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SUBSÍDIOS PARA O EQUACIONAMENTO DO PROBLEMA DO LIVRO DIDÁTICO EM FACE DA LEI Nº 5692/

A educação se destina à promoção do homem,(1) caracterizando-se como uma comunicação entre pessoas livres em graus diferentes de maturação humana, numa situação histórica determinada. Dentro desse contexto, o processo ensino-aprendizagem é organizado intencionalmente de modo a se atingir adequada, eficaz e eficientemente o objetivo fundamental da educação: a promoção do homem.

1. O LIVRO NO CONJUNTO DOS RECURSOS PARA o DESENVOLVIMENTO DO PROCESSO ENSINO- APRENDIZAGEM

Considerando-se que a comunicação se desenvolve através de meios múltiplos e cada vez mais diversificados, a educação, sendo fundamentalmente comunicação não pode ficar alheia a estes meios. Numa ordem crescente de abstração, os instrumentos de comunicação variam desde as experiências diretas (espontâneas e imediatas), passando por experiências simuladas, dramatizações, excursões, exposições, televisão, gravações, fotografia, cinema, rádio, chegando até aos símbolos visuais e verbais. Os meios, o nome o diz, são aquilo que medeia, que se interpõe

1. Documento de trabalho elaborado em 1972, quando o autor integrava a Equipe Técnica do Livro e Material Didático da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo.

107 ▲ entre os pólos da comunicação: o transmissor e o receptor; são, pois, os instrumentos que tornam possível a relação comunicativa. Esses três elementos (transmissor-meio-receptor) não são, porém, suficientes. Para que uma comunicação se realize é necessário que haja algo a ser comunicado; é preciso, em suma, que haja uma mensagem. São quatro, portanto, os elementos fundamentais do processo comunicativo: alguém (transmissor) que tenha algo (mensagem) a transmitir a alguém (receptor) que capta a mensagem através de um veículo (o meio). "As crianças não procuram, por exemplo, a televisão pela televisão: só a procuram quando a 'mensagem' lhes interessa (no que McLuhan talvez esteja redondamente equivocado se tomarmos 'o meio é a mensagem' ao pé da letra)."(2) Por outro lado, constata-se também, que a mensagem, para ser captada, necessita estar ao alcance do receptor. Isto ocorre na medida em que ela é elaborada, arranjada, assimilada ao próprio meio, ao veículo da comunicação; ou seja, na medida em que ela é veiculada (transformada em veículo). E aqui poder-se-ia, então, dar razão a McLuhan: 'o meio é a mensagem'. É a mensagem pronta para consumo. (Não resta dúvida de que as idéias de McLuhan estão impregnadas das motivações próprias da chamada "sociedade de consumo".) Não se pode, contudo, deixar de reconhecer que o meio não tem sentido se não

estiver impregnado de mensagem, do mesmo modo que esta não tem sentido se não se corporificar no meio. O diagrama a seguir, ilustra o que foi dito:

O gráfico acima indica também que a mensagem se liga imediatamente ao transmissor e mediatamente ao receptor, ao passo que o meio se liga imediatamente ao receptor e mediatamente ao transmissor. Portanto, se a mensagem é determinada primordialmente pelas condições do transmissor, o meio o é pelas condições do

2. LIMA, Lauro de O. Mutações em Educação Segundo McLuhan, p. 36. 108 ▲

receptor. Pode-se ainda inferir daí que, quanto mais concretos os instrumentos de comunicação, tanto maior o predomínio do meio sobre a mensagem (portanto, maior simplificação e particularização da mensagem); e, reciprocamente, quanto mais abstratos os instrumentos, maior o predomínio da mensagem sobre o meio (portanto, maior extensão e generalização da mensagem). Tais conhecimentos são necessários ao educador, pois este terá que descobrir os instrumentos capazes de tornar a mensagem educativa assimilável pelo educando. Uma vez que o meio é determinado basicamente pelas condições do receptor, conclui-se que a escolha dos veículos da mensagem educativa será determinada pelo conhecimento que o educador tem do educando. Os dados da Psicologia, por seu turno, revelam que do ponto de vista do desenvolvimento cognitivo, o ser humano evolui das operações mais concretas para as mais abstraías; por isso, os teóricos da educação têm insistido ultimamente na necessidade de que o ensino se organize a partir das experiências diretas, na direção progressiva dos símbolos visuais e verbais. A Lei 5.692 incorporou essa exigência, determinando que o ensino, nas primeiras séries do primeiro grau, seja ministrado predominantemente sob a forma de atividades. Não obstante, constata-se que têm predominado nas escolas, indiscriminadamente, o uso dos símbolos visuais (linguagem escrita: livros) e símbolos verbais (linguagem falada). Cumpre, pois, ampliar a esfera dos meios e tirar proveito, também no processo educativo, da variedade de recursos que a situação histórica atual oferece. Isto significaria que o livro didático, enquanto recurso educativo, está em vias de ser ultrapassado e fadado a desaparecer? Ao contrário, significa que sua faixa de referência se amplia (já que como instrumento mais abstraio ele propicia maior campo de abrangência) para se articular e, em certos casos, abarcar outros recursos pedagógicos. Em outros termos, caberá ao livro didático servir como elemento estimulador a professores e alunos no sentido de aguçar-lhes a capacidade criadora levando-os à descoberta e uso de novos recursos, através de sugestões múltiplas e ricas.

2. O LIVRO DIDÁTICO

Do que foi dito acima, conclui-se que o livro didático é um instrumento no qual a mensagem educativa está convenientemente arranjada de modo a ser adequadamente captada pelo receptor (educando). Essa situação acabou por dotar o livro didático de um caráter estático; constituía-se ele num conjunto de enunciados fechados, conclusivos, com os quais o educando deveria se identificar. Supunha, portan-

109 ▲ to, a existência de um saber já elaborado (mensagem) e que por isso poderia (e deveria) ser transmitido. Essa dicotomia (elaboração do saber-transmissão do saber) exprime-se de modo claro na oposição constatada e contestada nos meios universitários entre pesquisa (ciência) e ensino (didática). Com efeito, o discurso científico distingue-se do discurso didático enquanto "o enunciado científico não procura, como o enunciado didático, que o interlocutor se identifique à matéria que enuncia e da qual está assim destruída a originalidade. Ao contrário, o discurso científico assegura a personalidade do pesquisador, pois que se situa no ponto em que se opõe a outras análises, ou que se confirma uma análise anterior, o que dá no mesmo, visto que é um corpo de propostas definidas por uma contestação".(3) De qualquer forma, a transmissão do saber está condicionada à elaboração do saber. Por isso, as ciências não podem deixar de interessar ao educador. Esse interesse se manifesta basicamente de três diferentes maneiras.

Em primeiro lugar, no que diz respeito à própria formação de cientistas. Com efeito, o cientista é formado através da organização educacional. Este papel, na organização atual, é desempenhado principalmente pelas Universidades.

Em segundo lugar, na medida em que as ciências lhe proporcionam um conhecimento mais preciso da realidade em que atua.

Em terceiro lugar, "na medida em que o próprio conteúdo das ciências pode se constituir num instrumento direto da promoção do homem (educação). É nesse sentido que as ciências, como tais, passam a figurar no currículo pedagógico. Assim, a Geografia (Estudos Sociais), faz parte do ensino de primeiro grau, onde não figura a Psicologia.

Mas o professor de l º grau se interessa pela Psicologia, enquanto esta lhe permite compreender de forma mais adequada a etapa de desenvolvimento por que passa a criança. A Geografia, porém, lhe interessa não apenas enquanto lhe permite compreender mais adequadamente o meio em que ele e a criança estão inseridos, mas também enquanto conteúdo de aprendizagem. Aqui faz-se necessário distinguir a ciência quando encarada do ponto de vista do educador e quando encarada do ponto de vista do cientista. Do ponto de vista do cientista a ciência assume caráter de fim, ao passo que o educador a encara como meio. Exemplificando: um geógrafo, uma vez que tem por objetivo o esclarecimento do fenômeno geográfico, encara a Geografia como fim. Rara um professor de Geografia, entretanto,

3. DUBOIS, j. e SUMPF j. - "Lingüística e Revolução", in Semiologia e Lingüístico, p. 156.

110 ▲ o objetivo é outro: é a promoção do homem, no caso, o aluno. A Geografia é apenas um meio para chegar àquele objetivo. Dessa forma, o conteúdo será selecionado e organizado de modo a se atingir o resultado pretendido. Isto explica porque nem sempre o melhor professor de Geografia é o geógrafo, o que pode ser generalizado nos termos seguintes: nem sempre o melhor professor de determinada ciência é o cientista respectivo."(4)

Percebe-se facilmente que, em relação ao ensino de 1º e 2º graus, é essa terceira forma que irá representar o interesse fundamental das ciências na tarefa educativa. E os livros didáticos serão o instrumento adequado para a transformação da mensagem científica em mensagem educativa. Nota-se, ainda, que nesse caso, o livro didático é não somente o instrumento adequado mas insubstituível, uma vez que os demais recursos não se prestam para a transmissão de um corpo de conhecimentos sistematizados como o é aquele que constitui a Ciência-produto.

No entanto, é a partir daí que o livro didático pode deixar de ser didático, ou seja, de preencher a função educativa que lhe é própria. Na verdade, um autor de livro didático deve ter em mente que o seu objetivo não é a ciência como tal. Portanto, não lhe cabe, propriamente, expor as conclusões científicas (essa é a função dos livros especializados) mas selecioná-las e ordená-las de modo a atingir o objetivo educacional: a promoção do homem, isto é, do educando. Por outro lado, se o livro didático, hoje, deve ser um elemento estimulador da capacidade criadora de professores e alunos, segue-se que ele não deverá se caracterizar como um conjunto de enunciados fechados, conclusivos, como ocorre tradicionalmente. Isto significa, em suma, que o discurso didático deverá incorporar dialeticamente, numa certa medida, o discurso científico.

3. O LIVRO DIDÁTICO E A LEI Nº 5.692

Sem a compreensão dialética referida acima, será impossível traduzir para a práxis educacional, através do livro didático, as medidas preconizadas na Lei 5.692 que fixa diretrizes e bases para o ensino de l º e 2º graus. Uma confrontação das características, ou seja, dos princípios fundamentais da Lei com a problemática do livro didático, permitirá avaliar o alcance da proposição acima enunciada.

4. SAVIANI, Dermeval - "Para uma Pedagogia Coerente e Eficaz", neste volume, à pp. 70-71.

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1. Integração Vertical:

Por este princípio, as séries e graus bem como as atividades, áreas de estudo e disciplinas se articulam diacronicamente sem solução de continuidade. Evidentemente que não se pode perder de vista esse princípio ao se elaborar o livro didático. Qual a melhor forma de propiciara seqüência harmoniosa das séries e graus de ensino? Como incrementar a evolução progressiva das atividades passando pelas áreas de estudo de modo a se chegar às abordagens sistematizadas e específicas dos enfoques disciplinares?

2. Integração Horizontal:

Segundo essa característica, desaparece a divisão do ensino em ramos (secundário, técnico, normal) unificando- se o conteúdo da aprendizagem (matérias) em termos de atividades, áreas de estudo e disciplinas em sentido sincrônico. De acordo com a estrutura anterior à Lei (que na prática ainda perdura) além da divisão em ramos, dentro destes as diversas séries se organizavam em disciplinas mais ou menos autónomas. Por isso, os livros didáticos eram elaborados, também, seguindo o critério da divisão disciplinar. Como se deverá proceder agora para incorporar ao livro didático a integração dos conteúdos de cada série ao nível de atividades e áreas de estudo? Ou deverá o livro didático se limitar ao nível das disciplinas, quando muito, das áreas de estudo? Parece claro (a experiência mostra), que tal procedimento poderia pôr a perder o aspecto positivo que, independentemente da intenção do legislador, se pode extrair do princípio da integração horizontal. Os livros iriam estimular o desenvolvimento de áreas mais ao menos estanques.

3. Continuidade (ensino geral) — Terminalidade (ensino especial):

A combinação do binômio continuidade-terminalidade visa a propiciar um duplo estímulo que pode coexistir num mesmo aluno ou se bifurcar de um aluno para outro: o prosseguimento nos estudos e a habilitação profissional. Que tipo de livro didático estaria apto a provocar mais e mais nos alunos e gosto pela pesquisa, por estudos continuados (na linha de uma educação permanente) aliado à busca de uma qualificação profissional?

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4. Racionalização-Concentração:

Tal princípio implica a economia de recursos (materiais e humanos), concentração de esforços e não-duplicação de meios para fins idênticos. É possível pensar-se na elaboração de livros didáticos que incentivem nos alunos e professores atitudes mais racionais que levem a uma ação organizada inteligentemente?

5. Flexibilidade:

Manifesta-se nos seguintes aspectos, de modo especial: a) variedade de currículos;

b) utilização de métodos apropriados a cada tipo e nível de ensino; c) aproveitamento dos estudos realizados;

d) combinação do binômio continuidade-terminalidade, de acordo com: - idade dos alunos;

- interesse dos alunos; - aptidões dos alunos;

- Capacidade do estabelecimento de ensino; - condições de cada sistema de ensino; - nível sócio-econômico da região.

As formas de combinação acima referidas (item d) põem em foco a noção de terminalidade real.

Como se pôde notar, a flexibilidade é a característica mais importante da Lei e a mais complexa, incidindo, inclusive, sobre as demais, o que pode gerar incoerências e, mesmo, contradições. Com efeito, a ênfase na racionalização pode acabar por anular a flexibilidade e vice-versa. Acresce-se ainda que a flexibilidade, em termos concretos, pode se transformar numa faca de dois gumes; ou seja: pode-se, em nome da flexibilidade, negar a própria flexibilidade, caindo-se na rigidez ou no espontaneísmo. Como elaborar o livro didático que possibilite a vigilância necessária para se evitar os riscos apontados acima, atendendo, além disso, à variedade de currículos e de métodos? Como encarar através do livro didático o problema da terminalidade real?

6. Valorização ao Professorado:

Esse princípio se corporifica nas seguintes medidas:

113 ▲ a) estudos para a formação, aperfeiçoamento, treinamento e retreinamento de professores e especialistas;

b) profissionalização do professor pelo Estatuto do Magistério;

c) critérios para fixação dos padrões de vencimentos à base de capacitação do professor, e não pelo nível de ensino que esteja ministrando;

d) tratamento especial para os professores não titulados;

e) aproveitamento de graduados do ensino superior como professores das disciplinas de formação profissional;

f) capacitação do magistério para as suas responsabilidades polivalentes na escola;

g) co-responsabilidade dos professores na ministração do ensino e verificação da eficiência de aprendizagem dos alunos.

Na elaboração do livro didático é preciso não esquecer as condições objetivas que determinam o professor que o vai utilizar. Sabe-se que o livro depende do professor, uma vez que não o pode substituir. Por outro lado, sabe-se também que o professor depende do livro, pois este se lhe apresenta como um recurso indispensável. Portanto, a questão toda está em se produzir o livro didático que seja um estímulo constante para a atividade criadora do professor e lhe mantenha vivo o gosto pelo ensino. Tradicionalmente, o livro didático tem sido, frequentemente, um fator de cristalização da rotina. Para se transformar o livro num instrumento de valorização do professorado, essa situação terá de ser alterada.

7. Sentido Próprio para o Ensino Supletivo:

O ensino supletivo mereceu um tratamento especial na Lei 5.692, cabendo-lhe um Capítulo inteiro (o IV). Aí foram definidas as suas funções de suprimento e de suplência, ao mesmo tempo que se consagrou a possibilidade de sua articulação com o ensino regular. Surge, então, o problema de se pensar na elaboração de livros didáticos para o ensino supletivo. Quanto à articulação com o ensino regular, seria possível a produção de livros que atendessem a essa integração?

4. CONCLUSÃO

A Lei 5.692 é passível de críticas sob muitos aspectos. Nós próprios, já tive-

114 ▲ mos oportunidade de criticá-la mais de uma vez.(5) O fato concreto, porém, é que a lei está em vigor. Dessa forma, inevitavelmente, os professores e educadores em geral, estarão às voltas com os dispositivos por ela preconizados. Levando em conta esse dado, as notas apresentadas acima foram redigidas segundo uma diretriz que pode ser traduzida na seguinte questão: como usar meios velhos em função de objetivos novos? Em outros termos, trata-se de explorar as possíveis aberturas da lei no sentido de dotar as atividades de maior consistência, enriquecendo, através do livro didático, os conteúdos da aprendizagem. Com isto se estaria, dialeticamente, contrariando a partir da própria lei a tendência geral nela contida, isto é, a tendência a uma rarefação da educação e a um empobrecimento dos conteúdos de aprendizagem.

É esse o espírito que presidiu a decisão de divulgar; neste momento, as anotações deste documento de trabalho. Esperamos, com isso, ao levantar a questão do livro didático no quadro da organização escolar brasileira atual, provocar a reflexão de professores, autores e editores sobre a necessidade e urgência da produção de bons livros didáticos. Com efeito, o bom livro didático será, em suma, aquele que, reconhecendo-se um dentre os diversos recursos que concorrem para o êxito do ensino, for capaz de reunir o maior número de estímulos que permitam a professores e alunos dinamizar o dia a dia do processo ensino-aprendizagem na direção do objetivo fundamental da educação: a promoção do homem. Esse tipo de livro não surgirá, porém, espontaneamente. Estas notas são, pois, apenas um convite para se examinar de modo mais profundo o problema concernente ao livro didático.

5. Ver, por exemplo, nosso texto, "Análise Crítica da Organização Escolar Brasileira Através das Leis 5540/68 e 5692/71", neste volume, às páginas 145-170.

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