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IMPORTÂNCIA DO ENSINO PRIMÁRIO

EDUCAÇÃO BRASILEIRA: PROBLEMAS

3. IMPORTÂNCIA DO ENSINO PRIMÁRIO

Desde que estamos preocupados com a nossa desintegração cultural a qual foi caracterizada pela constatação de que grande parte da população está marginalizada das conquistas culturais, compreende-se que se dê maior destaque ao ensino primário de vez que esse nível de ensino é definido como obrigatório para todos. Estranhamente, porém, o ensino primário não tem recebido dos analistas da educação maior atenção. Establet,(13) a partir da análise da escola francesa, afirmou: "Fomos levados a constatar que o que ocorre na escola primária é absolutamente essencial para o aparelho escolar inteiro. O que ocorre, aliás, no aparelho escolar não pode ser corretamente descrito e explicado se os efeitos das contradições de classe no interior da escola primária não forem corretamente descritos e explicados. Notar-se-á, de passagem, o silêncio quase total daqueles que, mesmo críticos e progressistas, têm por missão relacionar a estrutura social e o sistema escolar, sobre a escola primária".

No Brasil, a situação não é diferente. A julgar pelo silêncio reinante em torno dela, a escola primária parece uma ilha de paz e tranquilidade. Sobram professores. Em 1972 tínhamos 14.082.098 alunos matriculados e 525.628 professores.(14) Se todos esses elementos fossem aproveitados, nós teríamos uma média de 27 alunos por professor. No entanto, grande parte das professoras habilitadas não encontram oportunidade de exercer a profissão ao mesmo tempo que muitas classes são confiadas a leigos. Em relação ao aparelho escolar como um todo, para o período 1960-1973, "nota-se que o crescimento das matrículas foi tanto maior quanto mais

13. ESTABLET, R. - "A Escola", in As Instituições e os Discursos, Tempo Brasileiro, n. 35, p. 106 (grifo do autor). 14. MINISTÉRIO do Planejamento e Coordenação Geral, IBGE - Anuário Estatístico do Brasil, 1973, v. 34, pp. 760 e 758.

137 ▲ elevado o grau de ensino: o primário cresceu 107,3%, o ginasial 391,7%, o colegial 455,3% e o superior 797,5%. Esses dados evidenciam a menor preocupação com o ensino primário num país onde a escolaridade mediana da população

economicamente ativa é de 1,7 anos e, em contrapartida, uma preocupação maior com os graus mais elevados".(15) É verdade que esses números mostram também que, "ao lado da preocupação global do aumento da oferta de ensino, destacou-se a da melhoria do formato da pirâmide educacional".(16) O quadro quantitativo se completa ao se constatar que, de acordo com o último senso demográfico, era de 68% a taxa de escolarização da população de 7 a 11 anos em 1970. A comparação deste dado com a melhoria do formato da pirâmide já nos fornece uma pista para uma possível explicação do esquecimento a que é geralmente relegada a escola primária. É que a análise da escola primária é essencial para se entender o papel do aparelho escolar no seu todo em relação à sociedade global. Encarando-se, porém, o conjunto do aparelho escolar como um fragmento autônomo em relação à sociedade como um todo, então o ensino primário é relegado a último plano. Com efeito, os graus escolares são escalonados numa direção ascencional (no sentido social da palavra, isto é, seletivo e, até certo ponto, discriminatório). E como os analistas educacionais se limitam, geralmente, ao processo escolar, fazendo abstração de suas vinculações com o todo social, talvez esteja aí a razão do silêncio em torno do ensino primário.

Acrescente-se ainda que essa abordagem isolada do processo escolar tende a enfatizar o papel conservador da educação em detrimento de seu papel inovador. E as análises quantitativas dificilmente escapam a essa dificuldade. Isto pode ser evidenciado através da "Operação-Escola". Baseada num exame quantitativo da produtividade da escola primária nas capitais dos Estados, a "Operação" se propunha a seguinte meto gero/, também quantitativa: "Elevação do nível de atendimento do ensino primário brasileiro, com a expansão quantitativa dos sistemas escolares e o aumento de produtividade do ensino primário".(17)

15. CUNHA, L.A.R. - "A expansão do ensino superior: Causas e consequências", in Debate e crítica, n. 5, p. 28.

16. SIMONSEN. M.H. - "O esforço educacional", in SIMONSEN, M.H. & CAMPOS, R.O. - A Novo Economia Brasileira, p. 160.

17. INEP - "Operação-Escola: subsídios para reformulação do ensino primário brasileiro". RBEP, v. 50, n. 112, p. 270. 138 ▲ No item denominado "Objetivos Gerais e Justificativas", podemos ler: "Há, ainda, a considerar o impacto psicossocial que esta medida trará, pois a idéia já firmada de incapacidade para solucionar esse angustiante problema será substituída pela expectativa de que, dentro de pouco tempo, o problema poderá ser resolvido em todo o território nacional, a exemplo do que já terá sido conseguido nas Capitais e outros grandes centros urbanos".(18) A referência às Capitais e grandes centros urbanos se explica peio fato de que "as Capitais e as Cidades de maior desenvolvimento são as áreas consideradas viáveis para o desenvolvimento da 'Operação Escola', no período de 1968 a 1970"." Qual o resultado quantitativo desse esforço? Partindo dos dados fornecidos pelo Serviço de Estatística da Educação e Cultura do MEC,(20) comparemos o período abrangido pela Operação com períodos cronologicamente equivalentes, seguindo a evolução quantitativa do ensino primário de 1960 a 1972. Temos o seguinte resultado: no período 1960-62, o ensino primário cresceu 14,5%; em 62-64, 22,5%; em 64-66, 6,4%; em 66-68, 16,7%; em 68-70, 16,7% e em 70-72, 17,9%. Como se vê, mesmo limitando-se ao aspecto quantitativo, a "Operação Escola" não conseguiu resultado significativo. Isso parece confirmar "a idéia já firmada de incapacidade para solucionar esse angustiante problema". E a esperança de que tal idéia "será substituída pela expectativa de que, dentro de pouco tempo, o problema poderá ser resolvido", resulta frustrada.

Voltamos, assim, ao problema que constitui a preocupação central deste estudo: em face de nossa desintegração cultural, como poderemos, através da educação, sistematizar a tendência à inovação solicitando deliberadamente o poder criador do homem? Dadas as dificuldades encontradas ao nível da análise quantitativa, passemos agora a algumas considerações de ordem qualitativa.

O fracasso da abordagem quantitativa, resulta, como se mostrou, de uma perspectiva conservadora, isto é, da atitude segundo a qual a sociedade no seu todo é considerada satisfatória, não carecendo senão de retoques superficiais; nesse contexto, o papel da escola será preservar o tipo de sociedade prevalecente (os padrões dominantes) e garantir-lhe cada vez maior eficiência e produtividade. Aqueles que se situam nessa perspectiva acreditam ingenuamente (no sentido epistemológico da palavra) que seja possível operar mudanças quantitativas sem mudanças qualitativas.

18. INEP - "Operação ..., p. 279. 19. INEP - "Operação ..., p. 279.

20. Cf. CUNHA, L.A.R. - Op. c/t., p. 28.

139 ▲ Essa crença leva, pois, não apenas à hipertrofia da quantidade em detrimento da qualidade (como se pensa correntemente) mas à própria frustração das metas quantitativas. Com efeito, as mudanças quantitativas, na medida em que se tornam significativas, acarretam, inevitavelmente, mudanças qualitativas.

A partir das considerações supra, podemos perceber claramente como a polemica "quantidade versus qualidade" se detém nas aparências sem atingir o fundo do problema. Na verdade, se nos referimos ao caráter conservador da abordagem quantitativa, não se deve inferir daí que estejamos considerando que a abordagem qualitativa enfatiza o papel inovador da educação. Ao contrário. Foi preciso frisar o caráter conservador no primeiro caso, uma vez que tal caráter é geralmente mascarado pêlos argumentos em defesa da quantidade, os quais costumam aparecer envolvidos por idéias tais como o "mito do progresso", "modernização", a "educação de massas", as "tecnologias avançadas", o "desenvolvimento", a "democratização", "educação para todos", etc. No que diz respeito aos'"defensores da qualidade", sua terminologia já evidencia, de per si, o caráter conservador. Aqui, as expressões mais freqüentes são: "manter o nível", "assegurar os padrões", "preservar a qualidade", "aprimorar", "garantir a excelência do ensino", "atingir níveis de excelência",(21) etc.

Conseqüentemente, se não é possível modificar significativamente a quantidade sem modificações qualitativas, a recíproca também é verdadeira.

Não se deve pensar, porém, que o problema será resolvido pela conciliação de ambos os aspectos, pela sua soma ou justaposição. Esta maneira de encarar a contradição quantidade-qualidade reflete uma atitude formalista. É preciso não apenas "pensar a contradição", mas "pensar por contradição",(22) isto é, ser capaz de pensar num só ato tanto a qualidade como a quantidade que nada mais são do que dois pólos contraditórios mutuamente inclusivos de um mesmo processo (o processo educativo) que deve ser revisto no seu todo. A atitude formalista, encarando quantidade e qualidade como dois pólos mutuamente exclusivos acarreta as flutuações que caracterizam o ensino brasileiro; busca-se, a partir da idéia da justaposição dos pólos

21. "Os princípios inconscientes da definição social da excelência escolar - definição que não é menos arbitrária (embora sócio-logicamente necessária) quando recebe os nomes de "inteligência", "brilhantismo" ou "talento" - têm muito mais possibilidades de se expressarem ou de se revelarem através das operações de cooptação pelas quais o corpo de professores seleciona aqueles que considera dignos de perpetuá-lo ...". BOURDIEU, R - "A excelência e os valores do sistema de ensino francês, in A Economia das Trocas Simbólicas, cit., p. 232.

22. PINTO, A. V - Op. c/t., p. 21 I.

140 ▲ mutuamente excludentes, contrabalançar ora os excessos da qualidade, ora os excessos da quantidade num eterno ir e vir, sem que o núcleo do problema (a desintegração cultural brasileira) seja atingido (a não ser aleatoriamente e, até mesmo, apesar do aparelho escolar).

Também em relação ao que acabamos de dizer, a análise do ensino primário é particularmente eloqüente.

Uma vez que a nossa desintegração cultural foi caracterizada a partir da noção de unidade cultural, ou seja, a partir da constatação de que a grande maioria não participa das conquistas culturais, poder-se-ia crer que o problema estaria resolvido simplesmente com a extensão da escola primária (tal como a temos atualmente) a todos ampliando em seguida a sua duração (em termos de anos de escolaridade). Surge, aí, o que poderíamos chamar "a ilusão da escola única obrigatória". Tal ilusão consiste na pretensão de se superar o dualismo elite versus massa (a um tempo, agente e produto da desintegração cultural) através de "reformas institucionais (principalmente o prolongamento correlativo da escolaridade obrigatória e do período de 'tronco comum')... Nada disso ocorre porque a orientação apenas registra um fato acabado desde o começo. (...) A maior parte das crianças e dos pais das classes populares estão aliás, em graus diferentes, totalmente conscientes disto".(23) Essa consciência, ainda que não tematizada, se manifesta no Brasil através dos altos índices de evasão e repetência registrados pelo nosso ensino primário. O Informe sobre a "Operação-Escola" descreveu a "produtividade do ensino primário brasileiro", da seguinte maneira: "O nosso ensino primário apresenta condições baixíssimas de produtividade. Assim: cerca de 1/3 das crianças em idade escolar não frequenta a escola; o índice de evasão é de, no mínimo 34%; cerca de 50% dos alunos de nível primário estão na primeira série escolar; o custo do aluno aprovado corresponde a duas vezes e meia, em média, ao custo do aluno-ano".(24) Em novembro de 1974, após minuciosa análise dos dados publicados pela Fundação IBGE nos volumes de 1972 e 1973 do "Anuário Estatístico do Brasil", o professor Casemiro dos Reis Filho resumiu em doze pontos suas conclusões, das quais destacamos:

"Entre 1969 e 1972, a repetência e a evasão escolar acarretaram a perda de 67% da matrícula inicial. Respectivamente: 5.719.518 alunos no l º semestre de 1969 e l .904.303 alunos na 4a série, em 1972.

23. ESTABLET, R. - Op. c/t., pp. 95-96. 24. INEP - "Operação-Escola, cit, p. 270.

Somando-se os não matriculados, os repetentes e a evasão escolar, temos dois terços da população em idade escolar obrigatória, excluídos da escola elementar.

A alta evasão escolar indica que a escola primária não consegue fazer-se necessária à população brasileira. Seus padrões seletivos não correspondem às necessidades e aspirações dos brasileiros".(25)

Tudo isso mostra que a escola, tal como está constituída, é um reflexo da organização social, ficando intacta esta, não será possível, através da educação escolar, sistematizar a tendência à inovação. Daí que, reformas institucionais que pretendam ampliar quantitativamente ou preservar as conquistas qualitativas do aparelho escolar resultam ineficazes em face do problema da nossa desintegração cultural. Essa constatação permite explicar - parece - boa parte das dificuldades encontradas na implantação da Reforma do Ensino de 1º e 2º Graus (Lei 5692/71).

É preciso, pois, encarar a educação para além de suas fronteiras, situando-a no seio da prática social global e procurando compreendê-la ali onde aparece como categoria mediadora.