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Procriação artificial heteróloga: verdade biológica versus verdade afetiva

Se de um lado as técnicas de procriação artificial homóloga não levantam muitos questionamentos em relação à filiação, pois o material genético é dos pais afetivos, havendo coincidência entre aqueles que desejam imprimir um projeto parental e os pais biológicos da criança, de outro lado, a reprodução assistida mediante o uso de técnicas heterólogas traz inúmeras indagações jurídicas quanto à filiação, o anonimato do doador e o direito à identidade genética da pessoa nascida através da utilização dessas técnicas.

A primeira questão que se impõe é saber como atribuir filiação a uma criança nascida de uma técnica de reprodução heteróloga. Deve ser fixada com base em que critério? No biológico ou no socioafetivo? Para que se possa entender o alcance da filiação decorrente dessas técnicas de procriação artificial é preciso que sejam assimilados novos modelos, regidos pelos critérios da desbiologização, da responsabilidade parental e do melhor interesse da criança.235

O artigo 1.597, inciso V do Código Civil estabelece que “se presumem concebidos na constância do casamento os filhos: havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização marido”. O artigo segue a tendência do direito comparado, que prevê como critério de estabelecimento da parentalidade-filiação decorrente de procriação assistida heteróloga não o vínculo biológico, e sim o afetivo.236

234 Olga Jubert Gouveia Krell, Reprodução humana assistida e filiação civil: princípios éticos e jurídicos, cit.,

p 190-191. José Jairo Gomes fala ainda na possibilidade do homem sobrevivo inseminar o óvulo congelado da sua esposa, para que seja gerado no útero de outra mulher (Reprodução humana assistida e filiação na perspectiva dos direitos da personalidade, cit., p. 148). Esse método deve ser totalmente vedado pelas razões expostas no caso da inseminação da mulher pelo sêmen do marido, e, ademais, que nesse caso não será possível falar em utilização de qualquer técnica de procriação artificial, uma vez que não há infertilidade; o homem é fértil, apenas deseja fecundar o óvulo da mulher falecida.

235 Olga Jubert Gouveia Krell, Reprodução humana assistida e filiação civil: princípios éticos e jurídicos, cit.,

p. 157.

A partir da análise desse artigo, percebe-se que a parentalidade do ascendente que não contribuiu com suas células reprodutivas para a formação do filho é fixada com base na vontade. Segundo Guilherme Calmon Nogueira da Gama, “a vontade acoplada à existência do convívio conjugal e ao êxito da técnica de procriação assistida heteróloga se mostra o elemento fundamental para o estabelecimento da paternidade”.237

Uma vez manifestada a vontade pelo marido de desempenhar um projeto parental, a paternidade se torna certa, inexistindo possibilidade de sua impugnação. O Enunciado n. 258 da III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal determina que “não cabe a ação prevista no artigo 1.601 do Código Civil (negatória de paternidade) se a filiação tiver origem em procriação assistida heteróloga, autorizada pelo marido nos termos do inciso V do artigo 1.597, cuja paternidade configura presunção absoluta”238. O mesmo raciocínio deve ser desenvolvido quanto ao companheiro, ressaltando-se a necessidade, nesse caso, do reconhecimento da paternidade, voluntária ou judicialmente, nos termos do artigo 1.607 do Código Civil.239

Apesar de o Código Civil de 2002 estabelecer de forma expressa a presunção da paternidade nos casos de reprodução heteróloga em que há a autorização do marido, não dispõe de forma detalhada sobre a matéria, razão pela qual é preciso fazer uma interpretação sistemática, no sentido de determinar que regras devem ser aplicadas na fixação dessa espécie de filiação.240

De acordo com Olga Jubert Gouveia Krell, na reprodução heteróloga, deve ser feita uma construção teórica, conjugando aspectos da adoção e da filiação natural, a fim de

237 Guilherme Calmon Nogueira Gama, A reprodução assistida heteróloga sob a ótica do novo Código Civil,

cit., p. 51.

238 Está tramitando no Congresso Nacional o Projeto de Lei n. 4.946/2005, que adota proposta da Diretoria do

IBDFAM, pelo qual o dispositivo ficaria com a seguinte redação: “Artigo 1.601 - Cabe exclusivamente ao marido o direito de impugnar a paternidade dos filhos nascidos de sua mulher. § 1º - Impugnada a filiação, os descendentes ou ascendentes do impugnante têm direito de prosseguir na ação. § 2º - Não se desconstituirá a paternidade caso fique caracterizada a posse do estado de filiação, ou a hipótese do inciso V do artigo 1.597.”

239 “Artigo 1.607 - Os filhos havidos fora do casamento podem ser reconhecidos pelos pais, conjunta ou

separadamente”. Ver: Guilherme Calmon Nogueira Gama, A reprodução assistida heteróloga sob a ótica do novo Código Civil, cit., p. 52.

240 Nesse sentido: Guilherme Calmon Nogueira Gama, A reprodução assistida heteróloga sob a ótica do novo

Código Civil, cit., p. 54; Juliana Frozel de Camargo, Reprodução humana: ética e direito, cit., p. 208; Olga Jubert Gouveia Krell, Reprodução humana assistida e filiação civil: princípios éticos e jurídicos, cit., p. 160; Silvia da Cunha Fernandes, As técnicas de reprodução humana assistida e a necessidade de sua regulamentação jurídica, cit., p. 84.

se determinar o modelo de paternidade-maternidade que será empregado nesses casos. Dessa forma, ao ascendente que contribui com seu material genético para a concepção do filho são aplicáveis as regras da filiação natural; e, quanto ao outro membro do casal, incide a norma prescrita no artigo 41, caput do Estatuto da Criança e do Adolescente241. Pode-se afirmar, conseqüentemente, que há um “terceiro gênero” de filiação que agrega regras dos dois modelos.242

Dessa forma, nos termos do artigo 41, caput do Estatuto da Criança e do Adolescente, deve ser reconhecida a qualidade de filho à criança nascida em decorrência da procriação artificial heteróloga com relação àquele que não contribuiu com o seu material genético para a concepção. É preciso conceder à criança os mesmos direitos e deveres, como se filho natural fosse, inclusive os sucessórios. Ademais, não subsiste vínculo algum com o doador, salvo os impedimentos matrimoniais.243

Por aplicação análoga244 do disposto no artigo 47 do Estatuto da Criança e do Adolescente245, defende-se a obrigatoriedade da comunicação dos dados do material fecundante ao oficial do registro civil do cartório onde for registrado o nascimento da criança que resultou das técnicas de reprodução artificial heteróloga. Essas informações, de

241 “Artigo 41 - A adoção atribui a condição de filho ao adotado, com os mesmos direitos e deveres, inclusive

sucessórios, desligando-o de qualquer vínculo com pais e parentes, salvo os impedimentos matrimoniais.”

242 Olga Jubert Gouveia Krell, Reprodução humana assistida e filiação civil: princípios éticos e jurídicos, cit.,

p. 162.

243 “Artigo 1.521 - Não podem casar: I - os ascendentes com os descendentes, seja o parentesco natural ou

civil; II - os afins em linha reta; III - o adotante com quem foi cônjuge do adotado e o adotado com quem o foi do adotante; IV - os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais, até o terceiro grau inclusive; V - o adotado com o filho do adotante; VI - as pessoas casadas; VII - o cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de homicídio contra o seu consorte. Artigo 1.522 - Os impedimentos podem ser opostos, até o momento de celebração do casamento, por qualquer pessoa capaz.”

244 Resguardadas as devidas adaptações, como o fato da informação dever ser prestada pelo médico

responsável pela técnica de procriação artificial.

245 “Artigo 47 - O vínculo da adoção constitui-se por sentença judicial, que será inscrita no registro civil

mediante mandado do qual não se fornecerá certidão. § 1° - A inscrição consignará o nome dos adotantes como pais, bem como o nome de seus ascendentes. § 2° - O mandado judicial, que será arquivado, cancelará o registro original do adotado. § 3° - Nenhuma observação sobre a origem do ato poderá constar nas certidões do registro. § 4° - A critério da autoridade judiciária, poderá ser fornecida certidão para a salvaguarda de direitos. § 5° - A sentença conferirá ao adotado o nome do adotante e, a pedido deste, poderá determinar a modificação do prenome. § 6° - A adoção produz seus efeitos a partir do trânsito em julgado da sentença, exceto na hipótese prevista no artigo 42, parágrafo 5°, caso em que terá força retroativa à data do óbito.”

caráter sigiloso, devem ser registradas em livros apartados, reservados pelo oficial responsável, a exemplo da adoção.246

Cabe frisar que o legislador não contemplou como hipótese de presunção da paternidade os casos em que a esposa ou companheira tem um filho em decorrência da utilização de técnicas de procriação heteróloga sem autorização do marido. Desse modo, de acordo, mais uma vez, com os ensinamentos de Guilherme Calmon Nogueira da Gama, deve-se buscar fundamento diverso para determinar a paternidade nessas hipóteses, como o fundamento do risco. Segundo essa hipótese, o risco da situação que envolve o homem que convive com sua esposa ou companheira e adere, implicitamente ou em decorrência do silêncio, ao projeto parental desenvolvido pela mulher, impõe o dever dele ser reconhecido como o pai, em razão do melhor interesse da criança.247

Nesse sentido, é importante citar o Enunciado n. 104, aprovado na I Jornada do Conselho da Justiça Federal, que dispõe: “Artigo 1.597: no âmbito das técnicas de reprodução assistida envolvendo o emprego de material fecundante de terceiros, o pressuposto fático da relação sexual é substituído pela vontade (ou eventualmente pelo risco da situação jurídica matrimonial) juridicamente qualificada, gerando presunção absoluta ou relativa de paternidade no que tange ao marido da mãe da criança concebida, dependendo da manifestação expressa (ou implícita) da vontade no curso do casamento.”

Dispositivo do Código Civil de 2002 que se mostra relevante na análise da determinação da paternidade-maternidade nas técnicas de procriação heteróloga é o artigo 1.593, que determina que o parentesco é natural ou civil, conforme decorra da consangüinidade ou outra origem. Hodiernamente, deve-se entender como espécies do gênero de parentesco civil os decorrentes da adoção e da reprodução assistida heteróloga.

De acordo com o acima elucidado, prevendo a determinação da parentalidade na procriação assistida pela vontade, estão os Projetos de Lei ns. 2.855/97 e 90/99. Este estabelece que a paternidade-maternidade plena da criança será dos beneficiários das

246 Guilherme Calmon Nogueira da Gama, A nova filiação: o biodireito e as relações parentais, p. 807; Olga

Jubert Gouveia Krell, Reprodução humana assistida e filiação civil: princípios éticos e jurídicos, cit., p. 165.

técnicas de reprodução humana assistida, dispondo que a morte deles não restabelece o poder parental dos pais biológicos (art. 16). Reconhece ainda que os doadores e seus parentes biológicos não terão qualquer espécie de direito ou vínculo quanto à maternidade ou paternidade, em relação à pessoa nascida a partir do emprego dessas técnicas, salvo os impedimentos matrimoniais fixados na legislação civil (art. 17). Da mesma forma, o primeiro prevê que o fato de ser revelada a identidade do doador não será motivo para fixação de nova filiação.

Das explanações expostas neste tópico, pode-se concluir que a vontade na reprodução artificial humana heteróloga substitui a relação sexual presente na reprodução natural, fazendo com que a verdade afetiva prevaleça sobre a verdade biológica, determinando a paternidade/maternidade daquele integrante do casal que não contribui com seus gametas.