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3. EDUCAÇÃO CONTINUADA E TRABALHO DOCENTE NO BLOCO INICIAL DE

3.6. A importância da cultura da sala de aula

Criar condições, incita, buscar responder às questões apresentadas pelo cotidiano, para tanto se torna imprescindível, considerar todo o contexto no qual essas situações são produzidas. André (2005) destaca a importância de se conhecer o que constitui a vida escolar cotidiana para que se possa entender o processo de construção da cultura de cada escola, o que considera fundamental para questionar a origem de seus problemas, o contexto específico em que são produzidos; o seu significado para o momento histórico e seus condicionantes e implicações.

A autora enfatiza a importância de investigar as especificidades do cotidiano escolar:

[...] para tentarmos compreender, por exemplo, como os atores escolares se apropriam das normas oficiais, dos regulamentos, das inovações; que peso têm as relações sociais na aceitação ou na resistência a essas normas; que processos são gerados no dia-a-dia escolar para responder às demanda das políticas educacionais, aos anseios das famílias e aos desafios do ensino em sala de aula (ibid. 13).

A investigação da realidade escolar oportuniza a compreensão das situações que dela emergem. A especificidade da cultura escolar é singular a uma instituição, na medida em que resulta das relações estabelecidas entre os atores educacionais que dela participam. Para analisar as questões inquietantes, torna-se necessário que elas sejam discutidas pelo grupo envolvido, que sejam entrelaçadas aos elementos que fluem do cotidiano à luz de um referencial teórico, compreendendo e interpretando os sujeitos e suas ações. Dessa forma, o professor pesquisador cumpre sua função social, ao tomar como responsabilidade a busca de respostas dos questionamentos de sua comunidade, compreendendo sua cultura.

Assim como a cultura escolar singulariza uma instituição, cada sala de aula também se torna singularizada pelo modo como nela são instituídas as interações sociais. Ao realizar a pesquisa, e vivenciar o cotidiano escolar de cada uma das três etapas do BIA, essa singularidade ficou nitidamente clara. Cada uma das professoras demarcou seu estilo de ser em sala de aula, o que conseqüentemente tornou ímpar as situações vivenciadas pelas crianças que a freqüentam.

A professora da Etapa I manteve uma rotina escolar, em que ao adentrar a sala de aula, as crianças organizavam-se numa roda para conversar – a Hora das Novidades, logo em seguida, explorava o calendário do mês e faziam a contagem das crianças presentes. A

professora aproveitava esse momento para dar os encaminhamentos da atividade seguinte. Ao término das atividades, as crianças podiam manusear livros com histórias infantis. Incluíam- se, nas atividades dessa rotina escolar, o lanche e o recreio.

Após o recreio as crianças dessa etapa permaneciam no parquinho por mais quinze minutos, pois as professoras consideram importante a vivência desse momento, pela idade das crianças e sua disposição para produção durante o período escolar. Na maioria das vezes, ao retornar à sala a professora contava-lhes uma história e propunha-lhes alguma atividade. As crianças sentavam-se em grupos de quatro crianças, podendo mudar de grupo, por interesse próprio ou da professora.

As crianças da Etapa II vivenciaram uma rotina diferenciada. Ao entrar em sala iam logo organizando o calendário e em seguida eram motivadas a realizar uma atividade proposta pela professora, envolvendo uma área do conhecimento. Terminavam geralmente no horário do lanche, que era seguido pelo recreio. Após o recreio, realizavam uma outra atividade pedagógica, o que findava com o término da aula. As crianças sentavam-se em grupos de seis, organizados nas áreas laterais da sala e no centro havia quatro filas, cada uma com três carteiras. As crianças dos grupos mudavam de lugar entre os grupos, enquanto as crianças do centro trocavam de lugar com as outras que sentavam nesse espaço.

Na maioria das vezes, as crianças da etapa III começavam suas atividades com a correção coletiva da tarefa de casa, momento em que a professora explorava as representações apresentadas pelas crianças em relação aos conceitos trabalhados. Logo em seguida, realizavam uma atividade pedagógica proposta pela professora. Paravam para o lanche e o recreio e retornavam às atividades.

Outras tarefas lhes eram propostas, à medida que iam terminando. Para isso a professora chamava as crianças em pequenos grupos e lhes explicava a atividade. Nessa turma, as crianças sentavam-se em fileiras, havia três fileiras, cada uma com três carteiras, e geralmente, as crianças mantinham-se nos mesmos trios.

A configuração espacial das três turmas, onde transcorreu a pesquisa ficou representada conforme mostra o Quadro 7:

Quadro 7 – Organização espacial da sala de aula

Etapa I Etapa II Etapa III

Elaborado pela pesquisadora, a partir das observações em cada uma das salas de aula.

A turma da Etapa I é uma turma de inclusão, isto é, possui uma criança ANEE - com deficiência visual – baixa visão, portanto tem garantido uma redução prevista no item 4.7.4 – Constituição de turmas - Estratégia de Matrícula 2007, por isso possui 22 alunos. Caso fosse uma turma regular, poderia ter no mínimo 24 alunos e no máximo 30. As turmas de Etapa II e III são regulares, possuem cada uma delas 35 alunos. De acordo com o item 4.2 – Constituição de turma da Estratégia de Matrícula 2007, essas turmas poderiam ter no mínimo 30 alunos e no máximo 45. A quantidade de alunos atendidos nas turmas de Etapas II e III (35) representa um número relativamente excessivo para uma turma de alfabetização, uma vez que a professora necessita acompanhar as elaborações das aprendizagens de cada um deles.

A observação da organização espacial dessas salas de aula possibilita diversas análises. A sala da Etapa I apresenta um espaço com maiores possibilidades de locomoção, enquanto as turmas de Etapa II e III a dificultam. A quantidade de crianças em sala contribuiu para o adensamento do espaço, de forma que, por mais que a professora o reorganize, ficará com o aspecto de “apertado”. As mesas dessas salas ficam bem próximas umas das outras, prejudicando a passagem entre elas, inclusive da professora. As aulas das professoras foram gravadas, durante sua reprodução, a fala da professora da Etapa I é claramente ouvida, no entanto a fala das professoras das outras etapas ficou prejudicada, pelos constantes ruídos sonoros, provocados no ambiente da sala de aula. São cadeiras arrastadas para permitir a locomoção de algumas crianças até a lixeira, ou mesmo para possibilitar à professora acompanhar a atividade das crianças que ficam no meio dos grupos. Parece que a diferença de dez crianças entre o número de crianças atendidas na etapa I e nas etapas II e II não interfere na qualidade das condições de trabalho, no entanto certamente o ambiente sonoro a que ficam expostas crianças e professoras é bastante diferente. Inclusive as falas das crianças da Etapa I são nitidamente ouvidas, enquanto nas outras Etapas, há sempre falas simultâneas,

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por mais que as professoras se esforcem para garantir a fala de uma criança, há sempre outras usufruindo desse direito. Essa situação se agrava quando a professora deseja conhecer as representações de cada criança para depois trabalhar o conteúdo.

Fato que ocorreu quando a professora Lara estava contando uma história. A professora procurou ouvir o pensamento de algumas crianças, porque não era possível ouvir todas, caso fizesse isso “demoraria mais que as duas horas que gastei para contar a história que poderia

ter sido contada, em trinta minutos”. Algumas crianças ficavam indignadas porque não dava tempo para que elas pudessem se expressar. Quando a professora contava a história, o silêncio imperava, no entanto quando fazia um questionamento havia muitos burburinhos e ficava difícil permitir a fala de todas. Essa situação também ocorria na turma de etapa II, no entanto não acontecia na etapa I.

O desejo de ouvir as crianças permeou a realização das atividades nas três etapas. As professoras procuravam manter um diálogo com as crianças, para compreender o pensamento delas em relação ao assunto que estava sendo trabalhado em sala de aula, a partir dessas representações, promoviam situações para oportunizar aprendizagens.

Outro ponto comum apresentado entre as professoras regentes refere-se ao momento em que se encontram no ciclo de vida profissional. Todas se encontram na fase final de carreira, demonstrando uma certa desilusão provocada pelas constantes mudanças educacionais que desconsideram os saberes docentes por elas elaborados durante sua trajetória profissional, conforme os depoimentos descritos no capítulo II.

Da mesma forma, também o curso “Ressignificando a Prática Pedagógica à luz do Pós-Construtivismo”, promovido pela equipe do CRA/CEF 18 em 2007, buscou demarcar sua cultura. Esclarecendo essa questão durante um dos encontros, Meg enfatizou que as atividades planejadas:

trazem a possibilidade de vocês se interarem das questões, para que no grupo de estudos, nas coordenações, vocês possam se reunir, discutir as questões pertinentes a cada turma e planejar, pensando na turma de cada um de vocês. Para isso vocês precisam observar os resultados da aula entrevista, o mapeamento da turma. Conversar sobre as angústias, fazer leituras teóricas para dar subsídios a essas angústias. Fazer a discussão, pensando em alternativas para superá-las. Pensar em realizar o interclasse semanalmente, planejar SOS, se for necessário, mas com um objetivo definido. Em uma escola, a partir do grupo de estudo, e percebendo a grande quantidade de alunos não-alfabetizados, o grupo planejou o interclasse e a partir dele um SOS para zerar com os Pré-Silábicos, não zerou, mas reduziu drasticamente (Encontro realizado em 17 de maio de 2007).

O CRA/CEF 18 teve a intenção de vencer as dificuldades surgidas no cotidiano escolar, conquistando o espaço/tempo da coordenação pedagógica, dedicado ao curso, para vencer a dessensibilização ideológica e oportunizar aos professores, a vivência de um processo intelectual crítico-reflexivo. Buscou despertar a atenção dos professores para a pesquisa das questões que afloram do cotidiano escolar, podendo repensar o ofício de ser professor. Com a constituição dos grupos de estudo na escola, os professores, mesmo não participando do curso, tinham contato com as discussões desencadeadas naquele espaço, repassadas pelo coordenador e/ou representante pedagógico da escola. Dentre as discussões que buscou aguçar incluiu o tema das interações sociais, abordadas por Freitas (2005) ao verificar o clima de dominação que imperava nas interações estabelecidas em sala de aula, durante todo o ano letivo.

O autor comenta que o estudante caminha sozinho no seu processo de elaboração do conhecimento, não lhe sendo permitido vivenciar situações de companheirismo e solidariedade. Dessa forma, o trabalho escolar baseia-se em ações individuais, desarticuladas da realidade, dirigido por regras impostas. No entanto, o cotidiano escolar deveria ser repleto de práticas sociais, oportunizando a vivência de atividades de interação, de parceira. Dessa forma, a função social da escola está, então, pautada numa concepção de escola capitalista, garantindo a manutenção da organização social em seu mesmo estilo (capitalista). Freitas (2005: 263) aborda que “com base nessa compreensão é fundamental reinventar as práticas [...] no interior da sala de aula”, considerando, permanentemente, a necessidade de se repensar o trabalho docente desenvolvido no cotidiano escolar, reorganizando seus princípios numa outra lógica.

O CRA/CEF 18, vislumbrando a reivenção dessas práticas no interior da sala de aula, propôs como tema de uma oficina, a discussão sobre a “Interação social na sala de aula”. Essa discussão foi novamente realizada, durante o curso promovido em 2007. A professora Lúcia esclareceu que a prioridade do curso seria “oportunizar ao professor situações para que ele

perceba que pode levá-las para a sala de aula”. Para tanto propuseram o trabalho em pequenos grupos. Durante um dos encontros houve a eleição dos grupos áulicos. Meg esclareceu que o “princípio para a formação dos grupos é a aprendizagem”, por isso, para que houvesse eleição seria necessário que as professoras-cursistas pensassem sobre essa questão, definindo três colegas, uma com a qual gostaria de aprender, outra com a qual gostaria de trocar e uma à qual gostaria de ensinar. A partir desses três elementos, e considerando outros, foi realizada a eleição entre as cursistas, destacando a importância da possibilidade de instituir essa dinâmica em sua sala de aula. Meg também destacou a

importância da “formação dos grupos de estudos na escola, para que os professores

pudessem, juntamente com os outros colegas, dinamizar o trabalho pedagógico da escola, na fase da alfabetização” e relembrou que esse tema também deveria ser discutido no grupo de estudos, explorando as nuanças desse trabalho na sala de aula. Ela enfatizou as situações de interação social oportunizadas pelo trabalho em grupo, pois a criança aprende a viver coletivamente na escola. A professora Ana reforçou a necessidade de se instituir esse trabalho no cotidiano escolar, durante uma discussão realizada no Fórum. Ela comentou:

As crianças de hoje mesmo de tendo acesso fácil às informações, pois elas estão em todos os lugares, tem um espaço de convivência muito difícil. Cada família tem poucos filhos, geralmente um. Cada filho tem uma televisão no seu quarto. As crianças quase não têm que resolver conflitos em casa, geralmente os pais fazem todos os gostos. Quando acontece alguma coisa na escola os pais dizem que na casa deles não acontece nada disso. Alguns pais querem garantir o privilégio dos filhos na escola, só que essa é uma das oportunidades dele ser igual. São trinta, e ele é “um”, não “o”. São trinta, e ele é um deles, assim ele vai aprender a conviver, aprender a ouvir, a esperar a vez de falar, aprender a resolver um conflito, a se frustrar. É na escola que as crianças vão aprender a viver socialmente, aprender a construir relações, aprender a dar e receber, aprender o jogo social. Na escola a criança descobre que ele é um entre tantos, que ele tem direitos iguais, que deve respeitar o espaço do outro. Aprende a abrir mão, a ceder.

A professora Ana, comentando o relato da professora Suzi, ao organizar o trabalho em sala em grupos áulicos, disse: “no segundo e terceiro dia, os meninos já queriam mudar, eles

não queriam mais o líder, o líder queria abdicar. Eles têm dificuldade de assumir compromisso, eles são imediatistas. Eles acham que tudo que sentem dificuldade em resolver tem que largar, tem que mudar de sala, de professor, de escola para resolver o problema”.

A professora Lúcia completou “é a hora que a família dá emprego ao psicólogo,

tentando descobrir o problema do filho e, às vezes para a gente isso fica muito claro”.

Todas essas questões enfatizam a importância do trabalho em sala de aula, priorizando situações de interação social, o que demanda a reconfiguração do trabalho docente, conforme a professora Jane enfatizou ao final dessas falas: “o trabalho docente precisa ser profissional,

realizado por professores que estudam, aprendem e que sabem que as crianças estão aprendendo”. Concepção essa fundamental para que seja instituída uma outra lógica para a o trabalho docente, inclusive para o BIA, que tem como prioridade desnudar a progressão escolar instituída outrora nas escolas brasilienses. Imprescindível para ressignificar esta organização escolar em ciclos, reconfigurando a idéia da progressão continuada, conforme

adverte Freitas (2002, 2003). Necessidade inexorável dessa organização da escolaridade, várias vezes adotada pelo sistema de ensino brasiliense e que, infelizmente, não conseguiu solucionar o grave problema da reprovação, evasão e internalização da exclusão, que impossibilita a inclusão escolar de grande parcela dos estudantes.