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Incidência do Código de Defesa do Consumidor nas relações médico-paciente

O Código de Defesa do Consumidor é uma lei de ordem pública (art. 1°) que regula as relações de consumo394, devendo ser aplicada sempre que elas estiverem presentes. As relações de consumo, por sua vez, existem sempre que houver a combinação de três elementos, dois subjetivos e um objetivo, quais sejam: o consumidor395 (subjetivo),

o fornecedor (subjetivo) e a aquisição de um produto396 ou serviço397 (objetivo). Nas palavras de Paulo Sérgio Feuz: “Entende-se por relação de consumo aquela em que

393 Carlos Roberto Gonçalves, Responsabilidade civil, cit., p. 399.

394 Importante trazer à baila as palavras de Nelson Nery Júnior: “O CDC não fala de ‘contrato de consumo,

‘ato de consumo’, ‘negócio jurídico de consumo’, mas de relação de consumo, termo que tem sentido mais amplo que aquelas expressões.” (Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto: da proteção contratual, in Ada Pellegrini Grinover et al., Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto, 7. ed., São Paulo: Forense, 2001, cap. 6, p. 442).

395 O conceito de consumidor aparece em quatro momentos no Código de Defesa do Consumidor, sendo um

basilar e três por equiparação. O conceito principal está no caput do artigo 2º do Código, que estabelece que “consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire produto ou serviço como destinatário final”. No parágrafo único do artigo 2° do Código de Defesa do Consumidor está o segundo conceito: “equipara-se ao consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que hajam intervindo nas relações de consumo”. O terceiro conceito está previsto no artigo 17 do Código de Defesa do Consumidor: é o que a doutrinada denomina de by standers; nesse artigo são equiparados aos consumidores todas as vítimas dos defeitos do produto ou serviço, ainda que estranhas à relação de consumo. E, por fim, o artigo 29 estabelece que são equiparadas aos consumidores todas aquelas pessoas expostas às práticas comerciais. A abrangência da expressão “destinatário final” é controvertida, para explicá-la há na doutrina e na jurisprudência duas correntes: a finalista ou minimalista e a maximalista. A interpretação finalista restringe a figura de consumidor à pessoa que adquire ou utiliza um produto ou serviço para uso próprio ou de sua família. Nesse caso, o consumidor necessita ser o destinatário fático e econômico do produto (serviço), não basta retirar o produto (serviço) da cadeia de produção, é preciso que quem o adquire não o faça para fins profissionais, para revenda. Por outro lado, para os maximalistas basta que o produto seja retirado do mercado de consumo para que se encontre a figura do consumidor, e destinatário final seria o destinatário fático do produto ou serviço. Os maximalistas vêem no Código de Defesa do Consumidor o novo regulamento do mercado de consumo brasileiro, e não como um conjunto de normas orientadas à proteção do consumidor não-profissional. Adotam essa corrente Cláudia Lima Marques, Antônio Herman V. Benjamin e Bruno Miragem (Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, cit., p. 72).

396 O termo produto tem origem na ciência econômica, e foi introduzido no direito através do ramo

econômico. O termo está ligado à idéia de bem, ou seja, o resultado dos meios de produção. E como apresenta José Geraldo Brito Filomeno, “produto, entenda-se bens, é qualquer objeto de interesse em dada relação de consumo, e destinado a satisfazer uma necessidade do adquirente, como destinatário final” (Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto: disposições gerais. in Ada Pellegrini Grinover et al., Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto, 7. ed., São Paulo: Forense, 2001, cap. 1, p. 44).

397 O parágrafo 2º do artigo 3° do Código de Defesa do Consumidor trata do serviço, definindo-o como

“qualquer atividade fornecida no mercado, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista”.

existem duas partes fundamentais, ou seja, o fornecedor e o consumidor, que contratam um produto ou uma prestação de serviço.”398

Nesse diapasão, afirma Luiz Antonio Rizzatto Nunes: “Na medida em que a Lei n. 8.078/90 se instaura também com o princípio de ordem pública e interesse social, suas normas se impõem contra a vontade dos partícipes da relação de consumo, dentro de seus comandos imperativos e nos limites por ela delineados, podendo o magistrado, no caso levado a juízo, aplicar-lhe as regras ex officio, isto é, independentemente do requerimento ou protesto das partes.”399

Assim, quando houver uma relação de consumo, isto é, presentes os três elementos − o consumidor, o fornecedor, a prestação de um serviço ou o fornecimento de um produto − deve ser aplicado o Código de Defesa do Consumidor que, por ser norma de ordem pública e interesse social, não pode ter sua incidência afastada. No mesmo sentido, ensina Fábio Ulhoa Coelho que para se diferenciar o âmbito de incidência do direito do consumidor, o critério fundamental é o da relação de consumo, afirmando que “as relações jurídicas assim caracterizadas submetem-se às normas, preceitos e comandos do Código de Defesa do Consumidor”.400

Ademais, destacam Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery que o microssistema do Código de Defesa do Consumidor é lei de natureza principiológica. Tendo em vista que o Código estabelece os fundamentos sobre os quais se erigem as relações jurídicas de consumo, toda e qualquer relação dessa natureza deve submeter-se à principiologia nele instituída.401

A relação existente entre médico e paciente é claramente uma relação de consumo, uma vez que de um lado está a figura do consumidor (paciente) e, do outro, a

398 Paulo Sérgio Feuz, Direito do consumidor nos contratos de consumo, São Paulo: Edipro, 2003, p. 50. 399 Luiz Antonio Rizzatto Nunes, Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, cit., p. 76.

400 Fábio Ulhoa Coelho, Manual de direito comercial, 11. ed., São Paulo: Saraiva, 1993, p. 81.

401 Nelson Nery Junior; Rosa Maria de Andrade Nery, Código Civil comentado e legislação extravagante,

figura do fornecedor (médico), detentor do conhecimento técnico necessário para desempenhar sua atividade, prestando um serviço especializado.402

De acordo com o artigo 1° da Resolução n. 1.627/2001 do Conselho Federal de Medicina, ato médico é todo ato de procedimento técnico-profissional praticado por médico legalmente habilitado e dirigido à promoção da saúde e prevenção de doenças ou profilaxia, prevenção da evolução de enfermidades ou execução de procedimentos diagnósticos ou terapêuticos e prevenção da invalidez ou reabilitação dos enfermos.

Dessa forma, o médico é uma pessoa física que presta um serviço à saúde de seus pacientes, de forma profissional, mediante certa paga ou ajuste403. Esse conceito se coaduna com o de fornecedor de serviços previsto no artigo 3° Código de Defesa do Consumidor, qual seja “fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços” (grifamos).

Ao paciente, por sua vez, é reconhecida a qualidade de consumidor, tendo em vista que os serviços adquiridos por ele são, sem dúvida, destinados à sua fruição, à promoção de sua saúde, através da realização de procedimentos diagnósticos ou terapêuticos pelo médico.

Reconhecendo a incidência do Código de Defesa do Consumidor na prestação de serviços médicos, João Monteiro de Castro afirma que a relação médico-paciente é “catalogável como uma relação de consumo, figurando o profissional da saúde como fornecedor e o cliente como consumidor”. Conclui que sendo essa relação de consumo, aplicar-se-lhe-ão todas as normas de ordem pública e interesse social atinentes ao direito consumerista.404

402 Destaque-se entendimento em contrário de Miguel Kfouri Neto, defendendo a inaplicabilidade do Código

de Defesa do Consumidor às relações médico-paciente (Direitos do paciente e responsabilidade civil médico-hospitalar: (re)definição conceitual, Tese (Doutorado) − Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, p. 209-212).

403 Esse pagamento pode ser feito diretamente pelo próprio paciente, ou por um estabelecimento hospitalar.

Nessa situação, a responsabilidade será objetiva, como será estudado quando da análise da responsabilidade civil dos hospitais.

Em julgamento apertado no Superior Tribunal de Justiça, com votação extremamente disputada (três votos a dois), a Ministra Nancy Andrighi defendeu a aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos profissionais liberais, entendimento esse que foi acatado pela turma julgadora405. E, dentre os profissionais liberais, estão os médicos.

Destaque-se, ademais, que o fato de se entender que a relação existente entre o médico e o paciente é relação de consumo não faz com que seja, de forma absoluta, afastada a aplicação do Código Civil. Com a abordagem constitucional do direito civil, é preciso que se analise, no caso concreto, a incidência ou não do Código Civil às relações médico-paciente.

Cláudia Lima Marques, Antonio Herman Benjamin e Bruno Miragem trazem os ensinamentos de Erik Jayme, evocando o “diálogo das fontes” (dialogue des sources) para afirmar que nestes tempos pós-modernos, a visão de “superação de paradigmas” foi substituída pela “coexistência ou convivência dos paradigmas”, sendo possível a aplicação conjunta de duas normas ao mesmo caso, “seja complementarmente, seja subsidiariamente, seja permitindo a opção voluntária das partes sobre a fonte prevalente”, possibilitando a opção por uma das leis em conflito abstrato.406

O próprio Código de Defesa do Consumidor, no artigo 7°, estabelece que os direitos nele previstos não excluem outros decorrentes de outras normas incidentes no ordenamento jurídico pátrio, desde tratados e convenções de que o Brasil seja signatário, até regulamentos expedidos pelas autoridades administrativas competentes, bem como os que derivem dos princípios gerais do direito, analogia, costumes e eqüidade.

Assim que normas convergentes e complementares ao Código de Defesa do Consumidor, eventualmente mais amplas ou benéficas, poderão ser aplicadas supletivamente em favor dos consumidores407. De outra parte, se houver conflito entre o

Código de Defesa do Consumidor e as normas previstas em outros diplomas legais, aquele

405 STJ

− RESP n. 364.168, 3ª Turma, rel. Min. Antonio de Pádua Ribeiro, j. 20.04.2004.

406 Cláudia Lima Marques; Antônio Herman V. Benjamin; Bruno Miragem, Comentários ao Código de

Defesa do Consumidor, cit., p. 24-25.

407 Adalberto Pasqualotto, O Código de Defesa do Consumidor em face do novo Código Civil, Revista de

deve prevalecer sobre estas, pois, como mencionado, o Código de Defesa do Consumidor é uma lei de natureza principiológica (emanada da ordem constitucional), bem como uma lei especial (que tem seu âmbito de aplicação determinado pelos atores da relação de consumo). Isso não significa que a norma que será afastada no caso concreto está revogada, ela permanece válida no sistema jurídico.

No que concerne especificamente às relações médico-paciente, cabe destacar o disposto nos artigos 944 a 951 do Código Civil, que dispõem sobre a indenização e os mecanismos para a sua fixação. Essas normas poderão ser levadas em consideração no momento de fixação do montante devido pelo médico a título de reparação pelo dano que vier a causar ao paciente, desde que se mostrem compatíveis com o microssistema do Código de Defesa do Consumidor.408

Determinada a incidência do Código de Defesa do Consumidor nas relações médico-paciente, o sistema de responsabilidade civil nele previsto é o que, de forma geral, será aplicado aos contratos de reprodução humana, ressalvadas as hipóteses em que, devido ao diálogo das fontes, outras normas e princípios devam incidir no microssistema do Código de Defesa do Consumidor, visando à proteção do consumidor.