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A prova pericial surge da necessidade de auxiliar os órgãos judiciais em questões que requerem conhecimentos específicos, que vão além do senso comum e dos conhecimentos jurídicos532. A complexidade que envolve a atividade médica, especialmente no mundo contemporâneo, onde cada vez há mais recursos tecnológicos e áreas de conhecimento específicas, apontam para a indispensabilidade de produção de prova pericial nas demandas médicas.533

529 Cristiano Chaves de Farias; Nelson Rosenvald, Direito civil: teoria geral, cit., p. 27. 530 João Monteiro de Castro, Responsabilidade civil do médico, cit., p. 42.

531 Em sentido contrário, defendendo a possibilidade de sua aplicação, é possível citar: Daniela Lenza

Navarrete, Responsabilidade civil dos médicos, cit., p. 191; Miguel Kfouri Neto, Direitos do paciente e responsabilidade civil médico-hospitalar: (re)definição conceitual, p. 320 e ss.

532 Roberto Vázquez Ferreyra, Daños y perjuicios en el ejercicio de la medicina, cit., p. 287. 533 Amélia do Rosário Motta de Pádua, Responsabilidade civil na reprodução assistida, cit.,p. 192.

Com efeito, o artigo 436 do Código de Processo Civil determina que o juiz não está adstrito ao laudo pericial, podendo chegar ao convencimento a partir de outros elementos e fatos constantes nos autos534. Apesar disso, a referida complexidade da atividade médica faz com que, muitas vezes, o julgador dependa da perícia para formar seu convencimento.

Ocorre que, inúmeras vezes, a necessidade de recorrer ao testemunho e opinião dos colegas do demandado dá lugar ao que nos Estados Unidos se chama “conspiração do silêncio”. Esse silêncio, conforme Roberto Vázques Ferreyra, decorre de inúmeras razões, entre as quais: “1) uma defesa psicológica baseada no temor e no próprio interesse; 2) uma indisposição humana de causar um dano a um amigo ou colega; 3) pressões sobre os médicos, na profissão, bem como de companhias de seguro; 4) uma sensação de que a maior parte das ações de má prática médica não tem uma base sólida e que as alegações são freqüentemente ‘preparadas’ pelos advogados; 5) uma convicção intelectual de que os casos de má prática médica geralmente prejudicam o progresso médico.”535

Diante dos inconvenientes em conseguir a prova que incrimine o médico, surgiram, na doutrina, teorias tendentes a facilitar a pesada carga probatória que deve enfrentar o paciente.536

Em alguns Estados dos Estados Unidos, aplica-se a teoria da res ipsa loquitur ou de que a coisa fala por si. Os seus elementos são, segundo Miguel Kfouri Neto: a) o dano deve resultar de um fato que, em regra, não ocorre se não houver culpa; b) o prejuízo precisa ter sido causado diretamente pelo médico ou por pessoa atuando sob sua direção ou

534 Amélia do Rosário Motta de Pádua, Responsabilidade civil na reprodução assistida, cit., p. 192.

535 No original: “1) una defensa psicológica basada en el temor y propio interés; 2) una indisposición

humana de hacer el daño a un amigo o colega; 3) presiones sobre los médicos dentro de la profesión y de compañías de seguros; 4) una sensación de que la mayor parte de acciones de mala práctica médica no tienen una base sólida y que las alegaciones son frecuentemente ‘preparadas’ por los abogados; 5) una convicción intelectual de que los casos de mala práctica médica generalmente ariesgan el progreso médico.” (Roberto Vázquez Ferreyra, Daños y perjuicios en el ejercicio de la medicina, cit., p. 288 − nossa tradução).

536 A aplicação das regras do ônus probatório no processo civil brasileiro, feita com suporte numa visão

estática, ocorre da seguinte forma, de acordo com o artigo 333 do Código de Processo Civil: a) em regra, a cada uma das partes cabe trazer para os autos os elementos comprobatórios das alegações que tenha feito; portanto, ao autor cabe conduzir ao processo as provas dos fatos sobre os quais funda o seu direito; ao réu, cabe provar os fatos que, de modo direto ou indireto, deixam patente a inexistência daqueles; b) em regra, também, cabe ao autor provar os fatos constitutivos de seu direito, e ao réu a prova de fatos extintivos, impeditivos ou modificativos do direito do autor.

controle; c) o dano deverá ter ocorrido em circunstâncias que indiquem que o paciente não o produziu voluntariamente ou por negligência de sua parte537. Enfim, res ipsa loquitur é meio de prova que se assemelha às presunções judiciais de culpa do demandado.538

Na Argentina, adota-se a teoria da distribuição dinâmica do ônus probatório. Por essa teoria, a carga de provar incumbe a quem, pelas circunstâncias do caso – materiais e processuais −, sem que tenha relevo quem figura como autor ou réu, encontre-se em melhores condições de fazê-lo539. Ricardo Luis Lorenzetti, ao tratar do assunto, afirma que

na responsabilidade médica, a maioria dos autores e da jurisprudência entende que o médico é quem está em melhores condições probatórias; e, por essa razão, é ele que “tem uma explicação possível para o ocorrido, bem como a informação”540

Na França, desde 1965, a jurisprudência tem admitido a teoria da perda de uma chance. Essa teoria tem por objetivo aliviar a carga probatória da causalidade, a cargo da vítima, entre a culpa e o dano. Por essa teoria, não é preciso demonstrar que a culpa do médico causou um determinado prejuízo ao paciente, mas sim afirmar que sem a culpa, o dano não teria ocorrido. Milita, dessa maneira, uma presunção de culpa contra o médico.541

No Brasil, o Código de Defesa do Consumidor, atento às dificuldades existentes na produção da prova por parte da vítima dos acidentes de consumo, previu a possibilidade de inversão do ônus da prova em seu favor, quando o consumidor for hipossuficiente ou quando suas alegações forem verossímeis (art. 6°, inc. VIII).

O autor argentino Ricardo Luis Lorenzetti, ao comentar a situação no Brasil, destaca que na doutrina há discussão entre aqueles que entendem não ser possível a inversão do ônus da prova em favor do consumidor542 e os que defendem a total aplicabilidade da regra do artigo 6°, inciso VIII do Código de Defesa do Consumidor. Os

537 Miguel Kfouri Neto, Responsabilidade civil do médico, cit., p. 68. 538 Miguel Kfouri Neto, Responsabilidade civil do médico, cit., p. 69. 539 João Monteiro de Castro, Responsabilidade civil do médico, cit., p. 189.

540 No original: “tiene una explicación posible de lo sucedido y la información” (Ricardo Luis Lorenzetti,

Responsabilidad civil de los médicos, cit., v. 2, p. 218 − nossa tradução).

541 Miguel Kfouri Neto, Responsabilidade civil do médico, cit., p. 65.

542 Defendendo a inaplicabilidade da inversão do ônus da prova Miguel Kfouri Neto afirma: “Em suma, à luz

do ordenamento jurídico vigente, torna-se impossível a inversão do ônus da prova, em desfavor do médico, em ações decorrentes de má prática, fundadas na culpa do profissional.” (Direitos do paciente e responsabilidade civil médico-hospitalar: (re)definição conceitual, cit., p. 217).

que defendem esse último posicionamento afirmam que toda exceção é de enunciação taxativa, de maneira que ao médico aplicam-se todas as regras do Código de Defesa do Consumidor, salvo a da imputação objetiva, respondendo ele por culpa.543

Cabe razão aos últimos, pois, como já defendido neste trabalho, às relações médico-paciente aplicam-se as regras do Código de Defesa do Consumidor544. Nesse sentido, Zelmo Denari, ao comentar o parágrafo 4° do artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor, afirma que o dispositivo, apesar de ter afastado a regra da responsabilidade objetiva quanto aos profissionais liberais, não aboliu a aplicação do princípio da inversão do ônus da prova.545

Da mesma forma, Antônio Carlos Efing: “Convém esclarecer que o fato da responsabilidade do profissional liberal ser apurada em regra como subjetiva, em nada altera as regras a respeito da inversão do ônus da prova em favor do consumidor, uma vez preenchido um dos requisitos legais da verossimilhança das alegações ou hipossuficiência do consumidor.”546

No mesmo diapasão, Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery ensinam que “o ônus da prova da regularidade e correção na prestação do serviço deve ser, de ordinário, carreado ao profissional liberal. A ele compete provar que agiu corretamente, dentro da técnica de sua profissão e não causou dano ao consumidor. Incide, na hipótese, o CDC 6° VIII”.547

543 Ricardo Luis Lorenzetti, Responsabilidad civil de los médicos, cit., v. 2, p. 243.

544 “Responsabilidade civil. Prova. Vítima de um ferimento simples no dedo que após o atendimento médico-

hospitalar, teve a extremidade do membro amputada devido a um foco infeccioso. Inversão do ônus da prova para que o médico e o hospital comprovem que o atendimento foi adequado. Aplicação dos artigos 6°, VIII e 14, parágrafo 4° da Lei n. 8.078/90 e do artigo 1.545 do Código Civil. Não cabe ao paciente, vítima de um ferimento simples no dedo que, após atendimento médico-hospitalar, teve a extremidade do membro amputada, devido a um foco infeccioso, demonstrar que o atendimento não foi adequado, pois, segundo o artigo 6°, VIII do Código de Defesa do Consumidor, tal prova deve ser produzida pelo médico e pelo hospital, eis que, nos termos do artigo 14, parágrafo 4°, também da Lei n. 8.078/90 e do artigo 1.545 do Código Civil, a responsabilidade dos profissionais é subjetiva, dependendo da verificação de culpa.” (STJ − RESP n. 171.988/RS, 3ª Turma, rel. Min. Waldemar Zveiter, j. 24.05.1999, DJU, de 28.06.1999, RT 710/210).

545 Zelmo Denari, Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto: da

qualidade de produtos e serviços, da prevenção e da reparação dos danos, cit., p. 176.

546 Antônio Carlos Efing, Fundamentos do direito das relações de consumo, Curitiba: Juruá, 2004, p. 143. 547 Nelson Nery Junior; Rosa Maria de Andrade Nery, Código Civil comentado e legislação extravagante,

Também reconhecem a possibilidade de inversão do ônus da prova em favor do consumidor nos contratos médico-paciente João Monteiro de Castro548 e Amélia do Rosário Motta de Pádua.549

O Código de Defesa do Consumidor previu, ademais, no artigo 51, inciso VI, que é abusiva a cláusula contratual que estabeleça a inversão do ônus da prova em prejuízo do consumidor, como as cláusulas que projetem a certeza ou refutabilidade da existência ou inexistência de um fato, às custas de declaração do consumidor.550

Destarte, nota-se que a perícia médica é de suma importância, não apenas para o paciente, mas também para o médico. Diante da possibilidade de inversão do ônus da prova, a perícia pode se mostrar um poderoso instrumento a favor do médico.

Indispensável lembrar que a perícia deve ser feita por um profissional de extrema confiança do julgador, de preferência membro do Poder Judiciário, ressaltando-se ainda a necessidade de se recrutar médicos especialistas na área em que a perícia será realizada.551

3.18 A responsabilidade médica e a cláusula de não indenizar