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Incluindo a História Negra no Currículo

EDUCAÇÃO PARA AS RELAÇÕES ÉTICO-RACIAIS: MARCOS LEGAIS E HISTÓRICOS

3.2 Incluindo a História Negra no Currículo

A inclusão dos Artigos 26A e 79B nasce da necessidade de reconstrução da história – haja vista que parte dela foi desconsiderada - sobre nossas raízes, sobre nossos/as ancestrais africanos/as e afrodescendentes que guardaram traços fenotípicos da negritude.

33 Texto e tramitação na íntegra disponível em

http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1127776&filename=Dossie+- PL+259/1999

34 Para conhecer todo o processo de tramitação, até a aprovação do texto final, consultar a pesquisa de

A história e cultura africanas e afro-brasileiras não foram negadas apenas ao povo negro, mas a toda sociedade brasileira que conheceu uma história que invisibilizou ou tratou como exóticas e folclorizadas as contribuições da diáspora africana adotando viés eurocentrado, altamente estigmatizante e re/produtor de Representações Sociais inferiorizantes, capazes de naturalizar ou mesmo justificar, ideologicamente, a organização social brasileira.

A constituição de fatos históricos é regulada pelo contexto histórico e social de elaboração dos estudos e relatos, pelo lugar de onde fala o/a historiador/a, guardando assim, a possibilidade de deturpação da interpretação dos acontecimentos.

Não se trata de privilegiar essa parte da história, mas de dar a esta matriz o devido espaço, o que representa chamar a atenção não apenas para a comum ausência de história africana e afro-brasileira, mas, sobretudo, para a forma como ela tem sido contada e como as Representações Sociais sobre o continente africano são elaboradas e reproduzidas.

O currículo branco adotado pelo Sistema de Ensinobrasileiro interfere diretamente nas reações interpessoais no ambiente escolar. A ausência de referências positivas soma-se ao excesso de estereótipos. Isso porque a produção do conhecimento não se refere a uma simples e fiel descrição de fenômenos, mas é construída a partir de perspectivas dominantes e disputas de interesses que circundam as relações sociais. Grupos sociais hegemônicos constroem saberes, distorcem fatos e projetam imagens e valores que atendem a seus projetos ideológicos.

Exemplo desse fato é apontado por Jeziel de Paula (1998) que, ao analisar imagens “oficiais” e midiáticas que retratam a Revolução Constitucionalista de 32,evidencia como a manipulação dessas imagens servia à construção de uma versão realidade. O estudo reconstrói os fatos ao desmontar a versão elaborada pelos “vencedores”. A estratégia adotada envolveu a eliminação e/ou edição de imagens que pudessem retratar manifestações civis que eclodiam em todo o país ao mesmo tempo em que buscavam forjar a adesão das massas eapagar os confrontos e resistências populares por meio de fotomontagens e legendas falsas ou tendenciosas.

A história contada pela escola, não raro, segue a versão hegemônica e enviesada da realidade. Como pondera Apple (1999), a função assumida pela educação tem sido a de reprodução das relações de poder desiguais numa lógica em que teorias e práticas eleitas não são meras ações técnicas, mas ideológicas e políticas.

O desafio de professores/as consiste, enquanto educadores/as e seres políticos, em compreender o modo como “símbolos culturais, selecionados e organizados

pelas escolas, se encontram dialeticamente relacionados com os tipos de consciência normativa e conceptual ‘requeridos’ por uma sociedade estratificada” (APPLE, 1999, p.22).

Tendo como norte esta perspectiva, as alterações curriculares voltadas à inclusão de histórias negligenciadas podem representar eficaz instrumento de combate aos “conhecimentos” e “verdades” legitimados pelo campo hegemônico, que, interessado em manter a organização piramidal da sociedade, tem no racismo valioso mecanismo de sustentação das desigualdades sociais.

Nesta ótica, pensar criticamente as questões que permeiam as definições curriculares envolve a compreensão de como elas são capazes de determinar práticas reprodutoras de interesses das classes dominantes. Nesse movimento, as práticas racistas funcionam como perspicaz ferramenta estruturante da vida social (SOUZA, J.B., 2015).

Há uma forte tendência entre os professores/as, inclusive atuantes no nível superior, em reproduzir as metodologias e Representações Sociais construídas em seu próprio processo educativo. O resultado são as dificuldades e resistências em promoverem alterações em suas práticas pedagógicas que depende da quebra de paradigmas e reedificação de concepções (FERREIRA, 2013). Esse processo atesta a necessidade de inclusão no Sistema de Ensino, de instrumentos que possam subsidiar o processo de conscientização por meio de debates e reflexões constantes (OLIVEIRA, 2012).

Tais ações dependem de in/formação e conscientização dos/as profissionais da educação diante da necessidade de enfrentamento do racismo nas escolas por meio significação/resignificação de práticas pedagógicas (PAULA, 2013) conscientes, porém, de que movimento de alteração curricular da Educação Básica pede que o currículo do Ensino Superior seja, necessariamente, revisitado.

Em 1996, a pesquisadora Ângela Soligo já anunciava a urgência em incluir a questão racial nos currículos das licenciaturas bem como a necessidade de superação da fase de denúncias para a consolidação de intervenções voltadas à superação do preconceito nas escolas. Após 20 anos, as análises de pesquisas mais recentes demonstram basicamente os mesmos resultados (SOLIGO, 1996).

As injustiças históricas, sociais e econômicas seguem atingindo os currículos da Educação básica e do ensino universitário que inibem a construção positiva da identidade negra desconstroem a luta negra e forjam uma África sem memória. Esse é o

resultado da disseminação de uma história única35. Uma história de guerras, miséria e doenças acompanhada da negação de milhares de outras histórias que habitam o continente, de suas riquezas e real percurso histórico antes e depois da conquista europeia. Além disso, desconhecemos as inúmeras formas e estratégias de resistência e atuação de movimentos sociais negros. Importantes ações são desconsideradas e depois esquecidas por aqueles/as que têm em suas mãos o controle ideológico do saber transmitido na escola.

Há, de fato, a visão de localidades africanas comsafáris, doenças e disputas étnicas. Contudo, a história oficial no currículo formal da educação básica por muito tempo ignorou que grande parte dos infortúnios que assolam alguns países africanos hoje é resultante de um desastroso processo de colonização empreendido pelos europeus.

Lima (2014) entende que as Representações Sociais sobre a África reproduzem um continente bipartido marcado de um lado pela sua grandiosa natureza, em tom romântico: intocada. Por outro lado, apresentam as imagens de miséria, pobreza, fome entre outras. As duas imagens são produtos do discurso colonial que ainda hoje descreve os países africanos como atrasados e pouco evoluídos sob o ponto de vista tecnológico e civilizatório.

Normalmente, os livros didáticos não contam que coexiste com a natureza exótica e com localidades ainda em desenvolvimento, um continente com ricas e surpreendentes histórias, belas paisagens e riquezas naturais (para além dos safáris), além de formidáveis imagens urbanas que refletem desenvolvimento, não raro desconhecidas. (DUARTE, 2015; RIBEIRO, 2002). Não falam sobre os saberes e tecnologias iniciados pelas sociedades africanas pré-coloniais como, por exemplo, o manejo dos metais, os conhecimentos sobre o manejo da agricultura e relações comerciais tão bem apontados nos estudos de Alberto da Costa e Silva (2002; 2006). Isso significa dizer que a realidade histórica e geográfica africana não condiz com a representação ideológica forjada sobre o continente.

Da mesma forma, a história dos/as africanos/as e afrodescendentes no Brasil ganhou, por muitas décadas, contorno ideológico de subalternidade e complacência negras acompanhada da sagacidade e heroísmo brancos. Tal receita resultou na

35Referência à palestra de CHIMAMANDA, Adichie. Os perigos de uma História Única.

Conferência Anual – TED Global, 2009 Oxford, Reino Unido. Disponível em: <https://youtu.be/ZUtLR1ZWtEY>. Acesso em: 7 abr. 2015.

formulação e manutenção de um imaginário racista e preconceituoso, por vezes materializado em ações/omissões discriminatórias individuais, culturais e institucionais.

Outra representação comum ligada ao continente é a imagem de unidade étnica. Consideramos as especificidades de nacionalidades como a portuguesa, francesa ou italiana, por exemplo. Contudo, para nos referirmos às pessoas de diferentes nacionalidades africanas condensamos toda a riqueza e diversidade presente nos diversos países no “adjetivo pátrio” – africano/a. As identidades dessas nações perderam- se quando todos os escravizados foram “categorizados” e “unificados” como negros/as.

A diversidade étnica e cultural do continente não costuma ser considerada de modo que pessoas de diversas localidades, com língua, hábitos e visão de mundo bem diferentes, são simplesmente agrupadas como “africanas”, e com estranhamento vão percebendo que no Brasil são “negros” e precisam aprender como e porque o termo é utilizado, uma vez que outrora foi utilizado de forma bastante pejorativa.

Importante lembrar que hoje o termo “negro”, além de representar uma marca identitária pela busca de valorização da história e cultura afro-brasileira, tem conotação política de denúncia do racismo e reivindicação de políticas de igualdade. O atendimento às recentes determinações legais de alteração curricular está em sua consolidação por meio de intensas mudanças, não apenas das práticas pedagógicas nas escolas, mas antes, no Sistema de Ensinocomo um todo.

Por meio de atividade interventiva voltada a promover mudanças no modo de conceber o continente, Geranilde Silva (2009) identifica o desconhecimento entre os/as estudantes sobre a História da África antes da colonização ou mesmo como se deu o processo de exclusão no Brasil após a abolição.

A partir do olhar de Santos (2010), desvela-se um importante debate sobre o desconhecimento e despreparo dos/as professores para o trato com a temática. Abrem- se, portanto, diversos questionamentos a respeito do alcance da alteração curricular.

A UNESCO lançou a coleção História Geral da África, distribuiu exemplares impressos e disponibilizou para download. A iniciativa é resultado de muito esforço, começou a ser desenhada em 1964, envolveu 350 estudiosos coordenados por 39 especialistas. A tarefa que durou 30 anos até ser concluída representa valor inestimável na reconstrução da história da África. Porém, estamos falando de cerca de 10.000 páginas distribuídas em oito volumes36. É possível considerar que na realidade concreta

36 Disponível em: <http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/education/inclusive-education/general-

onde nos deparamos com a precarização do trabalho docente e o excesso de carga horária, esses/as profissionais sentiram bastante dificuldade em utilizar esse material e adaptá-los à área ou etapa de ensino em que atuam.

Posteriormente foi lançada síntese da coleção em dois volumes, iniciativa fundamental como auxílio ao processo formativo, porém ainda inacessível para a maioria dos/as professores/as sob o ponto de vista das especificidades de cada disciplina, nível, etapas e modalidades de ensino. Como veremos ao longo da pesquisa os/as alguns/as docentes/as não sabem como devem alterar o planejamento das aulas de modo a incluir a História da África eAfro-brasileira.

Nesse sentido, a publicação "História e Cultura Africanas e Afro-brasileiras na

educação infantil", uma cooperação entre o MEC, UFSCar e a UNESCO, aproxima-se do

atendimento à necessidade de elaboração de materiais mais específicos. O livro contém propostas de projetos pedagógicos e conteúdos específicos para a Educação Infantil (BRASIL, 2014c).

As propostas didáticas, contudo, de atendimento à legislação quando não acompanhadas do devido preparo e formação, podem reafirmar Representações Sociais racistas. Os resultados do estudo realizado por Santos (2010) evidenciam que as tentativas de apresentar uma visão positivada do continente e dos/as africanos/as podem resultar em ações pautadas em imprecisões, generalizações e mitificações que apenas reforçarão o senso comum ingênuo e estereotipado. Em função do despreparo, é possível identificar entre os professores/as uma visão idealizada e justificadora da escravidão praticada antes em África ou entendimentos que se prendem à escravidão ou à “cultura” – normalmente pelo viés folclorizante – em detrimento da “história”. Nesse sentido, Zumbi dos Palmares é apresentado em tom mítico.

Zumbi dos Palmares deve ser apresentado como um grande líder negro da História do Brasil, destacando-se suas estratégias de luta e capacidade de liderança frente ao Quilombo dos Palmares, o maior e mais importante quilombo brasileiro.

Na prática, Zumbi dos Palmares e todo o significado que carrega ainda não estão nos currículos vividos nas escolas. No processo de encadeamento de instrumentos ideológicos de dominação, a organização curricular aparece como importante meio de reprodução de Representações Sociais hegemônicas –onde não cabe o protagonismo negro.

Somadas às alterações curriculares, as iniciativas de valorização da cultura negra e combate ao racismo refletem a necessidade de superação às ideologias e

conceitos que se constituem a partir de experiências e trajetórias individuais (FERNANDES, 2011; REIS, 2008). Nossas representações são construídas a partir das interações sociais e relações estabelecidas ao longo da vida (TELES, 2012), por meio do contato com os diversos mecanismos de reprodução do racismo, dentre os quais, o currículo eurocentrado.

As discussões em torno da inclusão da História e Cultura Africanas e Afro- brasileiras, a partir da denúncia da existência do racismo no ambiente escolar, traz, portanto, grandes desafios no tocante a reconstrução curricular e, por consequência, a reavaliação de saberes e práticas pedagógicas. Como explica Monteiro (2010), diálogos sobre o racismo nas escolas podem afetar a cultura da naturalização, da homogeneização e da estigmatização promovendo ações pedagógicas mais críticas e perduráveis.