2 MOÇAMBIQUE E A LÍNGUA PORTUGUESA
4.5 SER MOÇAMBICANO
A identidade moçambicana já está constituída, uma vez que a primeira coisa que deve
existir num indivíduo de uma dada sociedade e/ou nação é o sentimento de pertença. Nas
palavras do professor H:
Ser moçambicano é ser um cidadão que consegue, dentro do seu país, ter áreas de intervenção em todas as áreas. Sentir-se moçambicano pra mim é isso, é eu poder estar no meu país e poder sentir-me que posso atuar. Embora isto não é assim como estou a dizer. Estou a falar aqui de uma forma literal. Na realidade há coisas que não são, não tem um... Como eu posso dizer? Não é... Não é capacidade, mas não tem um, não sei se é autorização também. Sinto-me com limites para poder fazer. Porque o próprio estado não permite que eu faça. Mas, a partir da altura que eu me sinto realizada em alguns aspectos onde tenho área de manobra, eu posso dizer que me sinto feliz por ser moçambicana. O que não posso fazer em qualquer outro país. Eu me sinto, eu posso, consigo sair, estar na minha casa, poder sair, convidar pessoas. Em Portugal eu tive uma grande dificuldade. A vida em Portugal é muito fechada. Principalmente a falar de Portugal, Lisboa.
Nessa fala, podemos observar que o moçambicano, embora tenha vivido em outros
lugares, identifica-se com a sua própria história e com a história do seu país. Esse sentimento
de pertença a Moçambique, ainda que alguns sintam falta de outro idioma, já está
consolidado. Como podemos observar na fala do Professor K:
[...] eu acho que ser moçambicana é como ser qualquer outra nacionalidade, não é. É estar ligada a um território, estar ligada a um grupo de pessoas, mas ao mesmo tempo também ter quer dizer, ter esse sentimento de pertença a um país, mas também ter uma pertença maior. Porque eu penso, eu sempre pensei que eu não estou apenas ligada a este país. Eu vejo-me, com o cheiro do meu país, com as cores deste meu país, mas penso este meu país em função também dos outros países, porque eu não tenho essa noção estreita de nacionalidade, etc, não é, de cidadania. Eu
vejo-me como uma cidadã do mundo. Mas que tem os pés aqui assim. [em
Moçambique].
Dentre os entrevistados, são essas duas as respostas acerca do que é ser moçambicano
que nos chamam a atenção, pois apontam respectivamente a importância de se identificar
internamente com seu país, mas também estar disposto a dialogar com outras culturas a fim de
contribuir para a sua própria construção identitária, como bem lembra o Professor D: “O que
eu posso fazer é olhar para eles [outros povos] e ver o que eu consigo buscar deles para
aplicar dentro da moçambicanidade”.
Para o entrevistado E,
O moçambicano me surpreende [...]. Não sei se existiriam características, por assim dizer, são inquestionáveis. O que caracteriza o moçambicano é a surpresa. Ele não é, quer dizer, elevai mostrando coisas que nos fazem admirar. Há vezes que a gente tem que perguntar: “Aquele é moçambicano mesmo?” Porque tem, digamos, traços novos, não é?[...] o moçambicano é um indivíduo que facilmente se adapta a novas coisas.
Diante do exposto nos trechos assinalados, podemos afirmar que a língua portuguesa e
a identidade moçambicana não são mais questionamentos. As preocupações de Moçambique
agora são outras, como por exemplo, o ensino bilíngue e a sistematização de línguas bantu
para que possam atingir também o estatuto de língua oficial.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Identidade, língua, marcas culturais: são três fantasmas partilhando a mesma cama. E quando se entra no quarto, acreditando surpreendê-los em flagrante delito eis que descobrimos que não há cama, nem quarto, nem amantes.
Mia Couto22
O presente estudo, intitulado Moçambique é maningue nice: reflexões sobre lusofonia
e identidade, teve como propósito responder a duas questões que nortearam esta investigação.
A primeira questão buscava saber se Moçambique, país de língua oficial portuguesa, poderia
ser considerado (ou não) um país lusófono. A segunda pretendia identificar se a língua
portuguesa, ainda que herança do colonizador, poderia ser compreendida como elemento
coesivo e identitário do povo moçambicano.
Para isso, foram traçados como objetivos de pesquisa discutir os conceitos atribuídos
ao termo Lusofonia, buscando identificar e relacionar o mais adequado à proposta desta
pesquisa; abordar o conceito de identidade e de identidade linguística; verificar se há
características que delineiam uma identidade lusófona; contextualizar histórica e
linguisticamente Moçambique; e averiguar se há identificação dos moçambicanos com a
língua portuguesa e se por ela se sentem representados.
Para atingir os objetivos e responder às questões, compilamos informações acerca do
contexto histórico-linguístico de Moçambique e partimos de reflexões sobre Lusofonia e
identidade para analisarmos as entrevistas realizadas in loco, com 11 professores
moçambicanos, da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, da Universidade Eduardo
Mondlane, localizada na cidade de Maputo, capital do país.
A partir do desdobramento teórico, podemos compreender Moçambique como um país
lusófono, como partícipe desse continente imaginário, a Lusofonia, desde que
compreendamos o conceito de Lusofonia na contemporaneidade, na perspectiva da
22
Nasceu na Beira, em Moçambique, em 1955, e é um dos principais escritores africanos, comparado a Gabriel Garcia Márquez, Guimarães Rosa e Jorge Amado. Seu romance Terra sonâmbula foi considerado um dos dez melhores livros africanos do século XX. Em 1999, o autor recebeu o prêmio Vergílio Ferreira pelo conjunto de sua obra e, em 2007 o prêmio União Latina de Literaturas Românicas.
globalização, de comunidades imaginárias. Entretanto, se, com olhar retrógrado, entendermos
a Lusofonia sob a ótica do passado, é fato que nos depararemos com a dominação imperialista
portuguesa, o que pode nos levar a duvidar da intenção dessa congregação de povos falantes
de língua portuguesa. Quando restringimos nosso olhar ao período colonialista, é difícil
acreditarmos que possam existir relações recíprocas e aproximações identitárias no espaço da
Lusofonia, dada à supremacia portuguesa que permeia esse contexto. Nesse sentido, a
Lusofonia seria um disfarce para a implantação de um imperialismo (neocolonialismo)
linguístico, no qual a imperatriz seria a língua portuguesa, a mesma que, por período
multissecular, impôs-se culturalmente sobre os povos colonizados. Contudo, sabemos que o
olhar restrito ao passado não revela o presente e, por isso, torna-se um olhar simplista e
descontextualizado, desconsiderando as condições de produção do momento histórico
presente, no qual se insere a construção ou reconfiguração da palavra Lusofonia.
Na era da globalização, discorrer sobre Lusofonia não é desconsiderá-la sob a ótica do
passado, da colonização, mas é, também, associá-la ao presente, ao período pós-colonial,
quando se procura congregar e agregar diversas culturas e várias línguas numa determinada
comunidade, em que a relação cultural entre os diversos povos, se dá por meio de uma língua
que é concomitantemente una, mas não é singular; é plural. Una porque consegue congregar
os povos de oito países em torno de única língua e plural porque consegue agregar a essa
mesma língua características de línguas locais desses diferentes povos, a fim de demonstrar a
pluralidade cultural, étnica e linguística existente em cada uma das regiões de uso da língua
portuguesa. É nesse sentido que afirmamos que Moçambique é um país lusófono.
Ainda que mais tarde este país venha a ter outra(s) língua(s) autóctones elevadas ao
estatuto de língua oficial, permanecerá como lusófono. É importante ressaltar que, na
contemporaneidade, as identidades são diversas, nenhuma identidade fecha-se em si mesma.
Vivemos a era de identidades múltiplas; logo, Moçambique pode ser lusófono, mas pode
também ser paralelamente “bantófono”.
Essa multiplicidade de culturas existentes em Moçambique já há muito tempo
evidencia-se no seu próprio contexto linguísitico, a exemplo do título deste trabalho,
Moçambique é maningue nice, em que “Moçambique” é um nome derivado do árabe, “é” é o
verbo ser, conjugado no presente do indicativo em língua portuguesa, “maningue” é um
advérbio de intensidade de uma língua nacional moçambicana e “nice” é um adjetivo do
inglês. Assim, na Lusofonia, Moçambique destaca-se como um dos países multilíngue e
multicultural.
Ainda sob o ponto de vista teórico, no que se refere à segunda questão, podemos
entender a língua portuguesa como elemento coesivo e identitário do povo moçambicano,
uma vez que identificamos a constituição do português moçambicano – posto que é por meio
da língua portuguesa que moçambicanos têm (com)partilhado valores culturais, que os
identificam e os diferenciam e, também, estabelecido acordos de cooperação para divulgação
e promoção de suas culturas neste mundo globalizado, bem como apresentado ao mundo a
necessidade de sistematização de suas línguas nacionais, seja para o ensino bilíngue ou para a
adoção da(s) língua(s) nacional(is) como língua oficial.
O desdobramento analítico das 11 entrevistas, embora seja um corpus reduzido e, por
isso, que não nos permite generalizações, aponta para uma recusa da caracterização de
Moçambique como um país lusófono. A maioria dos entrevistados ainda não reconhece
Moçambique como integrante da comunidade lusófona, embora reconheça a importância da
língua portuguesa como oficial. Possivelmente, o fato de a maioria dos entrevistados não
reconhecer Moçambique como um país lusófono esbarra ainda em questões de um passado
histórico ainda recente, em que o termo luso associa-se ao colonizador português. Além disso,
questões históricas apontam que Moçambique, ocupa-se, e preocupa-se, atualmente, com a
sua identidade cultural e linguística, como por exemplo, com a necessidade de elevar uma ou
mais línguas moçambicanas ao estatuto de língua oficial ou como língua de ensino.
Moçambique tem, portanto, questões internas que se sobrepõem a essa comunidade, global e
imaginada, a comunidade lusófona.
Para a maior parte dos entrevistados, integrar a Comunidade de Países de Língua
Portuguesa, da CPLP, não significa pertencer, necessariamente, à comunidade lusófona. A
CPLP é uma instituição oficial, e Moçambique é constitucionalmente um país de língua
portuguesa. Identificar-se como membro dessa comunidade imaginada para os entrevistados
envolvem muitas questões que ultrapassam a oficialidade da língua.
Diferentemente disso, no que se refere à língua portuguesa como elemento coesivo e
identitário de Moçambique, notamos que há unanimidade, principalmente pelo fato de que
grande parte dos entrevistados falam somente o português e, também, porque eles veem o
português como a língua de comunicação entre os moçambicanos de língua nacional diversa
um do outro. É na língua portuguesa que os moçambicanos de línguas maternas diversas se
encontram para compartilhar suas culturas.
No entanto, atingidos os objetivos de pesquisa e respondias as questões propostas,
reconhecemos Moçambique como um país pertencente à comunidade lusófona, não só pela
oficialidade da língua, mas por vermos essa língua assumindo contornos moçambicanos,
configurando-se, portanto, como a variedade do português moçambicano. Sabemos que a
língua oficial de Moçambique é portuguesa, mas é também moçambicana; uma língua
transformada e enriquecida pelos aspectos linguísticos e sócio-histórico-culturais desse país,
os quais já se refletem na estrutura e no léxico da língua europeia. Se por meio da língua que
partilhamos cultura, é esse português moçambicano que partilha, na própria língua, a sua
cultura e a sua história, e faz, consequentemente, esta nação pertencer à comunidade lusófona.
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