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PAPEL DA EDUCAÇÃO NA SOCIEDADE BRASILEIRA

EDUCAÇÃO BRASILEIRA: PROBLEMAS

2. PAPEL DA EDUCAÇÃO NA SOCIEDADE BRASILEIRA

Falamos, acima, em "desintegração cultural brasileira". É preciso, agora, esclarecer o significado dessa expressão. Não estamos, com essa afirmação, aderindo à noção de "arquipélago cultural", já se discutiu muito (embora sempre superficialmente) sobre a existência ou não de uma cultura brasileira. Tal questão tem recebido, de modo geral, resposta negativa. A multiplicidade de razões invocadas para justificar a resposta negativa pode ser reduzida, em última instância, a dois grupos: I) aquele que põe a ênfase na falta de autonomia de nossa cultura e 2) aquele que salienta a fragmentação cultural.

Típica do primeiro grupo é a distinção entre cultura no Brasil e cultura brasileira (ou do Brasil). Tal distinção é completamente irrelevante, uma vez que toda a argumentação que a sustenta e envolve está viciada pela base. Com efeito, não é possível abordar o problema cultural tendo como ponto de partida a divisão política do Globo tal como se manifesta nos Estados Nacionais atuais. Isto salta aos olhos na medida em que transportamos o mesmo argumento para qualquer outro país. Poderíamos, por exemplo, raciocinando em termos de autonomia cultural, falar numa cultura francesa, cultura alemã, italiana, etc? Em que a cultura francesa (no sentido antropológico do termo) se distingue da italiana, da alemã, etc? E mesmo admitindo-se que se trata de diferentes culturas, restaria a seguinte questão: o que se entende, então, por cultura ocidental?

O segundo grupo nega a cultura brasileira não porque ela ainda não existe, mas porque já existem várias. Daí, o "arquipélago cultural". Fala-se, então, em cultura gaúcha, nordestina, caiçara, mestiça, caipira, etc. Essa fragmentação, detendo-se nas aparências, desvia do fundamental.

Cultura é, com efeito, o processo pelo qual o homem transforma a natureza, bem como os resultados dessa transformação. No processo de autoproduzir-se, o homem produz, simultaneamente e em ação recíproca, a cultura. Isto significa que não existe

133 ▲ cultura sem homem, da mesma forma que não existe homem sem cultura. A cultura se objetiviza em instrumentos e idéias, mediatizados pela técnica.(8) Esses elementos fundamentais multiplicam-se indefinidamente, assumindo as mais variadas formas, o que geralmente acaba por ofuscar a visão do estudioso que tende a fixar-se na complexidade das manifestações culturais, perdendo de vista a essência dessas manifestações. A.V Pinto(9) captou com propriedade o fenômeno em pauta, ao afirmar: A dupla realidade da cultura, de ser por uma de suas faces materializada em instrumentos, objetos manufaturados e produtos de uso corrente, e por outra, de estar constituída por idéias abstratas, concepções da realidade, conhecimentos dos fenômenos e criações da imaginação artística, correlacionadas uma e outra face pelas respectivas técnicas, leva o pensador ingênuo a desorientar-se ao conceituá-la, pois tem dificuldade em

utilizar o método necessário para chegar à formulação racional do plano cultural em totalidade. (...) A cultura aparece- lhe, no estado atual, como um infinito complexo de conhecimentos científicos, de criações artísticas, de operações técnicas, de fabricação de objetos, máquinas, artefatos e mil outros produtos da inteligência humana, e não sabe como unificar todo esse mundo de entidades, subjetivas umas e objetivas outras, de modo a dar a explicação coerente que una num ponto de vista esdarecedortoda esta extrema e diversificada multiplicidade".(10)

8. "Desde os primórdios a cultura tem esses dois componentes: os instrumentos artificiais, fabricados para prolongar e reforçar a ação dos instrumentos orgânicos de que o corpo é dotado a fim de opor-se à hostilidade do meio; e as ideias, que correspondem à preparação intencional, sempre social, e à antevisão dos resultados de tal ação. Aparece igualmente, como expressão da ligação entre os dois componentes, a técnica, enquanto correta preparação intencional do instrumento e a codificação do seu uso eficiente". PINTO, A.V - Ciência e Existência'. Problemas Filosóficos da Pesquisa Científica (Cap. VI, Teoria da Cultura), p. 123 (grifos do autor).

9. PINTO, A.V - Op. c/t., p. 125 (grifos do autor).

10. Um exemplo que ilustra de modo contundente a citação supra pode ser tirado do livro de Marvin Harris, A natureza das Coisas Culturais, Cap. 10, A natureza da cultura, pp. 171 -172: "Enquanto a definição de cultura for concebida em termos de essência, arquétipos, causas finais e outros miasmas que emergem dos pântanos intelectuais legados por Aristóteles e Platão, persistirá a vetusta vagueza conceptual. Mas, se adotarmos para a cultura um modelo acticular operacional, muitas das mais veneráveis questões receberão, sem demora, seu bem merecido repouso.

QUE É CULTURA?

Cultura é: actículos, episódios, nodos, cadeias nodais, cenas, senados, nomoclones, permaclones, para-grupos, tipos nomoclônicos, tipos permaclônicos, sistemas permaclônicos e supersistemas permaclônicos. Cultura é também: fonemas, morfemas, palavras, falas semanticamente equivalentes, planos de comportamento e muitas outras coisas "êmicas". Cultura é: toda e qualquer unidade nomotética da linguagem de dados verbal e não-verbal, previamente definida". Ver também: KNELLER, G.F - Introducción a Ia Antropologia Educacional, especialmente pp. 32-60 (Cap. 2, Teorias sobre Ia cultura).

134 ▲ A essência da cultura consiste, pois, no processo de produção, conservação e reprodução de instrumentos, idéias e técnicas. É isto que permite que o mesmo termo seja aplicado a diferentes manifestações como ocorre, por exemplo, nas expressões: "cultura chinesa", "cultura indígena", "cultura ocidental". Em quaisquer dos casos pode-se detectar a existência de instrumentos, idéias e técnicas. Em contrapartida, o que diferencia uma cultura de outra é a direção seguida pelo processo cultural; é, em suma, o tipo, as características de que se revestem os instrumentos, idéias e técnicas. Como produtos do existir do homem, esses elementos fundamentais se entrelaçam constituindo uma rede de relações, de significações, de valores que determinam ao mesmo tempo que são determinados pêlos modos de agir e pensar dos homens. Vê-se, pois, que entre os índios, para citar apenas um exemplo, nós encontraremos instrumentos, idéias e técnicas. Todavia, as características de que se revestem esses elementos entre eles não são as mesmas que detectamos entre nós. Em outros termos: eles não valorizam as mesmas coisas que nós valorizamos; e quando as valorizam, não o fazem da mesma maneira.

Qual é a situação do Brasil? É fácil de se perceber (e nós o pudemos constatar pessoalmente através de contatos com caiçaras, nordestinos, gaúchos, mestiços do Norte e Centro-Oeste, índios bororó e chavante) que, excluídos os indígenas, todos os demais grupos se regem pêlos mesmos valores, respiram a mesma atmosfera ideológica. A diferença consiste no grau de participação, no uso fruto dos bens culturais. As conquistas culturais resultam de toda a sociedade, mas grande parte não participa dessas conquistas, o que significa dizer: grande parte participa da produção da cultura, mas não participa de sua fruição. É este o verdadeiro sentido da "desintegração cultural brasileira", que a idéia de "arquipélago cultural" só faz mascarar. Com efeito, a desintegração não se explica por uma suposta multiplicidade, mas, ao contrário, pela unidade cultural. É porque se regem pêlos mesmos valores que a grande maioria aspira às mesmas conquistas que estão asseguradas a grupos minoritários. Só que, enquanto para estes as aspirações se realizam, para aquela, elas permanecem, no geral, esperanças frustradas. "Essa tendência a que podemos mesmo chamar de marginalização cultural só pode dever-se, portanto, à extrema tenuidade da comunicação entre os grupos marginalizados e os demais grupos que formam o contexto cultural mais amplo, justamente aqueles que, embora minoritários, detêm as formas mais elaboradas de cultura".(11) Radica-se aio fato bastante difundido quanto falacioso de se denominar "culto" apenas ao grupo minoritário enquanto as massas são consi-

11. ALBUQUERQUE, J.A.G. - Cultura, Educação e Desenvolvimento, p. 22.

135 ▲ deradas a parte "inculta" da sociedade: "A classe superior, em sua consciência essencialmente ingénua, não se julga ociosa; muito ao contrário, acredita que se entrega à mais elevada e valiosa de todas as formas de produção, a mental, a

das idéias. Este seria seu papel distintivo e por isso a produção ideológica assume, de seu ponto de vista, o valor de qualidade mais nobre do homem, ficando os trabalhadores manuais na condição de absorventes dos artefatos ideais que lhe são distribuídos pela parte alta. Esta não lhes reconhece o direito de criar por si mesmos as idéias que consideram adequadas para exprimir sua percepção de si, da natureza e de sua situação social. Com isso, as classes efetivamente trabalhadoras ficam privadas, não do direito de pensar, que esse, o exercem constantemente e em natural sentido reivindicatório, mas do direito de ver reconhecidas como expressão da cultura as idéias que elaboram. Seus produtos artísticos são classificados apenas como pitorescos, artesanato, folclore, e somente despertam transitória e divertida curiosidade, enquanto os grupos dirigentes revestem suas obras da qualidade de sérias e eruditas".(12)

A situação acima descrita nos permite compreender os desequilíbrios da sociedade brasileira, a fraqueza dos vínculos que unem os diversos grupos e os conflitos e tensões latentes daí decorrentes. É nesse quadro que chamamos de "desintegração cultural brasileira" que queremos situar a educação como instrumento de fortalecimento dos laços da sociedade.

Tendo em vista que a organização social tende predominantemente à conservação da situação dominante, os desequilíbrios e tensões referidos tenderão também a permanecer e agravar-se. Nesta circunstância, o processo educativo só poderá desempenhar o papel de fortalecimento dos laços da sociedade na medida em que se revelar capaz de sistematizar a tendência à inovação solicitando deliberadamente o poder criador do homem. É aqui que a educação no Brasil surge como um verdadeiro e crucial problema. E isto porque, enquanto atividade inscrita no seio da organização social, ela estará marcada também pela tendência à conservação. Esse problema se agrava ainda mais, uma vez que os educadores, de um modo geral, não estão instrumentalizados para abordar o fenômeno educativo em termos do contexto que o configura, transitando com desenvoltura do processo cultural em totalidade para as atividades específicas, e vice- versa.

Cabe, pois, enfrentar agora esse problema analisando mais de perto o processo escolar. Afastemos desde logo a polemica "escolarização versus desescolarização",

12. PINTO, A. V - Op. c/t., p. 131.

136 ▲ dado que ela se limita aos já escolarizados e estes já estão, de certo modo, desescolarizados. A verdade é que esse debate não atinge os ainda não escolarizados e parece que os debatedores não estão sequer interessados em ouvi-los. Por outro lado, constatada a precariedade dos instrumentos de participação cultural, será sensato nos darmos ao luxo de dispensar a escola que, bem ou mal, é um desses instrumentos?