo que conduz de um ao outro consiste, em primeiro lugar, no alargamento progressivo do conjunto de homens que considera um valor a pertença a esse colectivo e que é capaz de compreender o seu interesse em lhe pertencer; e em segundo lugar na conotação da ideia de colectivo nacional de forma a poder formulá-la através de representações mentais simultaneamente adaptadas à compreensão simples e a uma averiguação complexa de sua natureza.
Apesar das palavras de Mattoso revelar que a ampliação da identidade nacional do
individual para o coletivo ocorre por meio de questões sociais, certamente o fator político é o
fator mais determinante da constituição de uma identidade nacional. Basta olharmos para a
África para reconhecermos que os países existentes hoje neste continente não tiveram origem
a partir de uma questão social, mas de uma questão de política, principalmente aqueles que se
tornaram independentes depois da segunda metade do século XX.
O poder político ignorou as questões étnico-linguísticas dos povos africanos, ou seja,
as questões culturais, constituindo, assim, nações que são um mosaico étnico-linguístico de
povos, na qual nenhum grupo étnico-linguístico emerge como o mais importante e
permanecem unidos por meio da língua daqueles que foram seus colonizadores. Nesse
sentido, além do sujeito, segundo Hall (2006, p.11), “o mais importante símbolo nacional é
sem dúvida a língua. As dúvidas acerca da língua oficial envolvem também importantes
questões acerca da identidade nacional”.
Mattoso (1998) ainda ressalta que
a identidade nacional, tal como existe hoje, resulta de um processo histórico que passou por diversas fases até atingir a expressão que actualmente conhecemos. [...]. Nalguns casos os fenómenos culturais terão, porventura, maior peso na formação da identidade nacional, noutros serão os acontecimentos políticos os mais decisivos, noutros, ainda, os factores econômicos ou sociais.
Esse pensamento pode ser complementado pela afirmação de Bauman (2005, p.22): “a
fragilidade e a condição eternamente provisória da identidade não podem mais ser ocultadas”.
Acerca disso, Hall (2006, p.108) lembra que:
As identidades não são nunca unificadas; que elas são, na modernidade tardia, as identidades são cada vez mais fragmentadas e fraturadas; elas não são, nunca, singulares, mas multiplamente construídas ao longo de discursos, práticas e posições que podem se cruzar ou ser antagônicas. As identidades estão sujeitas a uma historização radical, estando constantemente em processo de mudança e transformação.
Logo, entendemos que a identidade nacional constitui-se predominantemente de fatos
históricos, pois entendemos que a história se faz de fatores culturais, sociais, econômicos e
políticos. Se considerarmos que esses elementos são variáveis e influenciáveis entre si,
compreenderemos que a história é um processo contínuo e em permanente construção e que,
portanto, a identidade nacional de um povo é móvel tanto no seu espaço quanto no seu tempo,
uma vez que podem existir pessoas que depois de certo tempo de convívio em um
determinado local sintam-se pertencentes ao lugar em que vivem e não ao lugar onde
nasceram; bem como pode haver uma reconfiguração geográfica.
No que se refere à reconfiguração geográfica, podemos tomar como exemplo deste
século, as lutas dos separatistas catalães que desejam que a Catalunha seja independente da
Espanha. Se retornarmos um pouco na história mundial, no final do século XIX, nos
deparamos com a Conferência de Berlim que repaginou o continente africano inteiro de
acordo com os interesses econômicos e políticos da França, Alemanha, Portugal,
Grã-Bretanha e entre outros, atribuindo de maneira impositiva uma nova identidade nacional ao
povo africano.
A partir dessa reconfiguração territorial e dos fatores políticos que a sucederam, mais
tarde, já no final do século XX, com as independências dos países africanos, novas
identidades nacionais são (re)formatadas sob a ordem de fenômenos culturais e, também,
políticos. De acordo com Hall (2006 p. 7), “as velhas identidades, que por tanto tempo
estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e
fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado”.
Essa reorganização da identidade nacional dos países africanos é na, maioria das
vezes, determinada pelos fenômenos políticos, como é o caso da escolha da língua oficial de
muitos deles. Exemplo disso é o país moçambicano, ao qual dedicaremos o próximo capítulo
desta tese.
Nesse aspecto, para conceber a identidade nacional de um povo, bem como
diferenciá-lo de outros e compreender o seu vadiferenciá-lor, é necessário reconhecer a sua expressão cultural e sua
política num espaço territorial determinado, pois,
a base da autonomia nacional é a existência de um poder constituído num território determinado, ao passo que a base da comunidade cultural resulta da adoção das mesmas categorias de interpretação do mundo, do mesmo sistema de valores e das mesmas práticas culturais. (MATTOSO).
Nessa perspectiva, a adoção da língua do colonizador como língua oficial, já no
período da independência, vincula-se muito mais a um fator político do que a um fator
cultural. Isso explica, por exemplo, o fato de a língua portuguesa, oficial em Moçambique,
não ser utilizada pela maioria da população.
Por isso, Mattoso (1998) nos adverte que:
[...] as manifestações de consciência de identidade nacional podem ser diferentes e até contraditórias, conforme grupos humanos que envolvem e as épocas em que se situam. Assim, não é licito atribuir simultaneamente a todos os habitantes de um país as operações de diferenciação, de significação e de valorização quando envolvem apenas um determinado grupo.
A luz dessas concepções, a identidade nacional passa a ser compreendida como uma
somatória de valores políticos, culturais, linguísticos, entre outros resultantes de uma
convivência de pessoas que de alguma forma apresentam ao menos um traço em comum, seja
territorial, linguístico, cultural, social ou histórico.
Isso pode ser percebido a partir do processo de globalização mundial. A globalização
modificou o mundo moderno e contemporâneo, transformando fronteiras fixas em fronteiras
difusas. Para Bauman (2005, p. 33):
A sabedoria popular foi rápida em perceber os novos requisitos e prontamente ridicularizou a sabedoria aceita [...]. Em 1994, um cartaz espalhado pelas ruas de Berlim ridicularizava a lealdade a estruturas que não eram mais capazes de conter as realidades do mundo: “Seu cristo é judeu. Seu carro é japonês. Sua pizza é italiana. Sua democracia, grega. Seu café, brasileiro. Seu feriado, turco. Seus algarismos, arábicos. Sua letras, latinas. Só o seu vizinho é estrangeiro”.
Essa transformação desencadeou uma discussão acerca da preservação das identidades
nacionais, passando a unir o mundo não só mais em comunidades continentais geográficas,
mas também em espaços virtuais e imaginários.
Essas considerações remetem a Anderson (apud FIRMINO, 2002, p. 38) que afirma
que:
“[...] a nação moderna é uma “comunidade imaginada” cujos membros não sabem muito sobre os seus co-membros, embora exista, em cada mente, um sentido de comunhão que os une. A nação é imaginada na mente dos seus membros como limitada, já que ela só compreende parte da humanidade e é distinta das outras nações; como soberana, porque é independente no tocante à sua legislação interna; e, acima de tudo, como uma comunidade fraternal na qual existe um profundo espírito de camaradagem horizontal, não obstante as desigualdades e a exploração que os seus membros podem sofrer”.