• Nenhum resultado encontrado

3. EDUCAÇÃO CONTINUADA E TRABALHO DOCENTE NO BLOCO INICIAL DE

3.1. Trabalho docente: progressos e retrocessos

3.1.1. Trabalho intelectual e Trabalho material: cisão de relações

Vázquez (1977) descreve que na ação humana a atividade intelectual tem estreita relação com a atividade material. O homem, antes de realizar uma determinada ação pode pensá-la, antecipá-la, construí-la idealmente. Vázquez esclarece que a atividade material – prática - tem como características o “real, objetivo, da matéria prima na qual se atua, dos meios ou instrumentos com que se exerce a ação, e do seu resultado e produto”, seu objeto é a natureza, a sociedade, e seu resultado é uma nova realidade (ibid.: 193). Caso a atividade intelectual esteja dissociada da atividade material, surge a alienação, o que Freitas (2005) chama de expropriação do trabalho e explica que em nossa sociedade o trabalho encontra-se dividido em trabalho material e intelectual e que a simbiose entre eles foi extraída das profissões.

Essa dissociação, historicamente elaborada, foi agregada ao campo trabalhista. Gentili e Silva (1995) relatam que no auge da industrialização mundial houve uma grande demanda trabalhista, no entanto, exploradora. As indústrias seguiam o ritmo taylorista, um trabalho fragmentado, em que cada trabalhador era responsável por uma parte do trabalho, e o fazia bem feito, mas não tinha a visão do todo. A produtividade garantia uma excelente qualidade, além de assegurar, também, o atendimento da grande procura por produtos. Dessa forma, a expropriação do trabalho intelectual e material penetrou no mundo trabalhista e também,

adentrou às salas de aula. A valorização do produto final levou a escola a enfatizar mais a reprodução dos conteúdos, e menos o processo de aprendizagem. Os estudantes decoram conceitos, fórmulas, automatizam respostas e os “devolvem” ao professor, por meio da escrita, e logo após os esquecem.

Huberman (1975) exemplifica o início dessa expropriação do trabalho material, com a situação vivida pelos artesãos. Antigamente o ofício de artesão era ensinado aos aprendizes pelos próprios artesãos,tornando possível perceber a articulação entre o trabalho intelectual e material. O autor comenta que, naquele tempo, o artesão e o aprendiz conviviam por um bom tempo, permitindo ao aprendiz apropriar-se dos conhecimentos e tornar-se um mestre. Na nova configuração taylorista, já não havia mais essa possibilidade. Huberman (ibid) diz que passou a existir uma grande distância entre trabalhador e patrão e que, seus interesses não eram mais os mesmos. Um era o dono da matéria prima e o outro vendia sua força de trabalho, provocando a reconfiguração das relações entre eles próprios, e entre eles e a sociedade. Nessa reorganização social, surgiu a fragmentação no trabalho, levando à separação entre os que concebem e os que executam, conforme explicou Braverman ao comentar a repercussão da introdução da gerência científica no processo de trabalho (1977

apud FREITAS, 2005). O que tem levado à elaboração de propostas educacionais, considerando apenas o legado dos especialistas, desprezando as elaborações dos professores que, no dia-a-dia, a vivenciam. Assim como foi elaborada e reelaborada a Proposta Pedagógica do BIA (2006), conforme relato no capítulo anterior; não houve a oportunidade de participação dos professores do BIA que lidavam com o cotidiano escolar.

O trabalho docente, como todo trabalho humano, se constituiu imerso numa sociedade que o instituiu como tal, portanto essa concepção de trabalho influenciou o trabalho docente. Hypólito (1997) enriquece a abordagem dessa instituição, comentando que, além da educação ter sido trazida para o Brasil pela igreja, para atender à elite brasileira, logo após, tornou-se uma profissão feminina que passou a atender ao grupo dos economicamente desprivilegiados. Recebia, para isso, umaremuneração indigna, o que conseqüentemente, acarretou a dizimação e a desqualificação docente, tornando os professores proletarizados, alienados, envolvidos com tarefas administrativas. Propícios a dessensiblização ideológica, em conseqüência da falta de tempo para refletir sobre o trabalho que desenvolvem cotidianamente. Para Derber a dessensibilização ideológica é uma das formas como reagem os professores mediante a proletarização a que são submetidos pelo sistema, ao exercerem funções assistencialistas desarticuladas do trabalho docente, abandonando o compromisso com os usos e fins sociais de seu trabalho, conforme descreve Villas Boas (2002).

A fragmentação do trabalho, dissociando a atividade intelectual da material tem provocado conseqüências marcantes no processo do trabalho docente. A alguns professores cabe realizar o trabalho intelectual a outros o material. Diante dessa complexidade, os momentos de coordenação pedagógica têm sido invadidos pela proletarização e alienação, chegando, algumas vezes, à dessensibilização ideológica. Tem sido criada a cultura de que o espaço/tempo da coordenação pedagógica seja utilizado somente para correção de cadernos e planejamento das tarefas a serem propostas durante a semana, partindo apenas da análise das atividades curriculares a serem trabalhadas em determinada etapa/série, conforme prescrito no Currículo de Educação Básica das Escolas Públicas do Distrito Federal -1ª a 4ª série (2002). A professora Lara justificou o motivo pelo qual o planejamento se pauta no currículo prescrito, durante a realização do estudo para o planejamento do Reagrupamento Interclasse49. Ela disse que “nós estamos ainda naquela fase de 1ª série só isso, 2ª série só isso. Foram muitos anos

pensando dessa forma, nós fomos educadas assim, entramos no mercado de trabalho e era assim que se trabalhava, então para repensar isso, é um desafio”. Além dessas questões, outras também estão arraigadas no processo de organização das aulas, pois alguns professores se guiam pelo caderno de planejamento de atividades propostas à turma do ano anterior; outros lançam mão das coleções didáticas com sugestões de atividades e há, ainda, aqueles que seguem apenas o proposto pelos livros didáticos.

Nesse sentido, o trabalho intelectual tem sido reduzido à reprodução, e o trabalho material decorrente dele tem tomado conta das coordenações pedagógicas, tornando os professores, simplesmente, tarefeiros. São filas enormes de cadernos a corrigir, pilhas de atividades mimeografadas para encaixar no planejamento diário, além daquelas que são recortadas, dobradas e entregues às crianças para, simplesmente, serem montadas e coladas no caderno. Naufragados nessas atividades, os professores se fazem presentes às reuniões pedagógicas - mãos em movimento incessante e pensamento meio lá, meio cá. Essas são cenas comuns nos momentos de coordenação pedagógica, inclusive nos dias de estudo.

As considerações sobre o processo de aprendizagem de cada criança, o andamento geral da turma, a troca de experiências, as discussões sobre as vicissitudes do trabalho cotidiano ficam para outro momento. Às vezes, são temas durante o recreio, em momentos em que o colega com o qual se tem mais intimidade esteja presente, não no coletivo da escola.

49De acordo com a Proposta Pedagógica do BIA (2006), Reagrupamento Interclasse é uma estratégia pedagógica realizada, agrupando as crianças de uma mesma Etapa ou de Etapas diferentes, permitindo o intercâmbio entre os professores para o atendimento das necessidades de aprendizagem das crianças, com o intuito de enriquecer e aprofundar os conhecimentos elaborados.

Mas também há aqueles que se debruçam sobre as atividades dos estudantes, compreendem suas necessidades e questionam o planejamento realizado naquele dia. Identificam lacunas e conquistas, refletem sobre a reflexão de sua ação, sobre o que fazem no cotidiano, investigando o processo de reelaboração do conhecimento, criando situações para promover o avanço das crianças nas aprendizagens. Utilizam este espaço/tempo para o estudo e discussão da realidade da escola e da sala de aula.

A coordenação pedagógica, realizada no CEF 18, foi planejada no início do ano, pelos professores, ao elaborarem, coletivamente, o Projeto Político Pedagógico. Os professores definiram algumas ações para o coordenador pedagógico com o intuito de organizar esse momento. A professora Ana relembrou o acompanhamento iniciado no ano anterior quando participou, inclusive do processo da diagnose. Ela destacou que “no ano passado, aquele

trabalho iniciado e que, não conseguimos levar até o fim” oportunizou-lhe o acompanhamento das atividades desencadeadas durante o ano. Relatou que “ter ajudado na

testagem me permitiu conhecer os alunos. Quando uma professora vinha comentar algo sobre eles, eu sabia de quem ela estava falando”. Ana disse que “essa coordenação, em que

se fala do ‘fulaninho’, daquilo que está acontecendo na sala, do dia-a-dia, das coisas pequeninas” permite acompanhar melhor o trabalho. Quando Ana fala em conhecer a realidade da sala de aula, ela quer dizer que dessa forma poderia contribuir, oportunizando o contato com referenciais que auxiliariam os professores a resolver os problemas que surgem no cotidiano. Uma percepção de que esse conhecimento amplia as possibilidades desse professor estabelecer articulações mais efetivas com suas inquietações.

A professora Maria suscitou a elaboração de “um projeto amplo, que aprofundasse no

atendimento das questões que envolvem as etapas I, II e III do BIA e pudesse guiar o trabalho coletivo da escola”. Idéia complementada por Ana ao dizer que deveria ser “um projeto com

coisas práticas para trabalhar com os alunos em sala”.

Os professores discutiram também a necessidade de demarcar o espaço/tempo, onde aconteceriam os encontros coletivos, para que todos pudessem “estar realmente presentes”. Logo em seguida, a professora Suzi sugeriu um tema para o projeto: “inclusão, estão falando

tanto sobre inclusão e a nossa escola passou a ser uma escola inclusiva”. A professora Maria ponderou “são idéias. Na segunda-feira, a gente podia trazer as idéias e sentar para definir

uma”. A professora Suzi lembrou que “os projetos podem ser diferentes, o turno da tarde

trabalha com um e o da manhã com outro, tendo alguns pontos em comum, para manter mais ou menos a mesma linha de trabalho”.

Ao definirem o tema do projeto, algumas idéias expressaram os modismos, os assuntos que estão recorrentes na sociedade. No entanto, outras enfatizaram a importância de se pensar em algo que pudesse coadunar com as expectativas do grupo para articular o trabalho da escola. Haveria de ser um projeto amplo, que pudesse apresentar a linha de trabalho da escola, que representasse a concepção das ações dessa escola como um todo. As conversas enfatizavam que não havia necessidade que o tema fosse trabalhado pelo coletivo, mas que pudesse servir de orientação para esse trabalho.

Na segunda-feira seguinte, a coordenação pedagógica iniciou como previsto no Encontro Pedagógico, com a professora Ana conduzindo a discussão. No entanto, naquele momento, apesar de Ana ter sido escolhida pelo grupo para ocupar o cargo de coordenadora, diante das necessidades do sistema, tinha assumido uma turma. A conversa sobre a definição de um tema para subsidiar o trabalho coletivo recebeu sua sugestão: “saber cuidar”, baseado no título de um livro de Leonardo Boff, justificado pelas questões sociais que inquietam a todas as sociedades neste momento. A professora Maria sugeriu que esse tema fosse “o carro

chefe para dar unidade ao trabalho dos professores do BIA” e, ponderou que poderiam, a partir dele, definir alguns subtemas para direcionar o trabalho coletivo, o que em seguida começou a ser realizado. Com o passar do tempo e o envolvimento da professora Ana com a turma na qual exercia regência, o trabalho coletivo nas coordenações pedagógicas foi realizado em parceria entre as professoras de uma mesma etapa.

Quando a coordenação pedagógica está pautada na perspectiva da discussão coletiva, pode tornar-se o espaço/tempo destinado à investigação do cotidiano da sala de aula. Situação que começou a ser realizada quando a Escola Candanga foi instituída. Naquela época havia o dia para estudos, discussões e para os planejamentos coletivos, porém essa realidade infelizmente deixou de existir após o término dessa proposta de educação. Sem interrupções essas ações poderiam ter se instituído no cotidiano e na cultura escolar, conforme a abordagem de Candau (2003), quando defende que as ações realizadas no cotidiano escolar inculcam um modo singular de ser, agir, pensar e fazer nos sujeitos que dela participam. No entanto, poucos foram as instituições consolidadas.

A cultura escolar vai se instituindo contextualizada à totalidade de situações que a envolvem. Da mesma forma, a instituição de ações no meio educacional ocorre influenciada pelo contexto social. Abordando esse tema, Hypólito (1997) comenta que a instituição da educação brasileira desvela a constituição do trabalho docente como trabalho proletariado e profissional, fruto das diferentes conjunturas sociais vividas pelos professores brasileiros.

Freitas (1996) acrescenta que, a cada momento histórico, essas nuanças foram e vão sendo reconfiguradas.