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POUCOS AVANÇOS, MUITOS OBSTÁCULOS

5.1 Resistências e entraves

5.2.3 Intervenções Equivocadas

O próximo ponto de diálogo traz reflexões de como “boas intenções” pautadas no senso comum, portanto, sem a formação adequada, podem representar um “desserviço” à causa.

Por conseguinte, é preciso considerar não apenas quais ações estão ocorrendo nas escolas, mas principalmente, a forma como essas ações estão sendo implementadas (GRELLMANN, 2012). A falta de condições e recursos de materialização da legislação resulta em tentativas descompromissadas de implementação que se distanciam dos objetivos da legislação resultando, por vezes, em situações desastrosas reforçando estereótipos (LIMA, 2012; SILVA, P. J., 2012).

A prática mais comum é a associação entre racismo e escravidão sem nenhuma reflexão a respeito da construção e manutenção histórica do racismo. Nesses casos, o enfoque à escravização abandona a valorização das contribuições da diáspora africana na constituição da sociedade brasileira (MOREIRA, 2012),ou ainda a reafirmação da representação social sobre as pessoas negras quanto à habilidade nos esportes.

Eduardo Vinícius e Silva (2016) realiza seu estudo a partir da proposta de um curso de extensão a distância para a formação de professores intitulado “Atletismo e História e Cultura Afro-Brasileira". O autor entende que o tema representa uma possibilidade de inclusão da temática ao valorizar as contribuições dos/as negros/as como esportistas.

Entendemos que “resumir” a inclusão da temática às contribuições no atletismo é uma alternativa bastante delicada, uma vez que a população negra, no Brasil, é reconhecida comumente no esporte, no samba e por vezes, na culinária, o que os/as afasta de atividades ligadas ao campo intelectual e ocupações de prestígio.

Ainda no conjunto de intervenções consideradas equivocadas, apresentamos as contribuições de uma professora entrevistada durante pesquisa realizada por Nunes (2010), em que problematiza a prática de levar à escola costumes e indumentárias africanos sem destaque à valorização cultural e identitária, ou seja, de forma descontextualizada. Desse modo, a impressão que a ação deixa é a de que os/as estudantes estão “fantasiados/as” de pessoas negras, o que pode ser vinculado à prática conhecida como Black face comum nos Estados Unidos na década de 60.

Conclui-se que o desconhecimento transforma propostas interventivas em situações contrárias à proposta da legislação. Nesta linha, apresentaremos ainda duas situações nos chamaram a atenção. Inicialmente, a pesquisa de Silvia de Oliveira (2012, p. 6), que já no resumo anuncia:

A tese está centrada no estudo de leitura e interpretação do rap em forma de poema, O Navio Negreiro, de Caetano Veloso, e tem como objetivos contribuir para o desenvolvimento da leitura e compreensão de texto, além de refletir acerca da situação do aluno afrodescendente visando à importância da aplicação da Lei 10.639 909/ 2003 nas unidades escolares.

A primeira observação é a atribuição do Poema “Navio Negreiro” a Caetano Veloso, que interpretou o poema em forma de rap. Castro Alves aparece como coadjuvante. O autor nem mesmo é apresentado como “O poeta dos escravos”, como ficou conhecido.

Para a autora, suas intervenções “possibilitaram a formação dos/asestudantescomo leitores/as críticos/as e reflexivos/as e, houve uma valorização da Cultura e da História Afro-brasileira.” (OLIVEIRA, S., 2012, p.6). Porém, a proposta de atividade interventiva utiliza exatamente o inverso do que se pretende com a alteração curricular. A pesquisadora não aborda contribuições e aspectos positivos da diáspora africana, desconsidera o protagonismo e resistência da população negra, além de reforçar a “participação” social dos/as africanos na constituição da sociedade brasileira como “escravos/as”, nesse último caso, mesmo discutiu a diferença semântica entre “escravos” e “escravizados”. As discussões com os/asestudantespautaram-se nos horrores da escravidão. Por fim, o texto apresenta diversos equívocos e expressões normalmente não utilizadas em pesquisas envolvendo relações étnico-raciais e processos discriminatórios como “mulato” e “mãe solteira” sem a devida problematização. Outra proposta de intervenção por meio de pesquisa-ação como forma de implementação da legislação que causou bastante inquietação refere-se ao uso dos contos “Princesa Violeta”, de Veralinda Menezes, e “Negrinha”, obra de Monteiro Lobato (ALMEIDA, 2015).

A primeira obra, utilizada durante intervenção pedagógica por Almeida (2015), é intitulada “Princesa Violeta”, de Veralinda Menezes. Uma princesa que precisa assumir o reino do pai ocupando o “papel” de um filho que o Rei tanto desejava ter. Para além da questão de gênero, que pode abrir várias frentes de debate como atribuições a feminilidade e corpo perfeito típicos da representação dos que significa “ser mulher", a valorização da beleza negra é feita a partir de um modelo de princesa europeu ou

hollywoodiano, distante das imagens de princesas africanas.

De todo modo, a personagem apresenta imagens positivas da mulher negra e poderia ser utilizada, porém, a comparação seria interessante se feita a partir de imagens de princesas com traços de culturas de países africanos.

A segunda escolha, “Negrinha” de Monteiro Lobato, adepto do higienismo e a eugenia (MOREIRA, 2011; SANTOS, 2008) merece um debate mais aprofundado.

Observe os adjetivos utilizados pelas/os estudantes para qualificar cada personagem:

Tabela 3 -

Negrinha – Monteiro Lobato Princesa Violeta - Veralinda Menezes negrinha; pobre; sete anos; órfã; preta;

fusca; mulatinha escura; cabelos ruços; olhos assustados; nascera na senzala; mãe escrava; cantos escuros; cozinha; velha esteira; trapos imundos;

belíssima Princesa Violeta; uma das jovens mais lindas e gentis da face da Terra; corpo perfeito; pele cor de bombom de chocolate; cheirosa como as rosas; macia como a seda; olhos negros

sempre escondida; magra; atrofiada; olhos eternamente assustados; gato sem dono; levada a pontapés; batiam- lhe sempre; castigos; nunca ouvira uma palavra de carinho; corpo tatuado de sinais, cicatrizes, vergões; beliscão no umbigo; como seria bom brincar; lágrimas; nunca vira uma boneca; pegou a boneca; percebeu nesse dia da boneca que tinha alma; caíra numa tristeza infinita; morreu de tristeza. (ALMEIDA, 2015, p93)

e espertos tinham o brilho das estrelas; boca de lábios carnudos e em forma de coração tinha cor de morangos; cabelos pretos e crespos, enroladinhos, em cachinhos miúdos, macios e perfumados; beleza; menina doce e frágil; dedicada; habilidade e determinação; guerreira; graça e beleza; corajosa; divertir com seus amigos; brincar com os animais; declaração de amor tão sincera, sorriu emocionada; perdidamente apaixonada; princesa tão feliz; festa de casamento; casaram; muitas aventuras; quatro filhos; alegria do reino; real e mágica família; foram felizes para sempre. (ALMEIDA, 2015, p.94)

Julgamos a comparação inadequada. As qualificações negativas atribuídas à Negrinha remetem a um passado real que toca na questão da ancestralidade. Ainda que classificado como conto, “Negrinha” é um personagem vivo. A princesa Violeta, por outro lado é um conto totalmente fictício. Não há comparações possíveis no plano real. O pano de fundo dessa comparação é que as adjetivações negativas são reais enquanto as designações positivas tratam de algo bastante figurado.

Há ainda a problemática de utilizar o texto de um autor racista. A percepção do racismo em produções de Monteiro Lobato foi alvo de intensas discussões após o parecer CNE/CEB nº 15/1054, sob a relatoria de Nilma Lino Gomes, contendo orientações encaminhadas à Secretaria de Educação do Distrito Federal para que materiais didáticos em choque com uma educação antirracista não fossem adotados, e recomenda ações como formação de professores/as de modo que possam adotar postura crítica diante das obras e inclusão de nota de rodapé alertando o/a leitor/a sobre as questões sobre os estudos atuais e críticos envolvendo estereótipos raciais na literatura. Trechos do livro “Caçadas de Pedrinho” foram apontados como reprodutores de preconceito racial em função das referências pejorativas à personagem feminina e negra Tia Anastácia, bem como associações a animais como urubu, macaco e feras africanas.

Após pressões midiáticas e políticas, o Conselho Nacional de Educação publicou o Parecer nº 6 de 201155 contendo o reexame do Parecer anterior. Nelebusca-se

54

Disponível em http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=6702- pceb015-10&category_slug=setembro-2010-pdf&Itemid=30192 Acesso em 24 de jul de 2016.

55 Disponível em http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=8180-

desfazer o entendimento disseminado, sobretudo pela mídia, de que havia a intenção do CNE de vetar o uso das obras de Monteiro Lobato quando a intenção era orientar a rede de ensino do Distrito Federal no sentido de barrar a reprodução de representações racistas presentes na obra de Monteiro Lobato.

Buscando indícios que reforcem a denúncia, identificamos em “Caçadas de Pedrinho” fala da personagem Emília referindo-se à Tia Anastácia como “macaca de carvão” ou da própria personagem “negro também é gente”. Em “Reinações de Narizinho”, Tia Anastácia é apresentada como “negra de estimação” e, mais uma vez, na fala de Emília, “Mentira de Narizinho! Essa negra não é fada nenhuma, nem nunca foi branca. Nasceu preta e ainda mais preta há de morrer”. E na obra “Histórias de tia Nastácia” nos chamou a atenção a seguinte fala de Emília após ouvir histórias contatas por Nastácia:

Pois cá comigo - disse Emília- só aturo estas histórias como estudos da ignorância e burrice do povo. Prazer não sinto nenhum. Não são engraçadas, não têm humorismo. Parecem-me muito grosseiras e até bárbaras - coisa mesmo de negra beiçuda, como Tia Nastácia. Não gosto, não gosto, e não gosto! [...] Bem se vê que é preta e beiçuda ! Não tem a menor filosofia, esta diaba. Sina é o seu nariz, sabe? (LOBATO, 1957, p.132)

Importa lembrar que Emília é considera o álter ego de Lobato personificado. Por meio da boneca, o autor transmitia suas próprias opiniões e julgamentos (FERES JUNIOR; NASCIMENTO; EISENBERG, 2013; SOUZA, 2009). Desse modo, as falas de Emília evidenciam de forma direta a postura racista do autor. Almeida (2015, p. 40), porém, justifica sua escolha afirmando que

Polêmicas à parte, não como há negar a grandiosidade de Monteiro Lobato no cenário da literatura brasileira e até mesmo porque não dizer internacional. Sua obra encanta e reencanta, ultrapassa as barreiras não só do tempo e do espaço, mas de gerações. O conto Negrinha, publicado em 1920, de fato, refaz um percursosócio-histórico-cultural da época pós- abolição, por isso o consideramos uma fotografia desse período.

O tema tratado em “Negrinha" envolve os maus tratos à menina negra que, além dos castigos físicos, é atacada por meio de linguagem bastante depreciativa. O que num primeiro momento parece uma denúncia aos maus tratos despendidos às pessoas negras, revela uma obra reprodutora da subalternidade das pessoas negras como indicam alguns trechos do livro reproduzidos abaixo a título de exemplo:

Depois, vala comum. A terra papou com indiferença aquela carnezinha de terceira — uma miséria, trinta quilos mal pesados... E de Negrinha ficaram no mundo apenas duas impressões. Uma cômica, na memória das meninas ricas.

— Lembras-te daquela bobinha da titia, que nunca vira boneca? Outra de saudade, no nó dos dedos de dona Inácia.

— Como era boa para um cocre56! (LOBATO, 2014, p.312)

[...]

Dona Inácia estava azeda, necessitadíssima de derivativos. Sua cara iluminou-se.

— Eu curo ela! — disse. E desentalando do trono as banhas foi para a cozinha, qual perua choca, a rufar as saias.

— Traga um ovo.

Veio o ovo. Dona Inácia mesma pô-lo na água a ferver; e de mãos à cinta, gozando-se na prelibação da tortura, ficou de pé uns minutos, à espera. Seus olhos contentes envolviam a mísera criança que, encolhidinha a um canto, aguardava trêmula alguma coisa de nunca visto. Quando o ovo

chegou a ponto, a boa senhora chamou:

— Venha cá!

Negrinha aproximou-se. — Abra a boca!

Negrinha abriu a boca, como o cuco, e fechou os olhos. A patroa, então, com uma colher, tirou da água “pulando” o ovo e zás! Na boca da pequena. E antes que o urro de dor saísse, suas mãos amordaçaram-na até que o ovo arrefecesse. Negrinha urrou surdamente, pelo nariz. Esperneou. Mas só. Nem osvizinhos chegaram a perceber aquilo. Depois:

— Diga nomes feios aos mais velhos outra vez, ouviu, peste? (LOBATO, 2014,p.309)

A intervenção foi realizada em turmas no Ensino Fundamental II. A cena acima que pode ser considerada bastante forte para a idade dos/as estudantes, traz ainda a naturalização da violência uma vez que não há o menor remorso por parte nenhuma personagem ou mesmo trechos que comprovem o tom de “crítica” do autor.

Entendemos que os maus tratos não devem ser camuflados, porém, devem ser discutidos em momentos letivos, em disciplinas oportunas e quando o currículo o exigir. Mas em hipótese alguma como forma de valorizaro protagonismo da população negra por meio das contribuições africanas.

A fala de uma aluna de 9 anos, transcrita pela pesquisadora Sandra Machado (2011, p. 128), além de confirmar a associação entre seu pertencimento racial e condição socioeconômica, ilustra o sentido pejorativo do termo “negrinha”:

Eu não gosto quando me chamam de Ronaldinho Gaúcho e negrinha do morro. Primeiro porque eu não sou homem e segundo porque eu não moro no morro porque quero. Aquele é o único lugar que eu tenho pra morar. Quando meu pai estava em casa, ele falava que nós íamos sair de

lá, mas depois ele foi embora e a gente não sabe quando ele volta, nem se ele volta. A gente nem tem mais como saber se vai mudar de lá um dia ou não57.

A partir da fala dessa aluna é possível inferir que a abordagem descrita pela autora (ALMEIDA, 2015) possivelmente causou constrangimentos às estudantes negras e reforçou imagens negativas dos/as colegas sobre elas.

Outro ponto frágil da intervenção, em nossa avaliação, está em tratar preconceito racial durante o debate sobre preconceito, como Bullying. Segundo publicação do Departamento de Educação da Califórnia (2003),bullyingenvolve provocações ou comportamento agressivo, de ordem física ou verbal, que ocorrem com frequência. São mais comuns entre jovens e envolve uma variedade de atos que resultam em sofrimento físico e psicológico.

Já o racismo envolve relação de forças entre grupos sociais e hierarquizações. Evoca ideologias eugenistas e de branqueamento e resulta em violência física e simbólica pautada exclusivamente no pertencimento racial.

Tendo em vista os diversos obstáculos apresentados até aqui e considerando a complexidade das relações sociais, é preciso suscitar reflexões sobre o real alcance dasações adotadas desde 2003, em especial no tocante a formação, inicial e/ou continuadados/as professores/as – citada como “alternativa” por aproximadamente 90% dos/as pesquisadores/as.